Lesão renal aguda na cirrose hepática: abordagem prática
Metade dos pacientes com cirrose hospitalizados evoluem com lesão renal aguda (LRA), uma condição associada à alta morbimortalidade nesses pacientes.
A lesão renal aguda (LRA) na cirrose hepática pode ser pré-renal (50%), renal intrínseca (30%) e pós-renal (1%). Uma forma especial de LRA nesses pacientes é a síndrome hepatorrenal (SHR), resultado da vasoconstrição arterial renal, ocorrendo em 15-20% das LRA em pacientes cirróticos. Um artigo de revisão foi recentemente publicado no New England, revisando o diagnóstico e manejo da lesão renal aguda na cirrose.
Definições de LRA
Na última década, os critérios de LRA e SHR foram revisados. Torna-se importante o conhecimento da creatinina basal, medida 3 meses anteriores ao quadro atual, sendo considerado o valor mais recente disponível. Na ausência de creatinina basal disponível, utiliza-se o valor da creatinina na admissão atual.
A atual definição de LRA é um aumento absoluto da creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas, ou ≥ 1,5 vezes o nível basal, ou débito urinário < 0,5 mL/kg/h por 6 horas.
Pode ser dividida em 03 estágios.
- Estágio 1: aumento da creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dL ou ≥ 1,5–2 vezes o nível basal;
- Estágio 2: aumento da creatinina sérica > 2 a 3 vezes o nível basal;
- Estágio 3: aumento da creatinina sérica > 3 vezes o nível basal ou ≥ 4,0 mg/dL com aumento agudo ≥ 0,5 mg/dL ou início de terapia de substituição renal;
A síndrome hepatorrenal é definida de acordo com os seguintes critérios:
- Presença de cirrose hepática com ascite;
- Diagnóstico de LRA sem melhora após pelo menos 2 dias de suspensão de diuréticos e expansão volêmica com albumina 1 g/kg/dia (máximo de 100 g/dia);
- Ausência de choque;
- Nenhum tratamento atual ou recente com drogas nefrotóxicas;
- Exclusão de doença renal parenquimatosa intrínseca. Na SHR a urina tipo 1 (EAS) deve apresentar proteinúria < 500 mg/dia, com hematúria < 50 hemácias/campo, e a ultrassonografia deve descartar alteração parenquimatosa.
Atualmente, a fração de excreção de sódio (FE Na) pode ajudar na suspeita de SHR quando for menor que 0,2%, sendo ainda mais preditivo quando < 0,1%.
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A SHR pode ser de três tipos:
- SHR tipo Lesão renal aguda: Preenche os critérios de LRA e de SHR.
- SHR tipo doença renal crônica: taxa de filtração glomerular (TFG) < 60 ml/min/1,73 m² por período ≥ 3 meses na ausência de outras causas (estruturais);
- SHR tipo doença renal aguda: taxa de filtração glomerular (TFG) < 60 ml/min/1,73 m² por período < 3 meses na ausência de outras causas estruturais e aumento inferior a 50% da creatinina sérica basal.
Após identificada a LRA e instituído o tratamento, a resposta ao mesmo deve ser avaliada:
- Resposta completa: retorno da creatinina a um nível dentro de 0,3 mg/dL do basal;
- Resposta parcial: regressão do estágio da LRA, com redução da creatinina ≥ 0,3 mg/dL acima do nível basal;
- Sem resposta: sem regressão de estágio de LRA.
Fisiopatologia
A hipertensão portal que ocorre nos pacientes cirróticos é responsável pela liberação de agentes vasodilatadores (ex: óxido nítrico), causando vasodilatação esplâncnica e sistêmica. A translocação bacteriana também contribui para esse processo, resultando em redução do volume circulante efetivo. Com isso, há ativação de sistemas neuro-humorais (renina-angiotensina-aldosterona, simpático e arginina-vasopressina), culminando em retenção hidrossalina e formação de ascite e hiponatremia dilucional.
A vasodilatação progressiva e a ativação do sistema renina-angiotensina levam à vasoconstrição renal. A perfusão renal é então reduzida, o que pode ainda ser potencializado pela redução relativa do débito cardíaco nesses pacientes (cardiomiopatia cirrótica). Esses mecanismos levam à SHR-LRA, que não melhora com a reposição volêmica. Além disso, esses mecanismos perpetuam a formação de ascite.
A SHR-LRA comumente apresenta fatores precipitantes relacionados, como: diurese excessiva, hemorragia digestiva e resposta inflamatória sistêmica (por exemplo, induzida por infecção). A hipoperfusão renal prolongada ou associada a uso de drogas nefrotóxicas pode levar à lesão renal estrutural, resultando em atraso na recuperação renal.
Avaliação da função renal
Existem algumas limitações para o uso da creatinina na avaliação da função renal no paciente com cirrose hepática, devido a: perda de massa muscular, redução da produção da creatinina e sobrecarga hídrica. A estimativa do clearance de creatinina através da urina de 24 horas é sujeita a erros devido a falha na coleta e aumento da secreção tubular de creatinina à medida que a TFG diminui.
Logo, em pacientes com cirrose, as estimativas da taxa de filtração glomerular tendem a superestimar a TFG real em 10 a 20 mL/min/1,73 m² de superfície corporal, especialmente em pacientes com TFG < 40 ml/min/1,73 m², ascite ou ambos.
Investigação inicial da LRA
- Pesquisar fatores precipitantes:
- Suspender medicações nefrotóxicas, incluindo diuréticos, agentes vasodilatadores, betabloqueadores não seletivos e anti-inflamatórios.
- Rastreio infeccioso: paracentese diagnóstica com citologia e cultura do líquido ascítico, radiografia de tórax, urina tipo 1, urocultura e hemoculturas.
- Investigar etiologia da lesão renal: Hipovolemia? Nefrotoxicidade? Alterações no sedimento urinário? Obstrução ao fluxo urinário?
- Fração de excreção de sódio (FeNa): Limitado, pois tende a ser menor que 1% nos cirróticos com ascite, mesmo na ausência de LRA (retenção ávida de sódio). Valores menores que 0,1% são mais sugestivos de SHR-LRA.
- Medida da N-GAL (lipocalina associada à gelatinase de neutrófilos urinários): marcador de lesão tubular, que auxilia na diferenciação entre SHR-LRA e necrose tubular aguda. Pouco disponível.
- Biópsia renal: reservada para casos com forte suspeita de doenças glomerulares, cujo tratamento depende do diagnóstico histológico.
- Expansão volêmica:
- Expansão com albumina (1 g/kg/dia) em pacientes hipovolêmicos/euvolêmicos durante 24-48 horas, observando parâmetros de fluido tolerância.
- Em pacientes instáveis, considerar expansão rápida com cristaloides.
- Paracentese de alívio:
- Recomendada para pacientes com ascite tensa, de preferência parcial e seguida de reposição de albumina para prevenir disfunção circulatória.
Tratamento da síndrome hepatorrenal
Após investigação adequada, com exclusão de outras causas de lesão renal aguda, deve-se prosseguir com o tratamento da SHR.
- Vasoconstritores esplâncnicos associados à albumina intravenosa.
Devem ser usados como a base do tratamento agudo, como ponte para transplante ou recuperação renal.
Entre os vasoconstritores esplâncnicos, temos:
- Terlipressina:
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- Análogo da vasopressina;
- Agente de primeira linha;
- Pode ser administrada em bolus ou infusão contínua (menos efeitos adversos);
- Dose ajustada de acordo com a resposta ao tratamento;
- Risco de edema pulmonar, bradicardia e eventos isquêmicos (monitorar).
- Norepinefrina
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- Eficácia semelhante à terlipressina;
- Desvantagem: Requer infusão contínua e monitorização em UTI.
- Octreotide + midodrina:
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- Inferior à terlipressina;
- Uso temporário por 24-48 horas. Opção na indisponibilidade ou contraindicação à terlipressina.
- Shunt portossistêmico intra-hepático transjugular (TIPS): pode melhorar a função renal através da redução da pressão portal, melhorando o volume circulante efetivo. Todavia, atualmente não há evidências suficientes para sua recomendação na SHR-LRA;
- Terapia de substituição renal (TSR): funciona como ponte para o transplante hepático. O seu uso para pacientes sem indicação de transplante hepático deve ser ponderado caso a caso. Nos pacientes com cirrose, o início da TSR deve ser avaliado conforme o prognóstico do caso e possibilidade de transplante. A TSR deve ser considerada em pacientes com hipercalemia, acidose ou sobrecarga hídrica refratárias, síndrome urêmica, ou piora progressiva da função renal. Outra situação em que a TSR, com métodos contínuos, deve ser avaliada é na presença de amônia > 150, pelo risco de edema cerebral;
- Transplante hepático: é o tratamento de escolha nos pacientes com SHR-LRA. Transplante duplo (fígado-rim) deve ser considerado para pacientes com disfunção renal prolongada. Todavia, é um desafio selecionar os pacientes que se beneficiam desta medida.
Prevenção da lesão renal aguda
- Evitar hipovolemia:
- Uso criterioso de diuréticos, estimando perda de até 0,5 kg/peso/dia em pacientes com ascite e até 1 kg/peso/dia em pacientes com ascite e edema de membros inferiores;
- Uso criterioso de lactulose, ajustando a dose com objetivo de 2 a 3 evacuações pastosas ao dia;
- Prevenção de hemorragia digestiva alta varicosa;
- Prevenção da disfunção circulatória pós paracentese de grande volume;
- Reposição de albumina 6 g por litro de líquido ascítico retirado;
- Evitar medicações nefrotóxicas, como aquelas que prejudicam o fluxo renal (AINEs, iECA, BRA), apresentam toxicidade direta tubular (iodo, aminoglicosídeos, vancomicina e anfotericina B) e que causam lesão intersticial alérgica (betalactâmicos e inibidores da bomba de prótons). Quando essas medicações forem necessárias, é importante a monitorização da função renal do paciente.
Mensagens práticas
A lesão renal aguda (LRA) é muito frequente no paciente com cirrose hepática. É importante mencionar, no entanto, que LRA nesse paciente não é sinônimo de SHR. A causa mais frequente de lesão renal aguda no paciente cirrótico é a pré-renal, relacionada à hipovolemia. É importante seguir uma propedêutica diagnóstica para não diagnosticarmos erroneamente o paciente com SHR.
Além disso, feito o diagnóstico de SHR, o tratamento precoce melhora o prognóstico, servindo como ponte para recuperação ou para o tratamento definitivo com transplante hepático. Ademais, é importante que os médicos que cuidam de pacientes com cirrose se atentem na prevenção de lesão renal aguda (LRA) e orientem os pacientes sobre essas medidas.
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