O controle glicêmico em pacientes críticos é um tema controverso em terapia intensiva. Uma série de diretrizes tentam buscar o equilíbrio entre os benefícios de evitar hiperglicemia com os riscos de hipoglicemia severa. Contudo, evidências recentes vêm sugerindo que estratégias mais permissivas podem melhorar certos desfechos, especialmente ao reduzir eventos de hipoglicemia. Neste artigo veremos um pouco sobre um estudo que oferece uma análise detalhada do impacto do controle glicêmico liberal, definido como níveis de glicose superior a 180 mg/dL, em pacientes críticos na UTI.
A fisiopatologia da disfunção glicêmica em pacientes críticos envolve resistência à insulina, aumento da produção de glicose hepática e disfunções endócrinas relacionadas ao estresse (como o cortisol), que promovem hiperglicemia persistente. Diagnosticar com precisão essas alterações é desafiador, pois as oscilações rápidas de glicemia, interferências na coleta capilar e a falta de protocolos dificultam a avaliação contínua. A definição de limites diagnósticos, como níveis de glicose abaixo de 70 mg/dL para hipoglicemia, muitas vezes não captura episódios leves ou moderados a depender do contexto clínico, o que pode impactar desfechos.
Metodologia
O estudo Effect of liberal glucose control on critically ill patients: a systematic review and meta-analysis realizou uma revisão sistemática com meta-análise incluindo nove estudos, atingindo um total de 14.878 pacientes críticos, distribuídos quase igualmente entre o grupo de controle liberal e o grupo com alvos glicêmicos mais restritos. Os estudos compreendem cinco ensaios clínicos randomizados (RCTs) e quatro estudos observacionais, realizados na Europa e na Austrália.
Os autores estabeleceram critérios rigorosos, incluindo estudos que contemplam pacientes adultos (>18 anos) hospitalizados em UTI, com objetivos de comparar o controle glicêmico liberal (>180 mg/dL) com outras estratégias. Os desfechos primários focaram na incidência de hipoglicemia, mortalidade na UTI e mortalidade hospitalar, enquanto os secundários envolveram mortalidade em 90 dias, incidência de bacteremia, terapia renal substitutiva (TRS), duração da ventilação mecânica, tempo de permanência na UTI e na internação total.
Resultados Detalhados
Incidência de Hipoglicemia
O controle liberal resultou em uma redução significativa na incidência de hipoglicemia, consistente em análises de subgrupo, com porcentagens de redução variando de aproximadamente 37% a 71%. Isso confirma que uma estratégia mais permissiva minimiza os episódios hipoglicêmicos severos, que estão associados a desfechos adversos, incluindo distúrbios metabólicos, coma e arritmias.
Mortalidade
Contrariando expectativas iniciais de que o controle liberal poderia oferecer benefícios, os estudos apontaram aumento na mortalidade na UTI em uma diferença de aproximadamente 23% entre os grupos. Além disso, a mortalidade hospitalar também foi maior no grupo liberal. Esses dados sugerem que a estratégia de tolerar níveis glicêmicos mais elevados pode estar associada a maiores riscos de mortalidade precoce e global, refutando a ideia de que o controle glicêmico liberal seja uma estratégia segura na prática clínica.
Não houve diferença estatisticamente significativa na mortalidade em 90 dias entre os grupos. Esses resultados indicam que a estratégia liberal não traz benefício na sobrevida a longo prazo, reforçando que o aumento na mortalidade na fase aguda pode não ser compensado por possíveis benefícios futuros.
Outros Desfechos Clínicos
- Incidência de Bacteremia: Não houve diferença significativa na taxa de bacteremia entre os grupos.
- Necessidade de TRS: A estratégia liberal apresentou um aumento de aproximadamente 26% na necessidade de diálise.
- Duração da Ventilação Mecânica: Não houve diferenças estatisticamente significativas, embora a heterogeneidade elevada indique a necessidade de estudos mais precisos.
- Tempo de Permanência na UTI e na Internação Total: Esses desfechos apresentaram alta heterogeneidade, e análises de subgrupos sugeriram que o controle liberal não reduz significativamente a permanência, variando de meio a um dia em média.
Vamos discutir um pouco sobre esses resultados e comparação com artigos recentes?
O controle glicêmico liberal, ao reduzir de forma consistente a incidência de hipoglicemia — que variou de aproximadamente 37% a 71% de redução em análises de subgrupo — apresenta vantagens claras na minimização de eventos hipoglicêmicos severos. Estes eventos, tradicionalmente associados a complicações neurológicas e metabólicas, foram significativamente reduzidos. Entretanto, a análise de mortalidade sugere que essa estratégia pode, paradoxalmente, estar associada a um aumento de aproximadamente 23% na mortalidade na UTI e cerca de 18% na internação, sinalizando um risco que não pode ser ignorado. A maior necessidade de TRS (aproximadamente 26% maior no grupo liberal) também reforça a hipótese de que níveis glicêmicos elevados podem gerar disfunções renais.
Esses achados também podem ser contextualizados à luz do estudo NICE-SUGAR (2009), um marco na literatura sobre controle glicêmico em pacientes críticos. Apesar de ambos os estudos abordarem estratégias de manejo glicêmico em UTI, suas metodologias e alvos glicêmicos diferem substancialmente. O NICE-SUGAR comparou um controle intensivo da glicemia (alvo entre 81–108 mg/dL) com um controle convencional (< 180 mg/dL), demonstrando que o controle intensivo aumentava significativamente a mortalidade em 90 dias (27,5% vs. 24,9%) e elevava o risco de hipoglicemia grave. Já o estudo de Ma et al. propôs uma comparação entre um controle liberal (> 180 mg/dL) e outras abordagens menos permissivas. Ou seja, enquanto o NICE-SUGAR testou limites inferiores mais rígidos, o estudo recente avaliou os efeitos de tolerar valores glicêmicos persistentemente mais elevados. Assim, embora ambos demonstrem que extremos no controle glicêmico (tanto muito baixos quanto muito altos) podem ser prejudiciais, seus delineamentos distintos reforçam que a zona segura provavelmente se encontra em metas intermediárias — equilibrando os riscos de hipoglicemia severa com os potenciais efeitos adversos da hiperglicemia prolongada.
Conclusão
O estudo de Ma et al. reforça que, embora o controle glicêmico liberal reduza significativamente a incidência de hipoglicemia, ele pode estar associado a aumento da mortalidade e maior necessidade de diálise. Esses achados se complementam ao estudo NICE-SUGAR (2009), que, com metodologia distinta, demonstrou aumento de mortalidade com metas glicêmicas muito baixas. Ambos evidenciam que extremos no controle da glicemia — seja intensivo ou liberal — podem ser prejudiciais. Assim, estratégias intermediárias, com metas individualizadas, continuam sendo a abordagem mais segura na prática clínica atual.
Mensagens para Casa
- Estratégias de controle glicêmico liberal (>180 mg/dL) reduzem significativamente a incidência de hipoglicemia (até 71%), mas estão associadas ao aumento da mortalidade na UTI (23%) e hospitalar (18%).
- A necessidade de diálise foi cerca de 26% maior no grupo com controle mais permissivo, sugerindo possível impacto da hiperglicemia na função renal.
- O estudo NICE-SUGAR (2009), com abordagem metodológica distinta, já havia demonstrado que metas glicêmicas muito baixas (< 110 mg/dL) aumentam a mortalidade, reforçando que extremos glicêmicos são prejudiciais.
- Tanto o controle intensivo quanto o liberal podem gerar danos. O manejo mais seguro parece estar em metas intermediárias e individualizadas.
- A individualização do alvo glicêmico, com monitoramento contínuo e avaliação do risco de hipoglicemia e hiperglicemia, é essencial na prática clínica.
- Novos estudos são necessários para definir com mais precisão a faixa glicêmica ideal, especialmente em subgrupos de pacientes críticos com diferentes perfis clínicos.
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