Jornada Anual de Pneumologia Pediátrica - Atualização em fibrose cística
Na Jornada Anual de Pneumologia Pediátrica da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ), o tema “Fibrose Cística” foi abordado pela pediatra e pneumologista pediátrica Dra. Tânia Wrobel (Instituto Fernandes Figueira – IFF). A Dra. Tânia palestrou sobre o estado da arte da doença. Os pontos principais da aula são destacados a seguir.
Introdução
A fibrose cística (FC) é uma doença genética autossômica recessiva, causada por alterações no gene chamado CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Regulator), gerando desequilíbrio na concentração de cloro e de sódio nas células que produzem as secreções do corpo, como muco e suor. É também conhecida como “doença do beijo salgado” ou “doença do suor salgado”.
Epidemiologia
Há cerca de 105.000 pessoas com a doença no mundo todo (ECFS Patient Registry Annual Data Report 2022). No Brasil, são 6.427 pacientes segundo dados de 2021 do Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC), sendo que aproximadamente 50% dos pacientes têm cinco ou mais anos de seguimento e 25% já são adultos.
Manifestações clínicas da fibrose cística (FC)
Devido a uma mutação no gene da FC, ocorre um defeito no transporte de íons, com consequente redução na secreção de fluidos e aumento na concentração de macromoléculas, gerando uma tubulopatia obstrutiva que culmina em sinais e sintomas nos pulmões, pâncreas, intestinos, fígado e testículos. Exemplos de manifestações clínicas da FC incluem:
Doença sinopulmonar crônica
- Colonização/infecção persistente por patógenos comuns em FC;
- Tosse produtiva crônica;
- Obstrução de vias aéreas: sibilância e aprisionamento de ar;
- Baqueteamento digital;
- Pólipos nasais, alterações em radiografia e tomografia computadorizada de seios paranasais;
- Alterações radiológicas persistentes.
Anormalidades gastrointestinais/nutricionais
- Intestinos: íleo meconial, obstrução intestinal distal, prolapso retal;
- Pâncreas: insuficiência pancreática, pancreatite crônica;
- Fígado: icterícia neonatal prolongada, doença hepática crônica;
- Nutrição: ganho pondero-estatural insuficiente, hipoproteinemia e edema, hipovitaminose.
Síndromes de perda de sal
- Depleção aguda de sal;
- Alcalose metabólica crônica.
Anormalidades genitais masculinas
- Agenesia congênita de vasos deferentes;
- Azoospermia obstrutiva.
Diagnóstico
É feito de acordo com os critérios da CFF (Cystic Fibrosis Foundation):
- I:
- Ia) Manifestações clínicas de FC;
- Ib) História familiar de FC;
- Ic) Teste screening da FC (teste do tripsinogênio imunorreativo – TIR) – teste do pezinho
+
- II:
- IIa) Dois testes de suor positivos;
- IIb) Medida da diferença de potencial nasal;
- IIc) Identificação da mutação em 2 alelos.
Triagem neonatal
- Pode identificar 90-95% dos casos de FC;
- A detecção precoce é essencial, devido às repercussões da doença sobre os quadros nutricional e respiratório, principalmente;
- A obstrução da luz pancreática ocasiona menor secreção de TIR, gerando níveis elevados de TIR no sangue (identificados no teste do pezinho);
- O teste tem sensibilidade de 87%, com especificidade menor. Pode haver falsos positivos e falsos negativos;
- A TIR tende a diminuir em algumas semanas, dessa forma, o teste do pezinho se restringe ao primeiro mês de vida. A coleta deve ser feita com sangue em papel-filtro entre o segundo e o quinto dias de vida do recém-nascido (RN). Caso o valor venha acima do ponto de corte, uma segunda dosagem deve ser feita, no máximo, até o trigésimo dia de vida do bebê. Caso o valor se mantenha acima do ponto de corte, a confirmação diagnóstica deve ser feita através do teste do suor e da análise genética. Além disso, a criança deve ser encaminhada para consulta em um centro de referência;
- No caso de RN com íleo meconial, esse paciente deve ser considerado como portador de FC até que se prove o contrário. A TIR frequentemente é falso negativa nestes casos;
- Em 2013, houve a universalização das fases II e III do teste do pezinho. Sendo assim, todo o território nacional está apto para a triagem neonatal de FC.
Fluxograma para o diagnóstico por meio do teste do suor (Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas de Fibrose Cística – 2024)
No caso de pacientes com apresentação clínica de FC (triagem neonatal positiva, sinais ou sintomas, história familiar de FC), deve ser realizada a dosagem de cloro no suor (teste do suor), que faz o diagnóstico de FC em 98% dos casos. O método de coleta é por meio de iontoforese por pilocarpina. Resultados falsos positivos exigem diagnóstico diferencial. Os falsos negativos ocorrem por coleta inadequada da amostra ou por questões técnicas.
- Cl ≥ 60 mmol/L: O diagnóstico de FC é confirmado.
- Cl 30 a 59 mmol/L: O paciente deve ser encaminhado para um centro de referência para avaliação adicional. Deve ser efetuada a análise genética do CFTR.
- 2 variantes causadoras de FC: O diagnóstico de FC é confirmado.
- 1 ou nenhuma variante de FC: Caso especial.
- Cl < 30 mmol/L: O diagnóstico de FC é improvável. Dessa forma, é importante verificar se o paciente faz parte da população que pode realizar teste genético para a análise genética do CTFR. Avalia-se se o lactente apresenta 2 variantes CFTR identificadas, uma ou nenhuma delas causadoras de FC:
- Se não: O diagnóstico de FC é improvável.
- Se sim: Caso especial.
Casos especiais consistem em casos de síndrome metabólica relacionada à disfunção de CFTR (CRMS – CFTR related metabolic syndrome) ou diagnóstico inconclusivo de FC após triagem (CFSPID – Cystic Fibrosis Screen Positive, Inconclusive Diagnostic) com triagem neonatal positiva — sem diagnóstico de certeza ou sem descartar a possibilidade de FC.
Quem deve ser submetido ao teste do suor?
- Triagem neonatal positiva;
- Lactentes/crianças com sintomas ou sinais sugestivos de FC;
- Irmãos de parentes com FC (mesmo assintomáticos);
- Parentes mais distantes de pacientes com FC se houver suspeita clínica.
Quem é elegível para o teste do suor?
- RN > 48h de vida;
- Nos prematuros: idade gestacional < 36 semanas, > 3 dias de vida.
Análise genética
- Todos os pacientes com FC devem ser submetidos ao exame genético.
- Importância:
- Implicações prognósticas e de planejamento familiar;
- Implicações terapêuticas: moduladores da CFTR;
- Definição de casos duvidosos.
Tratamento da fibrose cística (FC)
Os objetivos do tratamento clássico da FC consistem em:
- Evitar infecção crônica;
- Minimizar deterioração clínica e laboratorial;
- Maximizar a expectativa de vida.
Centros de FC, como o IFF/FioCruz permitem:
- Avaliações periódicas multidisciplinares;
- Monitoramento das complicações;
- Intervenções adequadas o mais precocemente possível.
No Brasil, hoje, a realidade da FC se caracteriza por:
- Mortalidade precoce (mediana de óbito = 20,4 anos de acordo com o REBRAFC, 2021);
- Alta carga de tratamento – tempo de tratamento de cerca de 1h-1h30 por dia;
- Impacto na qualidade de vida, com ausências na escola e no trabalho.
- Transplante pulmonar: dificuldade de realização no país.
Tratamento não medicamentoso
- Aconselhamento genético;
- Fisioterapia individualizada;
- Nutrição;
- Controle do tabagismo;
- Imunização.
Tratamento medicamentoso
- Tratamento da insuficiência pancreática;
- Tratamento da doença dos seios paranasais;
- Tratamento da doença pulmonar, por meio da eliminação de secreções e tratamento das infecções respiratórias;
- Modulação da CFTR.
Tratamento da insuficiência pancreática
- Pancreatina
- Apresentação com cápsulas com 10.000 Ui e 25.000 unidades de lipase;
- Deve ser administrada antes de refeições e lanches;
- As cápsulas devem ser ingeridas inteiras e não devem ser dissolvidas ou trituradas para não diminuir sua eficácia.
Tratamento da doença pulmonar
O tratamento sintomático inclui, portanto, a otimização do clearance mucociliar, a erradicação precoce de patógenos e o tratamento de infecção crônica e o uso de anti-inflamatórios:
- Impactação de muco nas vias aéreas: deve ser otimizado o clearance mucociliar por meio de fisioterapia respiratória e mucolíticos (alfadornase inalatória e solução salina hipertônica). O uso de alfadornase inalatória deve ser contínuo, sem duração previamente definida);
- Colonização microbiana: deve ser feita a erradicação precoce de patógenos e o tratamento de infecção crônica. Além disso, a microbiologia deve ser monitorada por meio de escarro, swab de orofaringe ou aspirado nasofaríngeo a cada 3 meses, na exacerbação e após erradicação. A tobramicina é indicada na primeira identificação, em uma tentativa de erradicação para retardar ou prevenir a infecção crônica. Em caso de falha da erradicação da Pseudomonas aeruginosa, a infecção crônica deve ser tratada em longo prazo com tobramicina inalatória;
- Inflamação: a azitromicina por via oral é indicada em crianças > 5 anos, com colonização crônica por Pseudomonas aeruginosa. O objetivo é melhorar a função pulmonar e reduzir as exacerbações. O uso de corticosteroides deve ser individualizado;
Moduladores de CFTR
- São indicados conforme a mutação do paciente, pois tratam o defeito básico da doença;
- Atuam diretamente na proteína CFTR defeituosa, restaurando sua funcionalidade;
- Potenciadores: ativam ou aumentam a função da CFTR mutante na membrana apical (classes III, IV e V). Dessa forma, o cloro e o bicarbonato fluem mais facilmente – Ivacaftor. São elegíveis ao ivacaftor: pacientes com diagnóstico clínico e laboratorial de FC; idade ≥ 6 anos; peso ≥ 25 kg; pacientes que apresentam uma das seguintes mutações de gating (classe III) no gene CFTR: G551D, G1244E, G1249D, G178R, G551S, S1251N, S1255P, S549N ou S549R;
- Corretores: corrigem dobramento e transporte da CFTR até a membrana apical (classe II, F508del), melhorando a disponibilidade da proteína na superfície e melhorando também o transporte de íons – Lumacaftor, Tezacaftor e Elexacaftor;
- Moduladores não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS): lumacaftor/ivacaftor; tezacaftor/ivacaftor (ambos corretor + potencializador);
- Elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor (ETI): foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em março/2022 e incorporado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) em agosto/2023. São pacientes elegíveis para o seu uso: pacientes com diagnóstico clínico e laboratorial de FC; idade ≥ 6 anos; presença de pelo menos uma cópia da mutação F508del no gene CFTR. Não há critérios de gravidade clínica e nem de função pulmonar;
- Interações medicamentosas: os moduladores de CFTR podem apresentar interações medicamentosas importantes com:
- Indutores do CYP3A: rifampicina, fenobarbital, carbamazepina, fenitoína, erva de São João;
- Inibidores do CYP3A: cetoconazol, itraconazol, voriconazol, fluconazol, eritromicina/claritromicina.
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