Crianças submetidas à ventilação mecânica (VM) frequentemente necessitam da administração de medicamentos analgésicos e sedativos. No entanto, a dose ideal destes fármacos em pacientes pediátricos envolve várias considerações, como idade, peso, quadro clínico e composição corporal. Dessa forma, atingir uma dosagem padrão, enquanto se minimizam os efeitos adversos, é um grande obstáculo. Atualmente, estudos mostram que mais de 30% das crianças graves que necessitam de VM estão acima do peso ou têm diagnóstico de obesidade, sendo essencial que o pediatra garanta uma dosagem medicamentosa eficaz e segura para crianças com diferentes composições corporais.
Recentemente publicado no Critical Care Explorations, o estudo Association of Obesity With Sedative Dosing, Sedative Response, and Clinical Outcomes in Mechanically Ventilated Critically Ill Children investigou o impacto da obesidade no uso de analgésicos e sedativos, a ocorrência de síndrome de abstinência iatrogênica (SAI) e os desfechos em pacientes pediátricos submetidos à VM. Ademais, analisou se um protocolo de sedação implementado pela enfermagem seria igualmente eficaz para crianças obesas ou não.
Metodologia
Trata-se de uma análise secundária do ensaio clínico multicêntrico pediátrico RESTORE (Randomized Evaluation of Sedation Titration for Respiratory Failure). O RESTORE envolveu 31 Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) nos Estados Unidos entre 2009 e 2013. Nele, foram incluídas 2.449 crianças de 2 semanas a 17 anos que estavam recebendo VM invasiva (VMI) por pelo menos 24 horas devido à insuficiência respiratória aguda. Os pacientes foram randomizados em dois grupos: um grupo recebia cuidados habituais (CH) e o outro grupo recebia sedação por meio de um protocolo (SP).
Para a análise do estudo atual, foram incluídas crianças de 1 a 17 anos, classificadas como tendo ou não obesidade conforme os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). As crianças com escore-z menor que -5 ou maior que +5 (crianças < 2 anos) ou pontuação z ajustada menor que -4 ou maior que +8 (crianças ≥ 2 anos) foram excluídas, seguindo as recomendações do CDC.
Os grupos CH e SP foram avaliados separadamente e os pesquisadores também analisaram se o braço do RESTORE modificou as diferenças entre os pacientes com e sem obesidade.
Resultados
Dos 2.449 participantes do RESTORE, 1.183 atenderam aos critérios de inclusão. Foram excluídas 955 crianças menores de 1 ano, 273 sem registro de altura e 38 com escores-z de peso para altura ou índice de massa corporal (IMC) para idade fora da faixa aceita pelo CDC.
Um total de 265 crianças (22%) era obesa, porém com proporções semelhantes nos grupos CH e SP. Os pesquisadores não observaram diferenças estatisticamente significativas entre os pacientes obesos ou não em relação à sexo, raça, etnia, idade, estado funcional de base, causa primária de insuficiência respiratória ou no escore de gravidade PRISM-III (Pediatric Risk of Mortality-III). Entretanto, as crianças com anomalias cromossômicas e as crianças com diagnóstico de câncer foram mais prevalentes no grupo com obesidade.
Opioides
A obesidade não foi associada à escolha do benzodiazepínico ou do opioide em nenhum dos braços do estudo, mas levou a uma exposição prolongada a esses medicamentos em ambos os grupos. No grupo CH, os pacientes receberam fentanil (84%) e midazolam. Já no grupo SP, os fármacos eram morfina (53%) e midazolam. Em ambos os grupos, as crianças obesas foram expostas aos opioides por períodos mais longos:
- Grupo CH: crianças com obesidade tiveram mediana de 13 dias versus 10 dias nas crianças sem obesidade (p=0,002);
- Grupo SP: crianças com obesidade tiveram mediana de 12 dias versus 9 dias nas crianças sem obesidade (p=0,01).
Quando o opioide primário era o fentanil, as doses médias diárias, de pico e cumulativas em mcg/kg não foram significativamente diferentes entre os pacientes obesos ou não, independentemente do grupo. Todavia, as doses totais de fentanil (em mcg) foram significativamente mais altas nos obesos:
- Grupo CH: As crianças com obesidade receberam doses significativamente mais altas de fentanil em termos de dose diária de pico (p = 0,005) e dose cumulativa (p = 0,001).
- Grupo SP: As crianças com obesidade receberam doses médias diárias, doses de pico e doses cumulativas de fentanil significativamente mais altas (p < 0,001 para todas as comparações).
Quando a morfina era o analgésico primário no grupo SP, foram observados resultados semelhantes. Contudo, as doses médias e cumulativas de morfina não diferiram com base no IMC no grupo CH.
No grupo SP, as medianas das doses de medicamentos nos pacientes com obesidade foram 65% mais altas para a dose média diária de fentanil e 41% mais altas para a dose cumulativa total de fentanil (em mcg), em comparação com os pacientes com obesidade no grupo CH (p < 0,05 para essas interações entre grupo de estudo e de peso).
Benzodiazepínicos
Foram observadas diferenças entre os grupos de peso na dosagem por kg de benzodiazepínicos no grupo CH, onde os pacientes com obesidade receberam uma dose média diária significativamente menor por kg em comparação com os não obesos (p = 0,03). Não houve diferença na dose diária de pico ou na exposição cumulativa aos benzodiazepínicos em nenhum dos dois grupos (CH e SP).
Outros desfechos relevantes
A frequência de SAI não foi diferente, mas os obesos no grupo SP tiveram mais episódios de sedação inadequada, maior tempo para atingir prontidão para extubação, maior duração da VM e da internação na UTIP. Além disso, a mortalidade hospitalar foi maior em 28 dias, quando comparada aos pacientes sem obesidade. Não foram observadas essas diferenças com relação ao peso no grupo CH.
Conclusão
Nem sempre a obesidade é considerada na prescrição da analgosedação em UTIP, apesar de ser prevalente em crianças com insuficiência respiratória, o que acarreta uma exposição medicamentosa vultosa para esses pacientes. Embora os pesquisadores tenham observado diferenças na exposição total aos medicamentos, não houve diferença na ocorrência de SAI entre crianças com e sem obesidade. Sem embargo, considerando o grupo SP do RESTORE, os participantes obesos receberam doses muito mais elevadas de opioides quando comparados aos pacientes sem obesidade no mesmo grupo. Ademais, as crianças com obesidade também apresentaram:
- Prolongamento do tempo para atingir os critérios de prontidão para extubação;
- Aumento do tempo em VM;
- Aumento do tempo de internação na UTIP;
- Prolongamento do tempo de recuperação da doença;
- Maior mortalidade comparada aos pares sem obesidade.
Apesar da necessidade de mais estudos para esclarecer as razões pelas quais as doses dos medicamentos e os desfechos terem sido tão diferentes nos pacientes do grupo SP, os pesquisadores recomendam que a dosagem inicial de analgésicos e sedativos em pacientes com obesidade seja baseada no peso corporal ideal, com ajustes frequentes baseados em escalas validadas de dor e sedação, considerando também as respostas hemodinâmicas.
Comentários: Impacto da obesidade na analgosedação de crianças em VMI
A obesidade é um relevante problema de saúde pública e deve ser levada em consideração no ambiente da terapia intensiva pediátrica. O estudo é bastante impressionante e traz implicações consideráveis para a prática das UTIP, como a prevenção de superdosagem, a necessidade do uso de protocolos (o que acaba implicando também em um monitoramento mais rigoroso da analgosedação) e a individualização do cuidado, buscando melhorar a qualidade do atendimento por meio da otimização do conforto do paciente com minimização dos riscos.
Gostaria de destacar que o RESTORE foi iniciado em 2009. Nessa época, o uso de benzodiazepínicos como sedativo de primeira linha nas UTIP era unânime. Ao longo dos últimos anos, com o avanço das pesquisas relacionadas à analgesia e sedação na criança grave, o benzodiazepínico se mostrou como um relevante fator de risco independente para o desenvolvimento de delirium e já não é mais indicado para sedação de primeira linha. Seu uso deve ficar restrito a quadros de crises convulsivas e estado de mal epiléptico.
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