O diabetes mellitus (DM) é a principal causa de doença renal crônica terminal (DRC-t) e representa um dos maiores desafios no manejo clínico de pacientes em diálise. A interação entre hiperglicemia crônica, resistência insulínica exacerbada e complicações microvasculares acelera a progressão da doença renal, contribuindo para a alta mortalidade cardiovascular desses indivíduos. Pacientes dialíticos com DM apresentam risco aumentado tanto para hipoglicemia quanto para hiperglicemia, tornando a individualização do tratamento uma necessidade imperativa.
A falência renal avançada altera significativamente o metabolismo da glicose e da insulina, reduzindo a depuração renal de hormônios e medicações hipoglicemiantes. Além disso, a hemodiálise e a diálise peritoneal impactam diretamente a homeostase glicêmica, aumentando a variabilidade glicêmica e desafiando as estratégias tradicionais de controle do diabetes. Nesse contexto, a definição de metas glicêmicas torna-se complexa, pois biomarcadores clássicos, como a hemoglobina glicada (HbA1c), perdem confiabilidade devido a alterações hematológicas comuns na DRC.
Diante desses desafios, o manejo do diabetes em pacientes dialíticos deve equilibrar a necessidade de evitar hipoglicemias graves e minimizar o risco de hiperglicemia prolongada, focando na segurança e na redução do risco cardiovascular. Embora as diretrizes enfatizem a individualização do tratamento, há uma carência de estudos clínicos robustos que definam a abordagem ideal nessa população. Por esse motivo, foi elaborada uma revisão narrativa acerca do tema, publicada recentemente na Diabetes Care, revista da American Diabetes Association (ADA). Trazemos a revisão para discussão dos principais pontos aqui no portal.
Métodos do estudo
O estudo foi uma revisão narrativa, sem metanálise, que buscou analisar as evidências disponíveis sobre o manejo do diabetes em pacientes submetidos à diálise, incluindo dados de ensaios clínicos randomizados, estudos observacionais e diretrizes internacionais. Foram avaliadas estratégias de monitoramento glicêmico, terapias farmacológicas e recomendações personalizadas para pacientes em hemodiálise e diálise peritoneal.
Os estudos analisados incluíram pacientes com diabetes tipo 1 e tipo 2 em diálise, predominantemente adultos, entre 55 e 75 anos, com duração média do diabetes superior a dez anos. A grande maioria dos pacientes apresentava outras complicações microvasculares estabelecidas, como neuropatia periférica ou retinopatia, além de alto risco cardiovascular (dada a alta taxa de eventos cardiovasculares nessa população).
Os dados foram organizados para diferenciar desafios específicos em modalidades de terapia renal substitutiva, como hemodiálise intermitente e diálise peritoneal, que impactam diferentemente o metabolismo glicêmico e a farmacocinética dos hipoglicemiantes.
Resultados
Nenhum ensaio clínico randomizado avaliou qual seria a melhor meta de HbA1c em pacientes diabéticos em hemodiálise. É sabido que em pacientes não dialíticos, extremos de HbA1c podem se associar a maiores riscos de complicações, sendo que metas muito restritivas como HbA1c < 6% podem até mesmo se associar a maior risco de mortalidade. Ainda, há a limitação da interpretação da HbA1c no cenário da diálise, uma vez que esta pode ser falsamente elevada (sobretudo se presença de anemia ferropriva, devido ao menor turnover de hemácias) ou falsamente reduzida (uso de eritropoetina ou mesmo pela lise celular induzida mecanicamente pela diálise, promovendo maior turnover de hemácias).
Apesar de não haver estudos randomizados, a recomendação atual dos principais guidelines do mundo é de se manter uma meta não tão restritiva, considerando o risco de hipoglicemias. A ADA, por exemplo, recomenda em situações de menor expectativa de vida, presença de comorbidades graves e/ou risco de hipoglicemias a ter uma meta de HbA1c < 8%, o que poderia ser aplicável aos pacientes dialíticos. Os autores da revisão destacam o posicionamento da Joint British Diabetes Societies (JBDS), que traz a recomendação de que HbA1c < 6% ou > 9,5% devem ser evitadas.
Quanto à monitorização glicêmica, os CGMs (monitores contínuos de glicose) tem se mostrado uma ferramenta útil para detectar tendências glicêmicas e reduzir episódios de hipoglicemia, mas sua aplicabilidade em larga escala ainda carece de maior validação, especialmente considerando as variações na precisão dos sensores em pacientes dialíticos. Há pequenos estudos que indicam que tais ferramentas podem sim ser úteis na avaliação de tais pacientes. A JBDS sugere o uso de CGMs em pacientes dialíticos sobretudo para monitorização de risco de hipoglicemias.
Não há exatamente uma contraindicação ao seu uso nesse cenário, mas é fundamental atentar sobretudo nos extremos de glicose intersticial e utilizar a monitorização clássica com a glicemia capilar em situações de dúvida.
MANEJO DO DIABETES EM PACIENTES DIALÍTICOS
Insulinoterapia
A insulina é a principal ferramenta para o controle glicêmico nessa população, mas seu manejo deve ser ajustado com cautela devido a uma série de fatores. Em primeiro lugar, é preciso lembrar da alteração em sua farmacocinética nesse contexto: A depuração renal reduzida aumenta o tempo de ação da insulina, tornando o ajuste posológico fundamental para evitar hipoglicemia. Também é importante destacar o seu ajuste conforme a diálise, já que durante a hemodiálise pode haver remoção significativa da insulina pelo dialisador, uma vez que a insulina é absorvida pela membrana de diálise, resultando em hiperglicemia pós-diálise, seguida por uma sensibilização significativa à insulina no dia seguinte à diálise. Embora não exista um padrão único, é importante ter em mente essa dinâmica para melhores ajustes de doses de insulina em pacientes dialíticos.
Quanto ao uso de análogos ultrarrápidos e degludeca, ambos podem ser preferíveis por menor risco de hipoglicemias e maior estabilidade glicêmica.
Sulfonilureias
As sulfonilureias estão associadas a risco elevado de hipoglicemia. Medicações como glibenclamida e gliclazida se acumulam na insuficiência renal avançada, prolongando o efeito hipoglicemiante. A opção “menos problemática” da classe seria a glipizida, que tem metabolismo predominantemente hepático. Os autores da revisão recomendam que esta medicação poderia ser utilizada com monitoramento rigoroso, mas deveria ser evitada em pacientes com hipoglicemias frequentes. A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) recomenda evitar seu uso em situações onde a taxa de filtração glomerular (TFG) seja < 15 ml/min e, portanto, não a utilizar em pacientes dialíticos.
Inibidores de DPP-4
Os inibidores de dipeptidil peptidase-4 (DPP-4) são considerados uma opção segura devido ao baixo risco de hipoglicemia em pacientes com DRC, uma vez que é possível ajustar sua dose nos variados estratos de função renal. Contudo, em pacientes dialíticos, nem todas as opções são recomendáveis, devendo ser analisado cada caso:
– Linagliptina: Metabolizada por via hepática, não requer ajuste de dose e apresenta perfil de segurança favorável.
– Sitagliptina e vildagliptina: Embora possam ser utilizadas, necessitam de ajustes de dose.
Agonistas de GLP-1
Os agonistas de GLP-1 apresentam benefícios cardiovasculares, mas seu uso é limitado em pacientes dialíticos devido a efeitos colaterais e risco teórico de acúmulo. Efeitos gastrointestinais exacerbados, como náuseas e perda de peso excessiva podem ser problemas importantes em pacientes com tendências ou já desnutridos. Os autores da revisão discutem, ainda, que algumas formulações podem ter depuração reduzida na DRC-t, embora a liraglutida tenha sido estudada em pacientes com disfunção renal grave sem evidência clara de acúmulo tóxico. Não há recomendações de formas de uso da tirzepatida ou da semaglutida em pacientes dialíticos. Por tal motivo, a classe não deve ser recomendada em pacientes dialíticos até o momento.
Inibidores de SGLT2
Os inibidores do cotransportador de sódio-glicose tipo 2 (SGLT2) não são recomendados para início em pacientes dialíticos, pois sua eficácia na redução da glicemia depende da filtração glomerular preservada. O impacto desses agentes em pacientes dialíticos ainda não foi completamente estabelecido e, apesar da classe apresentar efeitos benéficos na DRC, os seus benefícios se limitam até o momento em reduzir a progressão da doença renal, sendo indicado seu início quando a TFG for > 20 ml/min e mantidos até início da terapia de substituição renal, quando devem ser interrompidos.
Alguns estudos exploram a segurança da continuação do uso em pacientes que já utilizavam antes da diálise, devido a potenciais benefícios cardiovasculares e hemodinâmicos, mas as evidências ainda não são robustas ou generalizáveis a ponto de trazer alguma mudança de recomendação.
Perspectivas
O manejo do diabetes em pacientes dialíticos exige um equilíbrio entre controle glicêmico adequado e prevenção de eventos adversos, especialmente hipoglicemia. A insulina continua sendo a principal estratégia terapêutica, mas seu ajuste deve levar em consideração os dias de diálise e a variabilidade glicêmica. Agentes orais como inibidores de DPP-4 podem ser alternativas viáveis. As sulfonilureias, por outro lado, devem ser evitadas sempre que possível. Já os agonistas de GLP-1 e inibidores de SGLT-2 carecem de estudos que comprovem segurança e eficácia na redução de outros desfechos, sobretudo cardiovasculares, especificamente na população dialítica.
Conclusão e mensagem prática
Futuras pesquisas devem focar no desenvolvimento de algoritmos específicos para ajuste de insulina em pacientes dialíticos, bem como na avaliação de novas terapias que possam beneficiar essa população de maneira segura. Além disso, a implementação de estratégias que combinem inteligência artificial com monitoramento glicêmico contínuo pode representar um avanço significativo no controle do diabetes em pacientes submetidos à terapia renal substitutiva.
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