A cetamina consiste em um antagonista dos receptores N-metil-D-aspartato (NMDA) e tem sido cada vez mais prescrita para manejo da dor e agitação em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). Isso acontece por sua capacidade de bloquear os efeitos neuroexcitadores do glutamato, gerando analgesia e um estado anestésico dissociativo. Ademais, a cetamina proporciona analgesia adicional por ser agonista opioide, reduzir a recaptação de serotonina e bloquear canais de sódio. Dessa forma, também apresenta propriedades antiepilépticas e broncodilatadoras, sendo muito útil no manejo de estado de mal epiléptico (EME) e de broncoespasmo.
A cetamina pode ser também uma opção bastante factível em pacientes com instabilidade hemodinâmica, pois possui ação simpatomimética que culmina em taquicardia e hipertensão arterial (apesar de diretrizes recentes recomendarem opioides e não opioides para analgesia e dexmedetomidina como primeira linha para sedação). Por fim, apesar de limitadas, evidências atuais sugerem benefícios potenciais do seu uso em infusão contínua (IC) com efeitos adversos mínimos. Infelizmente, ainda há poucos dados com relação à dose ideal, impacto em desfechos clínicos e risco de síndrome de abstinência iatrogênica.
Em 2024, foi publicada uma revisão retrospectiva multicêntrica muito interessante acerca da cetamina em UTIP no periódico Critical Care Research and Practice, resumida a seguir. O objetivo foi descrever práticas de IC de cetamina no contexto de cuidados intensivos pediátricos e avaliar seu efeito nos indicadores de dor/sedação, exposição a analgésicos/sedativos, além de seus efeitos adversos (EA).
Metodologia
O estudo consistiu em uma análise retrospectiva, observacional e multicêntrica em pacientes pediátricos com idade inferior a 18 anos que receberam cetamina em IC no período entre 2014 e 2017. A hipótese dos pesquisadores era de que a cetamina em IC aumentaria o tempo dos pacientes nos alvos de pontuação de dor e sedação e reduziria a exposição a outros fármacos analgésicos e sedativos. O tempo gasto na faixa de pontuação de dor/sedação alvo e as doses cumulativas diárias de analgésicos/sedativos foram comparados das 24 horas antes do início da IC de cetamina às primeiras 24h e 25-48h da infusão. Os efeitos adversos foram coletados durante os primeiros sete dias da IC.
Foram excluídos os pacientes pediátricos transferidos de um hospital externo que já estivessem em uso de cetamina em IC. As UTIP participantes coletaram dados sobre o maior número possível de crianças, começando com os mais recentes.
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Resultados
Foram incluídas quatro UTIP americanas e um total de 24 pacientes. A idade mediana foi de sete anos (intervalo interquartílico [IIQ] 1-136,25), sendo 54% do sexo feminino (13/24), 92% intubados (22/24), 25% recebendo vasopressores em IC (6/24) e 33% em uso de bloqueadores neuromusculares (8/24).
A cetamina foi indicada nas seguintes situações: 87,5% para analgesia e sedação (21/24) e 12,5% para EME (3/24). A mediana da dose inicial foi de 0,5 (IIQ 0,48-0,70) mg/kg/h e permaneceu por uma mediana de 2,4 (IIQ 1,3-4,4) dias.
Os pesquisadores observaram uma diferença significativa na proporção média de tempo gasto dentro da faixa de pontuação de dor alvo (p=0,014):
- 24h antes: 74% ± 14%;
- 0–24h: 85% ± 10%;
- 25-48h: 72% ± 20%.
Foi também observada uma redução significativa na mediana de equivalentes de miligrama de morfina (MME):
- 24h antes: 58 (8–195) mg versus 0–24h: 4 (0–69) mg e p = 0,01;
- Essa redução não foi sustentada em 25-48h: 24 (2–246) mg e p = 0,29.
Os EA frequentes foram:
- Emergence reactions: 13% (reações psicológicas ou comportamentais que incluem delirium);
- Aumento de secreções e necessidade de aspiração: 29%;
- Hipotensão: 54%;
- Taquicardia: 63%.

Conclusão: Cetamina em unidades de Terapia Intensiva Pediátrica
A revisão mostrou que a cetamina em IC está associada ao aumento do tempo na faixa-alvo de pontuação de dor e à redução da exposição a opioides, apesar de isso não ter sido sustentado com o uso prolongado. Conforme os resultados, de fato a cetamina parece ter um perfil de segurança aceitável, mas estudos prospectivos de larga escala são necessários para avaliar o uso de cetamina de IC em UTIP para aconselhar práticas atuais e futuras.
Comentário
Conhecida por ocasionar hipertensão, é importante destacar que, no presente estudo, somente um paciente apresentou pressão arterial elevada, em comparação a 13 pacientes (54%) que tiveram hipotensão nas 4 horas iniciais da IC de cetamina. Os pesquisadores justificaram que esse resultado pode indicar que a população de pacientes da revisão apresentava depleção de catecolaminas. Nesse caso, os efeitos inotrópicos negativos do medicamento podem ser mais predominantes sobre seus efeitos simpatomiméticos.
Autoria

Roberta Esteves Vieira de Castro
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra
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