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Reumatologia25 setembro 2023

Abordagem do paciente com gota

Os pacientes com gota apresentam alto risco cardiovascular e, portanto, é fundamental a avaliação do perfil lipídico e glicêmico.

Por Gustavo Balbi

O termo artrites microcristalinas se refere a um grupo de artropatias inflamatórias causadas pelo depósito de substâncias capazes de se cristalizar no interior da articulação e provocar uma exuberante reposta inflamatória. O protótipo do grupo é a gota, mas outras causas como a doença por depósito de pirofosfato de cálcio (CPPD) e a doença por cristais de fosfato básico de cálcio também estão implicadas. Devido a sua grande prevalência, um maior enfoque será dado à gota, com comparações com as outras em momentos pertinentes. 

Saiba mais: Novos critérios de classificação para doença por depósito de pirofosfato de cálcio

gota

Epidemiologia 

A gota é a artropatia inflamatória mais comum em todo o mundo, com prevalência variando de 1-5% de toda a população, dependendo da série analisada, e incidência de 2,9 por 1.000 pacientes-ano. Nas últimas décadas, houve uma tendência no aumento da prevalência da gota, devido a fatores dietéticos (maior ingestão de proteínas, alimentos ricos em purina, bebidas adoçadas), aumento da longevidade, uso de fármacos hiperuricemiantes (como diuréticos e ácido acetilsalicílico), doença renal crônica e síndrome metabólica.

Existe uma clara predominância do sexo masculino (7-9:1); no entanto, essa desproporção tende a diminuir com o aumento da faixa etária analisada, especialmente após a menopausa (estrogênio possui efeito uricosúrico – relação 3:1, após os 65 anos de idade). O pico de incidência acontece entre 30-60 anos nos homens e 55-70 anos nas mulheres. 

Dados epidemiológicos da CPPD são escassos. A maioria dos estudos são baseados na identificação de condrocalcinose em exames radiográficos, o que não reflete, de fato, todo seu espectro clínico. No entanto, sabemos que há uma maior prevalência em pacientes do sexo feminino e que o pico de incidência ocorre em uma idade muito mais avançada que a da gota, próxima dos 80 anos de idade. Existe associação com algumas doenças sistêmicas, como hiperparatireoidismo, hipomagnesemia e hipofosfatasia. Dados epidemiológicos sobre a doença por cristais de fosfato básico são ainda mais precários. 

Etiopatogênese 

A gota decorre da supersaturação do urato monossódico (UMS) nos tecidos, levando à formação de cristais e depósito orgânico. O limite de solubilidade do urato em fluidos corporais no pH de 7,4 e temperatura de 37ºC é de 7 mg/dL, o que corresponde à definição fisico-química da hiperuricemia. A redução de temperatura que ocorre nas extremidades do corpo faz com que o coeficiente de solubilidade o urato se reduza, fazendo com que as crises predominem em articulações periféricas, especialmente dos membros inferiores. 

Assim, para que ocorra gota, é necessário que haja acúmulo de ácido úrico para níveis acima desses valores, o que acontecesse quando há um desbalanço entre sua produção (1/3 das purinas provém da dieta e 2/3 da síntese endógena) e excreção (2/3 da excreção é renal [via URAT1] e 1/3 é intestinal). A maioria dos pacientes portadores de gota são hipoexcretores renais (90%); nos 10% restantes, há excesso de produção endógena de urato, proveniente da metabolização das purinas.

Existem erros inatos do metabolismo, como superexpressão da enzima PRPP e deficiência da enzima HGPRT, que estão associados com uma produção excessiva de urato e início muito precoce de gota. Outras condições em que existe um turnover celular aumentado, como na psoríase, leucemias e síndrome de lise tumoral, podemos observar aumento nos níveis de ácido úrico. 

Fisiopatologia 

Com a supersaturação do ácido úrico, ocorre formação dos cristais que começam a se depositar nos tecidos, com particular interesse na sinóvia. Quando há variações nos níveis séricos de ácido úrico, existe uma mobilização dos depósitos, que se tornam livres no líquido sinovial.

Na presença de cofatores (como ácidos graxos livres), esses cristais de ácido úrico funcionam como DAMPS (padrão molecular relacionado a dano) para o sistema imune inato e acabam ativando os toll-like receptors 2 (TLR-2). Isso leva à ativação do inflamassoma NLRP3, que funciona como uma plataforma ativadora de caspase e conversão de pró-IL1ß em IL-1ß, que, por sua vez, ativa o TNF. Com isso, há produção de diversos fatores quimiotáticos, citocinas inflamatórias, eicosanoides e aporte de monócitos, mastócitos e neutrófilos. Os cristais também são opsonizados e fagocitados, o que amplia ainda mais o processo inflamatório, gerando a crise aguda de gota. 

Outras manifestações da gota estão relacionadas ao depósito tecidual e ao efeito compressivo exercido pelos tofos, aglomerados de depósitos de cristais de urato monossódico. 

Quadro clínico da gota

Antes de surgir qualquer sintoma relacionado à doença, a gota passa por um período de hiperuricemia assintomática (fase pré-clínica), que pode durar vários anos ou décadas. A taxa de conversão para gota clinicamente manifesta é tão maior quanto maiores os níveis séricos de ácido úrico. 

Na maioria dos casos, a primeira manifestação clínica da gota é uma crise aguda, geralmente próxima dos 40 anos de idade. A crise aguda de gota tem características típicas, como um surgimento hiperagudo, com intensa sinovite (inclusive com hiperemia articular) e alodínia (muitos pacientes não conseguem suportar o toque de um lençol, por exemplo). Associado ao quadro, surge importante impotência funcional, com incapacidade de deambulação devido ao quadro de dor.

Alguns pacientes podem relatar traumas menores precedendo o quadro. Os sítios mais frequentemente acometidos são as primeiras metatarsofalangianas (podagra), tornozelos e joelhos (gonagra). O quadro apresenta boa resposta aos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), porém se resolve espontaneamente em 1-2 semanas, independente da intervenção feita. Para fins de comparação, a crise aguda de CPPD geralmente tem intensidade menor e duração mais prologanda (2-4 semanas) do que a crise aguda de gota. 

Após esse período, o paciente pode passar por um período variável sem sintomas, conhecido como período intercrítico, que pode durar meses. Se a doença não for tratada adequadamente, a tendência é que as crises se tornem mais frequentes, encurtando o período intercrítico, e com tendência ao acometimento de mais articulações simultaneamente.

Caso a doença progrida, o paciente pode evoluir com um quadro cronicamente sintomático, associado a lesões estruturais articulares e presença de tofos (gota avançada). Os tofos podem estar presentes em qualquer lugar do corpo, mas tendem a predominar em torno das articulações, bursas dos cotovelos e pavilhão auricular. Muitos pacientes apresentam complicações renais da doença, evoluindo com uropatia por urato ou nefrolitíase de repetição. 

Leia também: Como fazer a avaliação inicial das vasculites sistêmicas?

Exames complementares 

O diagnóstico da gota é clínico e laboratorial. Exames de imagem auxiliam na avaliação da progressão do dano relacionado à doença. 

Os níveis séricos elevados de ácido úrico são a condição primordial para o desenvolvimento da patologia. Apesar disso, seu valor diagnóstico é limitado durante as crises agudas (podem reduzir agudamente). O ideal é que a dosagem seja feita quatro semanas após a última crise, se possível.

A uricosúria de 24 horas também deve ser avaliada, uma vez que a maioria dos pacientes são hipoexcretores e uma das estratégias de tratamento é utilizar medicações uricosúricas (contraindicadas em pacientes com grande excreção renal ou nefrolitíase).

Os pacientes com gota apresentam alto risco cardiovascular e, portanto, é fundamental a avaliação do perfil lipídico e glicêmico, visando o controle dos fatores de risco cardiovascular. 

O diagnóstico definitivo da gota é dado pela sinovianálise a fresco do líquido sinovial, geralmente obtido no momento da crise aguda (artrocentese ou punção de bursa inflamada). O aspecto do líquido sinovial é turvo durante a crise, devido à alta concentração de leucócitos (leucometria global geralmente excede 50.000-100.000/mL, com grande predomínio de neutrófilos); pode assumir também o aspecto de giz molhado (líquido branco e bastante espesso, pela presença de cristais).

Além disso, há uma redução da viscosidade pela liberação de hialunoridases neutrofílicas no interior da articulação. O diagnóstico final é dado pela visualização, através da microscopia com luz polarizada, de cristais em formato de agulha, com forte birrefringência negativa e tendência à formação de nichos, especialmente se fagocitados por leucócitos (sinal patognomônico da crise aguda de gota). O mesmo procedimento pode ser feito para conteúdos de tofos e bursas inflamadas. Observação: os cristias da CPPD são fracamente birrefringentes positivos (20% dos casos apenas), com aspecto romboide. 

Quanto aos exames de imagem, a radiografia simples das articulações pode demonstrar desalinhamentos, erosões em saca-bocado com halo esclerótico (sinal de Martel), que não respeita nenhuma região específica, associado à presença de massas arredondadas em partes moles (tofos). Na ultrassonografia, podemos identificar o sinal do duplo contorno, que está relacionado à deposição de urato sobre a cartilagem articular (especificidade de 95%), além de tofos. O sinal da nevasca pode ser visto durante as crises agudas. A ressonância magnética pode identificar tofos e sinovite.

Mais recentemente, a tomografia computadorizada de dupla energia (DECT) permite detectar depósitos incipidentes de urato e, inclusive, diferenciá-los dos depósitos de cristais de cálcio. Com relação às demais artrites microcristalinas, o principal indício da CPPD é a presença de condrocalcinose em exames de imagem, normalmente em joelhos, fibrocartilagem triangular do carpo, sínfise púbica e articulações coxofemorais. Calcificação de estruturas periarticulares ou destruição da articulação do ombro (ombro de Milwaukee) sugerem depósitos de fosfato básico de cálcio. 

Classificação e diagnóstico da gota

O diagnóstico da gota é clínico e laboratorial. Ele pode ser endossado pelos critérios de classificação vigentes, publicados pelo ACR/EULAR em 2015 (não desenvolvidos para propósitos de diagnóstico). 

Esses critérios são avaliados em três etapas: a primeira etapa diz respeito ao critério de inclusão, que é a ocorrência de pelo menos um episódio de edema, dor ou sensibilidade em uma articulação.

Caso o paciente preencha esse critério, o médico está autorizado a passar para a segunda etapa, que consiste na identificação de cristais de urato monossódico em articulação sintomática ou tofo. Esse critério é considerado suficiente para a classificação.

Caso o paciente não apresente cristais ou a sinovianálise não foi realizada, o médico deve passar para o terceiro passo. Esse passo consiste na soma de diferentes critérios ponderados, divididos em grupos: clínicos (padrão de envolvimento articular, características dos episódios, evolução dos episódios ao longo do tempo), laboratoriais (níveis de urato sérico e ausência de cristais) e de imagem (presença de depósitos de urato na radiografia, ultrassonografia ou DECT). Se a soma total for de 8 pontos ou mais, o paciente é classificado como portador de gota. 

Diagnóstico diferencial

Durante as crises agudas de gota, os principais diagnósticos diferenciais a serem considerados são aqueles que provocam monoartrite aguda: artrite séptica, trauma, osteoartrite e CPPD. Com a progressão do quadro, pode fazer diagnóstico diferencial com outras artropatias inflamatórias, como artrite reumatoide e espondiloartites (incluindo artrite psoriásica). 

Tratamento da gota

O tratamento da gota envolve medidas não farmacológicas e farmacológicas.  

Com relação ao tratamento não farmacológico, o paciente deve ser orientado a adotar hábitos de vida saudável. Pela grande associação com fatores de risco cardiovascular, o paciente deve ser orientado a fazer um controle adequado da hipertensão, dislipidemia, diabetes, obesidade e síndrome metabólica, quando presentes.

Quanto à alimentação, o paciente deve ser orientado a manter uma dieta hipocalórica e evitar abuso de alimentos contendo grandes quantidades de purina, como carnes vermelhas, frutos do mar, bebidas alcoólicas (em especial a cerveja e fermentados), refrigerantes e bebidas adoçadas. Apesar disso, dietas extremamente restritivas de purina são impalatáveis, com baixa eficácia (tamanho de efeito da redução do urato por volta de 1 mg/dL) e com muito baixa adesão no longo prazo. A reabilitação deve ser iniciada tão logo seja possível, com maior benefício naqueles já com alterações articulares relacionados à doença. 

O tratamento farmacológico da gota acontece em três modalidades distintas: (1) tratamento da crise aguda, (2) terapia uricorredutora, (3) tratamento profilático de crises. 

O tratamento da crise aguda envolve o uso de fármacos capazes de realizar o controle adequado do processo inflamatório agudo. Dentre eles, destacam-se os AINEs, os glicocorticoides e a colchicina.

A escolha do fármaco dependerá da tolerância e presença de comorbidades. Habitualmente, a primeira linha de tratamento são os AINEs, pelo seu efeito analgésico potente. No entanto, essas medicações devem ser evitadas em pacientes com doença renal crônica e não devem ser utilizados continuamente, pelo risco de eventos adversos. A corticoterapia, tanto sistêmica quanto local, é uma boa opção no tratamento das crises agudas. É mais segura que os AINEs em pacientes com doença renal crônica e pode ser realizada através de infiltração articular, o que garante mínima absorção sistêmica.

A colchicina age inibindo a polimerização de microtúbulos do citoesqueleto de neutrófilos, dificultando a diapedese para o interior da articulação. Dessa forma, são mais eficazes nas primeiras 36 horas de crise, na dose de 0,5 mg de 8/8 horas no primeiro dia, seguida de 0,5 mg de 12/12 horas. Deve ser utilizada com cuidado em pacientes com doença renal crônica, necessitando de ajuste de dose conforme o clearance de creatinina (tabela de Terkeltaub). 

A terapia uricorredutora é indicada para pacientes portadores de gota com duas ou mais crises agudas por ano, presença de tofos ou dano articular radiográfico e presença de uropatia por urato/nefrolitíases. Além disso, também pode ser considerado para pacientes com menos de 40 anos, altos níveis de urato sérico (>8 mg/dL) ou alto risco cardiovascular.

Classicamente, devemos esperar o controle de uma crise aguda para início da terapia uricorredutora, apesar de já existirem estudos com boa qualidade metodológica demonstrando que é possível o início desse tratamento mesmo na vigência de crise, sem desfechos deletérios para o paciente. Dentre as opções terapêuticas, temos os inibidores da xantina oxidase (alopurinol e febuxostato – esse último não disponível no Brasil), que são a primeira escolha de terapia uricorredutora, e os uricosúricos (único disponível no Brasil: benzobromarona), que podem ser utilizados em pacientes que não atingem o alvo com o alopurinol e apresentam uricosúria de 24 horas <1000 mg/dia sem histórico de nefrolitíase.

Com relação ao alopurinol, a estratégia terapêutica preferida é o start low, go slow: deve-se iniciar com doses baixas (50-100 mg), com incrementos de 50-100 mg após 2-4 semanas com avaliação laboratorial. Essa estratégia diminui o risco de reações cutâneas graves causadas pela medicação (síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol). 

Por fim, todo paciente que recebe terapia uricorredutora deve ser tratado com medicações profiláticas para crise de gota, uma vez que a oscilação dos níveis séricos de urato pode precipitar crises. A droga preferida é a colchicina na dose de 0,5 mg de 12/12 horas (corrigida pela função renal). Caso a colchicina seja contraindicada, baixas doses de AINEs ou de corticoide podem ser utilizadas. O tratamento profilático deve ser mantido por, no mínimo, 6 meses, de preferência com o paciente sem crises, no alvo terapêutico proposto e com reabsorção de tofos. 

Os alvos terapêuticos da gota são: ácido úrico <6 mg/dL para pacientes sem tofos e <5 mg/dL para pacientes com tofos, sem a ocorrência de crises agudas. 

Com relação às outras artrites microcristalinas, faltam estudos que nos permitam recomendar tratamentos baseados em evidência científica. Geralmente, o tratamento se baseia no controle do processo inflamatório durante as crises, de maneira análoga ao que é feito para a gota. No entanto, não existem tratamentos eficazes, capazes de reduzir o pool de cristais na articulação.  

Veja ainda: Pregabalina é eficaz no tratamento da ciatalgia, dor do nervo ciático?

Conclusão 

As artrites microcristalinas são doenças que cursam com crises agudas que podem progredir para sintomas crônicos, limitando a função articular e consequentemente a qualidade de vida. A identificação e tratamento adequados permitem uma redução nos danos. 

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Referências bibliográficas

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