Logotipo Afya
Anúncio
Terapia Intensiva23 outubro 2025

Traqueostomia precoce versus tardia em pacientes com trauma múltiplo

Estudo sistemático avaliou a comparação entre traqueostomia precoce e tardia especificamente em pacientes com trauma múltiplo.

A necessidade de ventilação mecânica invasiva é frequente em pacientes críticos com trauma múltiplo, e a decisão sobre o momento ideal da traqueostomia permanece incerta, apesar de décadas de estudo. Estima-se que cerca de 83% dos pacientes com trauma grave necessitem de admissão em unidade de terapia intensiva (UTI), e aproximadamente 35% recebam ventilação mecânica em algum momento da internação. Uma parcela significativa evolui com necessidade de suporte prolongado, seja por insuficiência respiratória aguda ou dificuldade no desmame ventilatório. 

A traqueostomia surge como alternativa para garantir via aérea estável, reduzir complicações associadas à intubação prolongada e permitir melhor conforto ao paciente. No entanto, persiste o debate: deve-se realizar a traqueostomia precocemente (até o 9º dia após a intubação) ou postergar o procedimento (após o 10º dia)? 

Um estudo sistemático recente buscou responder essa questão, avaliando a comparação entre traqueostomia precoce e tardia especificamente em pacientes com trauma múltiplo. A seguir, temos uma análise crítica do estudo. 

Trauma e ventilação 

O trauma múltiplo, definido pela presença de lesões graves em pelo menos duas regiões do corpo, com risco de morte associado a pelo menos uma delas, é responsável por alta mortalidade global. Estimativas apontam que mais de 4,4 milhões de óbitos anuais são atribuídos a traumas, representando 8% de todas as mortes no mundo. 

A fisiopatologia respiratória nesses pacientes é complexa. O comprometimento pode ocorrer por múltiplos mecanismos: 

  • Lesão torácica direta (contusão pulmonar, fraturas de costelas, tórax instável). 
  • Alterações neurológicas que reduzem o drive respiratório. 
  • Hemorragia maciça levando a choque hipovolêmico e disfunção orgânica. 
  • Necessidade de sedação contínua para controle de lesões associadas.

A ventilação mecânica invasiva prolongada, embora essencial, traz riscos bem conhecidos: estenose laríngea, granulomas, edema glótico, disfunção de cordas vocais e pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM). Em 7 a 10 dias de intubação, a probabilidade de complicações cresce exponencialmente, justificando a indicação de traqueostomia em parte dos pacientes. 

Um dos principais dilemas clínicos reside na previsão de quais pacientes terão necessidade de ventilação mecânica prolongada. O diagnóstico de “dependência ventilatória” nem sempre é claro nos primeiros dias após o trauma, uma vez que fatores como gravidade neurológica, resposta à ressuscitação volêmica, evolução cirúrgica e complicações infecciosas podem modificar drasticamente o curso clínico. 

Veja mais: Traqueostomia precoce em pacientes críticos: qual o momento ideal?

Entre os fatores associados à maior probabilidade de desmame difícil e consequente indicação de traqueostomia estão: 

  • Escala de Coma de Glasgow ≤ 8. 
  • Fratura de múltiplas costelas ou tórax instável. 
  • Bilateralidade de lesões torácicas. 
  • Presença de síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).

A ausência de marcadores robustos para predizer com precisão quem se beneficiará da traqueostomia precoce contribui para a variabilidade nas condutas e para a ausência de consenso em diretrizes internacionais. 

Análise do artigo 

O estudo analisou 1 ensaio clínico randomizado (60 pacientes) e 22 estudos não randomizados (44.811 pacientes), totalizando quase 45 mil indivíduos com trauma múltiplo submetidos à traqueostomia. 

Mortalidade 

  • No único ensaio randomizado, a traqueostomia precoce (< 10 dias) apresentou 69 óbitos por 1000 pacientes versus 161 por 1000 no grupo tardio. 
  • O risco relativo foi 0,43 (IC 95%: 0,09–2,03), mas a evidência foi classificada como muito incerta devido à ampla imprecisão. 
  • Estudos observacionais sugeriram ausência de diferença significativa (HR ajustado 0,96; IC 95%: 0,49–1,88). 

Apesar da aparente redução no ensaio clínico, a falta de poder estatístico impede qualquer conclusão robusta. Em larga escala, a mortalidade parece não se modificar com a antecipação do procedimento. 

Pneumonia associada à ventilação 

  • No RCT, a incidência foi de 966 por 1000 pacientes no grupo precoce contra 903 por 1000 no grupo tardio (RR 1,07; IC 95%: 0,93–1,22). 
  • Novamente, o resultado foi considerado de baixa certeza. 

Tempo de permanência em UTI 

  • No ensaio clínico, a diferença média foi de apenas 0,3 dias a menos (IC 95%: –17,64 a +17,04). 
  • Em estudos observacionais ajustados, houve sugestão de redução significativa (HR 0,57; IC 95%: 0,46–0,71).

Todos os desfechos foram classificados como muito incertos pela abordagem GRADE, principalmente pela baixa qualidade metodológica e heterogeneidade entre os estudos. Ainda, temos uma lacuna importante no conhecimento em relação à qualidade de vida, tempo para decanulação e complicações diretas.

Em resumo, o estudo conclui que a traqueostomia precoce em trauma múltiplo pode não trazer benefício claro em mortalidade, pneumonia ou tempo de internação, sendo necessários ensaios clínicos mais robustos para responder definitivamente à questão. 

Artigo comparativo 

Um estudo de 2023 conduzido por Zhou et al. avaliou a realização de traqueostomia precoce em pacientes com lesão cerebral aguda, comparando-a tanto com traqueostomia tardia quanto com intubação prolongada. Diferentemente do trabalho de Ansems e colaboradores, esse estudo encontrou benefício clínico relevante da intervenção precoce. Vale ressaltar que o grupo de pacientes dessa intervenção também era diferente, tratando de pacientes neurocríticos. 

Os resultados mostraram: 

  • Redução de mortalidade em longo prazo: RR 0,57 (IC 95%: 0,36–0,90). 
  • Menor tempo de ventilação mecânica: redução média de 2,7 dias. 
  • Menor tempo de UTI: redução média de 2,5 dias.

Ainda que a análise de sensibilidade tenha atenuado o impacto sobre mortalidade (IC 95%: 0,32–1,16), os achados sugerem que em contextos específicos, como no trauma neurológico isolado, a traqueostomia precoce pode de fato modificar desfechos clínicos importantes. 

A comparação entre os estudos evidencia um ponto crucial: o impacto da traqueostomia precoce pode variar conforme o perfil da população estudada. Em pacientes com trauma múltiplo, com fisiopatologia sistêmica mais complexa, os potenciais benefícios podem ser diferentes. Já em populações mais homogêneas, como aqueles com lesão neurológica grave, a intervenção precoce parece oferecer vantagens concretas. Esse é um aprendizado para se levar na análise dos artigos, é importante avaliar principalmente a população analisada para ver como se enquadra e também se há possibilidade de comparação com outros resultados disponíveis. 

Para guardar: 

  • A traqueostomia é procedimento frequente em pacientes com trauma múltiplo, mas o momento ideal ainda é incerto.
  • O estudo mais recentes mostrou resultados inconclusivos, com evidências de muito baixa certeza em mortalidade, pneumonia e tempo de UTI.
  • Para a prática clínica, a indicação de traqueostomia precoce em trauma múltiplo deve ser individualizada, até que novos ensaios clínicos multicêntricos forneçam respostas definitivas. 
  • Ao analisar populações mais específicas, conseguimos encontrar estudos que mostram desfechos favoráveis na traqueostomia precoce, portanto, devemos analisar estudo a estudo para saber se realmente esse desfecho é aplicável (inclusive em nossa prática clínica).

Autoria

Foto de Lavínia Barcellos

Lavínia Barcellos

Graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora • Residente em Clínica Médica no Hospital Central da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Compartilhar artigo

Referências bibliográficas

Newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Anúncio

Leia também em Terapia Intensiva