Em pacientes pediátricos oncológicos, o manejo da dor neuropática (DN) continua sendo um desafio. As maiores dificuldades encontradas para sua avaliação e manejo incluem a subjetividade da dor, a escassez de ensaios clínicos e de medicamentos, além da ausência de diretrizes específicas. Na tentativa de esclarecer melhor essas questões, pesquisadores italianos conduziram uma revisão narrativa da literatura publicada recentemente no Cancers (Basel) e cujos tópicos mais relevantes encontram-se sintetizados a seguir.
Introdução
A Associação Internacional para o Estudo da Dor (International Association for the Study of Pain – IASP) define a DN como uma condição dolorosa crônica causada por “uma lesão ou doença do sistema nervoso somatossensorial”. Dessa forma, a DN não consiste em um diagnóstico, devendo ser considerada uma descrição clínica de uma condição dolorosa. Na suspeita de DN, deve haver confirmação através da demonstração de uma lesão real do sistema nervoso somatossensorial, seja por meio de exames (laboratoriais, de imagem ou neurofisiológicos), ou biópsias, ou pela evidência de uma doença subjacente, que provavelmente seja a causa da lesão.
Em pediatria, a dor crônica tem uma prevalência geral variável de 5 a 6%, todavia, a DN é geralmente mais frequente em adultos, embora a prevalência exata em crianças seja desconhecida.
Etiologia
- DN relacionada ao câncer
- O neuroblastoma é o tumor sólido extracraniano mais comum na infância e surge no sistema nervoso simpático.
- DN induzida por quimioterapia
- A neuropatia periférica induzida por quimioterapia (NIPQ) tem uma prevalência de 90% em pacientes pediátricos oncológicos;
- A NIPQ pode ser classificada em: Grau 1: parestesia e diminuição dos reflexos tendinosos; Grau 2: parestesia grave e fraqueza leve; Grau 3: parestesia intolerável e perda motora acentuada; Grau 4: paralisia;
- Oxaliplatina e carboplatina foram correlacionadas com uma incidência de NIPQ de grau 1/2, variando de 37% a 50% com oxaliplatina e cerca de 4% com carboplatina.
- DN induzida por radioterapia
- Nervos cranianos ou periféricos são acometidos nas formas mais frequentes de neuropatias periféricas induzidas por radioterapia (NPIR). A DP, nesse caso, consiste no resultado de lesão nervosa direta por desmielinização ou dano axonal, ou compressão nervosa indireta por fibrose tecidual em resposta à inflamação induzida por radiação. Os efeitos colaterais induzidos pela radiação, incluindo a DN, são dependentes da dose e do volume. No entanto, técnicas mais atuais de irradiação têm diminuído significativamente sua incidência.
- Dor crônica pós-cirúrgica
- Está relacionada à contusão, transação, estiramento e inflamação das estruturas nervosas. É altamente prevalente em jovens com osteossarcoma, tanto após cirurgia de preservação do membro quanto após amputação (dor do membro fantasma).
Saiba mais: Opções terapêuticas para dor neuropática
Diagnóstico
Há muitos obstáculos para a avaliação precisa da DN em crianças e adolescentes. Pode haver suspeita de DN quando a história clínica sugere uma possível doença ou lesão do sistema somatossensorial e a distribuição da dor seja neuroanatomicamente plausível.
Escalas validadas para medição da DN em pacientes pediátricos não estão disponíveis, dada a escassa capacidade de crianças pequenas de usar escalas visuais analógicas (EVA) ou numéricas (EVN), assim como existe a dificuldade de avaliar as características temporais e qualitativas da dor (alfinetadas ou agulhadas, beliscões, choque elétrico, facadas, formigamento, irradiação, picadas, pontadas, queimação).
Em geral, a avaliação da dor em pediatria é feita por meio de escalas. As mais utilizadas incluem: EVA; COMFORT; Child Revised Impact of Events Scale (CRIES); Face, Legs, Activity, Cry, Consolability (FLACC), e Neonatal Infant Pain Scale (NIPS). Contudo, a adequação desses instrumentos para DN ainda não foi realizada. A Escala Oucher e a Escala de Faces de Wong-Baker utilizam um espectro de expressões faciais úteis para a avaliação da dor, mas não são válidos para crianças menores de 3 anos e não são validados para DN. O Adolescent Pediatric Pain Tool (APPT) é uma escala validada para crianças e adolescentes de oito a 17 anos e consiste em uma avaliação multidimensional de autorrelato referente à localização, intensidade e tipo de dor. Entretanto, compreende uma quantidade limitada de descritores associados à DN. Dessa forma, pode ser útil como escala para avaliação inicial da DN, mas há necessidades de mais estudos. Em 2023, Hess e colaboradores aplicaram o conhecido questionário PainDETECT à uma população pediátrica e os resultados parecem ser promissores.
Avaliação da DN em pacientes pediátricos oncológicos
- O primeiro passo consiste na anamnese: avaliar se o paciente tem histórico de lesão ou doença relevante do sistema nervoso somatossensorial. Além disso, devemos avaliar se a distribuição da dor é neuroanatomicamente plausível. Exemplos: cirurgia, infiltração/compressão tumoral, quimioterapia, radioterapia, reativação do vírus varicela-zoster e tumores primários no sistema nervoso;
- Se o diagnóstico é possível após obtenção de dados de anamnese, devemos passar para o exame físico, avaliando-se dor associada a sinais sensoriais na mesma área, com distribuição neuroanatomicamente plausível. Exemplos de anormalidades sensoriais: alodinia / hiperalgesia, disestesia / parestesia, sinais sensoriais negativos (forte valor preditivo positivo);
- Se alterações forem encontradas no exame físico, o diagnóstico se torna provável. A partir daí, há necessidade de realização de testes diagnósticos para confirmação da doença ou lesão do sistema nervoso somatossensorial que justifique a dor. Esses testes englobam: técnicas morfométricas; técnicas psicofísicas, como o teste sensorial quantitativo, e técnicas neurofisiológicas (potencial evocado somatossensorial, estudos de condução nervosa e biópsia cutânea). Segundo uma força-tarefa da European Academy of Neurology (EAN), da European Pain Federation (EFIC) e do Neuropathic Pain Special Interest Group (NeuPSIG) da IASP, a recomendação para biópsia de pele é forte. Por outro lado, a recomendação para testes sensoriais quantitativos e potenciais evocados nociceptivos é fraca. Infelizmente, os dados sobre a utilidade diagnóstica em crianças ainda são escassos.
Abordagem terapêutica
Medidas não farmacológicas
Diversas estratégias não farmacológicas estão disponíveis, como acupuntura, mindfulness e reabilitação física, com pouquíssimas contraindicações. Essas medidas podem ser integradas com sucesso à terapia farmacológica.
Medidas farmacológicas
Analgésicos simples (como o paracetamol), corticoides (como a dexametasona) e opioides, são conhecidos por modular a expressão de transportadores, nomeadamente a glicoproteína P, através da barreira hematoencefálica (BHE) e em diversos tecidos corporais, impedindo que agentes quimioterápicos alcancem e penetrem nos órgãos-alvo.
Tratamento direcionado ao tumor.
Em primeiro lugar, as medidas farmacológicas devem sempre considerar a possibilidade de mitigar a dor através do tratamento direcionado ao tumor. Exemplo: podem ser administrados corticoides quando as neoplasias comprimem estruturas nervosas, causando edema e DN.
- Dexametasona:
- Dose: 0,25 mg/kg intravenosa (IV) ou via oral (VO) a cada seis horas, variando de 4 a 16 mg/dia.
Analgésicos simples
- Paracetamol:
- Faltam evidências sobre sua eficácia na dor crônica e cuidados paliativos em pediatria;
- Não é incluído como terapia de primeira escolha para DN;
- É frequentemente usado como terapia adjuvante, devido ao seu efeito poupador sobre outros analgésicos;
- Único analgésico recomendado para bebês com menos de 3 meses;
- Dose recomendada: 10 a 15 mg/kg a cada seis horas. Doses máximas: 6 a 12 meses: 60 mg; > 12 anos: 1000 mg;
- Deve-se evitar o uso prolongado, especialmente em crianças com risco de insuficiência renal e hepática.
Anti-inflamatórios não esteroidais (AINE)
- Não são indicados para DN;
- Efeitos colaterais: cefaleia, comprometimento da função renal, constipação, diarreia, dor abdominal, erupções cutâneas, náuseas, lesões gástricas e sangramentos.
Opioides
- São usados em crianças para dor aguda e crônica, especialmente no contexto perioperatório e oncológico, mas não há evidências robustas quanto ao uso prolongado;
- Sua prescrição demanda titulação e monitoramento rigorosos, devido aos riscos de efeitos adversos (especialmente respiratórios);
- Tramadol e codeína: não devem ser prescritos para menores de 12 anos conforme recomendações do Food and Drug Administration (FDA);
- Dor intensa ou refratária:
- Morfina: 0,3 mg/kg a cada 3–4 horas, VO. Aprovada pelo European Medicines Agency (EMA) para uso em neonatos, mas não foi aprovada pelo FDA para a população neonatal;
- Fentanil por sistema terapêutico transdérmico (STT): 12 mcg/h a cada 72 h. Pode ser usado a partir de 2 anos (EMA e FDA).
Anticonvulsivantes e antidepressivos
- Primeira linha para DN, independentemente da doença de base, desde os estágios iniciais até os cuidados em fim de vida;
- Gabapentinoides (gabapentina e pregabalina): seu uso é baseado em evidências da literatura adulta, sendo necessário ajustar as doses conforme o peso, mas ainda não há muitos dados.
- Gabapentina: < 15 kg: 7 a 63 mg/kg, 3 vezes ao dia; ≥15 kg: 5 a 45 mg/kg, 3 vezes ao dia;
- Pregabalina: pode ser considerada como terapia de segunda linha quando a gabapentina for ineficaz ou mal tolerada. Dose pediátrica usual inicial em epilepsia: 2,5 a 3,5 mg/kg por dia, dividida em três doses, até o máximo de 600 mg por dia. A dose depende do peso corporal: ≥30 kg: 2,5 mg/kg/dia; < 30 kg: 3,5 mg/kg/dia.
- Antidepressivos:
- Efeitos adversos: manifestações anticolinérgicas (boca seca), constipação, retenção urinária, hipotensão postural e alterações na condução cardíaca, como prolongamento do intervalo QT, com risco de torsade de pointes e morte súbita;
- Sempre realizar um eletrocardiograma basal (ECG) antes do início do tratamento;
- Amitriptilina ou nortriptilina;
- Duloxetina: ≥ 7 anos: 30 mg uma vez ao dia por duas semanas, podendo ser aumentada até o máximo de 60 mg uma vez ao dia.
Comentários
Achei a revisão muito importante e oportuna, dada a escassez de informações acerca do tema em pediatria. Alguns pontos que observei:
- A escala COMFORT tem atualmente sido substituída pela COMFORT-Behavior. Isso porque a COMFORT utiliza frequência cardíaca (FC) e pressão arterial (PA) na avaliação de dor. As recomendações hoje são de se utilizar parâmetros comportamentais. Dessa forma, a COMFORT-Behavior suprime os sinais vitais em detrimento apenas de observações relacionadas ao comportamento da criança;
- A dipirona é proibida em vários países. No Brasil, usamos a dipirona com bastante frequência, mas, de fato, o medicamento não foi mencionado no texto. É importante lembrar que a dipirona não é recomendada para crianças com menos de cinco quilos ou com idade inferior a três meses (seu uso é off-label nessas condições);
- Apesar de citarem a amitriptilina e a nortriptilina como antidepressivos usados na DN, os autores não colocam suas doses. Segundo o Whitebook:
- Amitriptilina (depressão): 10 a 50 mg/dia VO;
- Nortriptilina: não há estudos de segurança na população pediátrica.
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