A deficiência de ferro (DF) é comum na insuficiência cardíaca (IC) e está associada a um prognóstico ruim, independentemente da presença concomitante de anemia. Em pacientes com DF e insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) ou insuficiência cardíaca com fração de ejeção levemente reduzida (ICFmrEF), a reposição intravenosa de ferro melhora sintomas e reduz hospitalizações por insuficiência cardíaca. O estudo recente FAIR-HFpEF sugeriu que a DF também pode ser um alvo terapêutico potencial na insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP).
A definição de DF adotada para selecionar pacientes para ferro intravenoso pode influenciar benefícios observados e taxas de eventos. A definição atualmente adotada pelas diretrizes internacionais de IC foi utilizada na maioria dos estudos prévios com ferro intravenoso em pacientes com IC, sendo o IRONMAN a principal exceção. Essa definição (ferritina <100 μg/L ou ferritina 100–299 μg/L se a saturação de transferrina for <20%) exclui DF quando a ferritina é alta mesmo que a TSAT seja baixa, e inclui DF quando a ferritina é baixa mesmo que a TSAT seja alta. Definições alternativas têm sido sugeridas para diagnosticar DF de forma mais precisa em pacientes com IC e identificar de forma mais eficaz aqueles que poderiam se beneficiar do ferro intravenoso.
Nesse contexto, foi publicado recentemente no JACC um artigo que buscou explorar as consequências do uso de diferentes critérios para definir DF em uma grande coorte contemporânea e do mundo real de pacientes com IC.
Métodos
Foram incluídos pacientes registrados no SwedeHF entre 1º de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2023, com dados disponíveis de FE e biomarcadores de DF (TSAT e ferritina).
Definições das variáveis
Quatro definições principais de DF foram avaliadas:
- Ferritina <100 μg/L ou ferritina 100–299 μg/L se TSAT <20% (definição das diretrizes)
- Ferritina <100 μg/L ou TSAT <20% (definição IRONMAN)
- TSAT <20% isoladamente
- Ferritina <100 μg/L isoladamente
Também foi explorado o ponto de corte ferritina <30 μg/L, considerado anormalmente baixo por muitos laboratórios em pacientes sem IC.
Na definição IRONMAN, foram considerados apenas os critérios de inclusão baseados nos biomarcadores (ferritina <100 μg/L ou TSAT <20%), mas não o critério de exclusão ferritina >400 μg/L, adotado no estudo por motivos de segurança e viabilidade.
Para avaliar a potencial elegibilidade ao ferro intravenoso segundo cada definição, valores elevados de hemoglobina (> 150 g/L) e ferritina (> 400 μg/L) foram explorados como critérios pragmáticos de exclusão.
Para anemia, utilizou-se a definição da Organização Mundial da Saúde (< 120 g/L em mulheres, < 130 g/L em homens).
Sintomas de IC, como fadiga e dispneia, foram coletados no formulário do SwedeHF no momento da consulta ambulatorial ou alta que motivou o registro.
O tratamento com carboximaltose férrica foi registrado, mas não foi possível vincular a administração à data exata da coleta dos exames de ferro. Assim, alguns pacientes podem ter recebido ferro intravenoso entre a coleta laboratorial e o encontro basal, potencialmente diluindo as associações prognósticas da DF basal.
Por isso, análises de sensibilidade foram realizadas incluindo apenas pacientes sem uso registrado de carboximaltose férrica nos 12 meses anteriores ao baseline.
Resultados
Dos 20.673 pacientes com IC, a mediana de idade foi de 74 anos e 32% eram mulheres. Aproximadamente 93% foram registrados em contexto ambulatorial; 58% tinham ICFER, 25% ICFmrEF e 18% ICFEP; 38% apresentavam classe funcional NYHA III ou IV; a mediana do NT-proBNP foi de 1570 pg/mL e 31% tinham anemia.
A DF definida segundo os critérios das diretrizes, IRONMAN, TSAT < 20% e ferritina < 100 μg/L esteve presente em 49%, 53%, 36% e 37% dos pacientes, respectivamente. Aproximadamente 8,5% dos pacientes tinham ferritina < 30 μg/L. De acordo com todas as definições, a DF foi mais prevalente em ICFEP vs ICFmrEF e ICFER, pacientes do sexo feminino vs masculino, pacientes internados vs ambulatoriais, aqueles com idade ≥ 75 anos vs < 75 anos, aqueles com e sem anemia, pacientes em classe funcional NYHA III ou IV vs I ou II, e naqueles com taxa de filtração glomerular estimada < 60 mL/min/1,73 m².
Quando considerados hemoglobina > 150 g/L e ferritina > 400 μg/L como critérios de exclusão para tratamento, a elegibilidade segundo os critérios das diretrizes, IRONMAN, TSAT < 20% e ferritina < 100 μg/L foi ligeiramente menor (41%, 43%, 30% e 31%, respectivamente).
Aproximadamente 17% de todos os pacientes tinham DF segundo a definição das diretrizes, apesar de apresentarem TSAT ≥ 20% (correspondendo a 35% de todos os pacientes com DF segundo a definição das diretrizes). Aproximadamente 4,5% dos pacientes tinham DF segundo os critérios IRONMAN ou TSAT < 20%, mas não segundo as diretrizes (correspondendo a 13% de todos os pacientes com TSAT <20% e 8,5% de todos os pacientes com DF segundo a definição IRONMAN).
Características dos pacientes por status de deficiência de ferro (DF) de acordo com diferentes critérios
Pacientes com DF eram ligeiramente mais velhos, mais frequentemente mulheres, e tinham menor nível educacional e renda mais baixa. Também apresentavam FE mais alta, porém insuficiência cardíaca mais grave (maior proporção de internados, classe funcional NYHA mais elevada, níveis de NT-proBNP mais altos e maior uso de diuréticos).
A prevalência da maioria das comorbidades foi maior na presença de DF. Pacientes com DF eram menos frequentemente encaminhados para acompanhamento especializado de IC e eram menos frequentemente tratados com a maioria das terapias farmacológicas ou dispositivos baseados em evidências.
Em análises univariadas, a DF, independentemente da definição utilizada, foi associada a pior qualidade de vida (HR-QoL), maior gravidade de fadiga e dispneia relatadas pelos pacientes, maior intensidade de dor e ansiedade, e classe funcional NYHA mais elevada. TSAT < 20% apresentou associações brutas marcadamente mais fortes e ferritina < 100 μg/L associações marcadamente mais fracas com HR-QoL, fadiga, dispneia e classe funcional NYHA. As associações brutas com dor e ansiedade foram semelhantes entre as diferentes definições.
Definições de deficiência de ferro (DF) e morte cardiovascular ou primeira hospitalização por IC (HFH)
Durante um seguimento mediano de 1,0 ano, 3.039 (15%) pacientes morreram por causas cardiovasculares ou tiveram uma primeira hospitalização por IC, com taxa de eventos de 18 por 100 pacientes-ano.
A associação bruta entre DF e morte cardiovascular ou primeira HFH foi significativa para todas as definições principais, exceto ferritina < 100 μg/L, sendo mais forte quando DF foi definida como TSAT < 20% do que pelas definições IRONMAN, diretrizes ou ferritina < 100 μg/L.
Após ajustes completos, a DF foi independentemente associada com morte cardiovascular ou primeira HFH quando definida segundo diretrizes, mas não quando definida como ferritina < 100 μg/L.
As associações ajustadas de todas as definições com o desfecho foram globalmente consistentes ao longo dos diferentes períodos de acompanhamento (6 meses a 5 anos), sendo significativas em todos os intervalos para os critérios IRONMAN e TSAT < 20%, em todos os intervalos ≥ 1 ano para a definição das diretrizes, e em nenhum intervalo para ferritina < 100 μg/L.
Definições de deficiência de ferro e desfechos secundários
DF definida pelos critérios IRONMAN ou TSAT < 20% foi bruta e independentemente associada com todos os desfechos secundários. A DF definida por diretrizes foi bruscamente associada com todos os desfechos secundários, mas independentemente apenas com morte cardiovascular ou HFH total, primeira HFH, HFH total e hospitalizações totais por todas as causas.
Ferritina < 100 μg/L foi associada de forma bruta com todos os desfechos secundários, exceto morte cardiovascular ou HFH total, HFH total e morte cardiovascular ou por todas as causas — mas não teve associação independente com nenhum desfecho.
Ferritina < 30 μg/L foi bruscamente associada apenas com primeira e total hospitalizações por todas as causas e primeira hospitalização não cardiovascular, sem associações independentes.
Entre todas as definições avaliadas, TSAT < 20% apresentou as maiores associações brutas e independentes, melhor discriminação e melhor ajuste de modelo para todos os desfechos secundários.
Análises de subgrupos
Ao definir DF como TSAT < 20% ou segundo IRONMAN, as associações prognósticas foram mais fortes em ICFEP ou ICFmrEF do que em ICFER para:
- Morte cardiovascular ou primeira HFH
- Morte cardiovascular ou HFH total
- Primeira HFH
- HFH total
A definição das diretrizes mostrou associações maiores em ICFEP/ICFmrEF do que em ICFER para morte cardiovascular ou HFH total e morte por todas as causas.
Todas as associações prognósticas foram consistentes independentemente da presença de anemia.

Discussão: deficiência de ferro (DF) na insuficiência cardíaca (IC)
Este estudo representa a maior avaliação comparativa de diferentes critérios para definição de DF em uma coorte contemporânea de pacientes com IC. Independentemente da definição aplicada, a DF foi altamente prevalente (diretrizes: 49%; IRONMAN: 53%; TSAT < 20%: 36%; ferritina < 100 μg/L: 37%), mais frequente em ICFEP e independentemente associada a sintomas mais graves.
No entanto, as implicações prognósticas variaram conforme a definição adotada. Quando definida como TSAT < 20% isoladamente, a DF apresentou as maiores associações brutas e ajustadas com todos os desfechos clínicos duros (incluindo morte cardiovascular, morte por todas as causas e hospitalizações por IC, causas cardiovasculares, todas as causas e causas não cardiovasculares), enquanto as definições baseadas apenas em ferritina foram fracos preditores de prognóstico.
Observamos que definições de DF centradas em TSAT baixa, e não em ferritina, exibiram as associações mais fortes com desfechos duros e associações similares com sintomas de IC e HR-QoL. Essa observação é consistente com estudos prévios em aproximadamente 4.000 pacientes ambulatoriais com IC crônica e em cerca de 800 pacientes avaliados para transplante cardíaco.
As observações epidemiológicas de que a TSAT, e não a ferritina, parece explicar o pior prognóstico associado à deficiência de ferro (DF) não são suficientes para concluir que a TSAT seja melhor para diagnosticar DF ou para prever melhor os efeitos benéficos do ferro intravenoso. No entanto, vários argumentos apoiam a necessidade de definições alternativas de DF na insuficiência cardíaca (IC).
Primeiro, a definição atual das diretrizes de IC corre o risco de subdiagnosticar DF em estados inflamatórios, nos quais a ferritina, um reagente de fase aguda, pode estar elevada. Dado que a implementação da testagem de DF tem sido limitada, uma oportunidade perdida de diagnosticar DF no cenário agudo pode resultar em atrasos clinicamente relevantes.
Segundo, a TSAT isoladamente, bem como o ferro sérico e o receptor de transferrina solúvel, correlacionam-se melhor com a coloração de ferro na medula óssea do que a definição atual das diretrizes.
Terceiro, meta-análises de ferro intravenoso na IC sugerem que o efeito terapêutico é maior com níveis mais baixos de TSAT, e que pacientes com TSAT normal podem não se beneficiar e possivelmente podem ser prejudicados. Em contraste, os níveis de ferritina não parecem modificar de forma significativa o efeito do ferro intravenoso, e não mostraram associação independente com desfechos clínicos em nosso estudo, independentemente de se utilizarem pontos de corte comumente considerados para indicar suplementação de ferro em pacientes com IC (100 μg/L) ou sem IC (30 μg/L).
Aproximadamente um terço dos pacientes identificados como portadores de DF pelos critérios das diretrizes apresentavam TSAT ≥20%. Incluir tais pacientes em ensaios pode diluir o efeito observado do ferro intravenoso caso obtenham menor benefício, nenhum benefício ou até mesmo dano, conforme sugerido por meta-análises.
A necessidade de novos ensaios clínicos sobre ferro intravenoso é possivelmente maior na ICFEP, onde a evidência é escassa, a DF é mais comum e as opções terapêuticas são mais limitadas. No estudo recente FAIR-HFpEF, a carboximaltose férrica melhorou o teste de caminhada de 6 minutos. FAIR-HFpEF, assim como os estudos em andamento sobre ferro intravenoso na ICFEP (PREFER-HF; IRONMET-HFpEF), utilizou a definição atual das diretrizes. Estudos futuros devem ser desenhados especificamente para avaliar os critérios ideais de seleção de pacientes com IC para terapia com ferro intravenoso.
Quando avaliada ferritina > 400 μg/L e hemoglobina > 150 g/L como critérios pragmáticos de exclusão, aproximadamente 1 em cada 4 pacientes elegíveis para ferro intravenoso segundo as diretrizes (41% elegíveis) seria excluído se adotado o critério TSAT < 20% (30% elegíveis). Assim, embora TSAT < 20% reduza a prevalência geral de DF, não reduz substancialmente a elegibilidade ao tratamento ou a viabilidade de recrutamento em ensaios. No entanto, embora esses critérios de elegibilidade tenham sido baseados em exclusões de estudos prévios, ensaios de DF em doença renal terminal incluíram pacientes com ferritina mais elevada, e os pontos de corte ideais de ferritina e hemoglobina para excluir (ou interromper) ferro intravenoso na IC ainda são desconhecidos.
Limitações do estudo
Primeiro, embora a avaliação de ferro seja recomendada para todos os pacientes com IC, apenas uma minoria de fato é testada. A seleção preferencial de pacientes com maior probabilidade de DF pode introduzir viés e superestimar prevalências. A testagem também varia entre centros, reduzindo a generalização para contextos com menos rastreamento. Segundo, o SwedeHF não coleta ferro sérico nem receptor de transferrina solúvel, o que impediu avaliar esses biomarcadores.
Além disso, é possível que confundidores não mensurados (como má nutrição, má absorção e uso de suplementos orais) tenham influenciado os achados.
Finalmente, a carboximaltose férrica foi a única formulação de ferro intravenoso registrada no SwedeHF durante a maior parte do estudo; assim, não foi possível avaliar o uso de derisomaltose férrica, embora menos utilizada na IC na Suécia.
Conclusão
Independentemente da definição, a deficiência de ferro foi altamente prevalente (mais comum na ICFEP) e independentemente associada a piores sintomas de IC. Definições de DF enfatizando saturação de transferrina baixa, e não ferritina, previram melhor os desfechos, com TSAT < 20% isoladamente apresentando as associações mais fortes com todos os desfechos clínicos importantes, provavelmente representando a definição preferida para selecionar pacientes de maior risco em ensaios clínicos.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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