AAP publica sua primeira diretriz de prática clínica para a prescrição de opioides
Em 30 de setembro de 2024, a Academia Americana de Pediatria (AAP) divulgou sua primeira diretriz clínica para a prescrição segura de opioides no manejo da dor aguda em pacientes ambulatoriais. O principal objetivo da diretriz é orientar os pediatras sobre a prescrição de opioides para o tratamento da dor aguda em crianças e adolescentes, oferecendo estratégias para minimizar riscos como intoxicação, overdose e o desenvolvimento de transtorno do uso de opioides (TUO). Além disso, a publicação aborda a necessidade de enfrentar as disparidades na analgesia relacionadas a fatores como etnia, idioma, condição socioeconômica, localização geográfica, entre outros.
A diretriz da AAP contém 12 declarações baseadas em evidências de ensaios clínicos randomizados (ECR), estudos observacionais de alta qualidade e de opinião de especialistas quando os estudos eram escassos ou não podiam ser conduzidos de forma ética ou viável. Cada declaração possui um nível de evidência, relação benefício-dano e força da recomendação.
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Os níveis de evidência foram classificados em:
A. ECR bem projetados ou estudos diagnósticos em população relevante;
B. ECR ou estudos diagnósticos com pequenas limitações, evidências consistentes de estudos observacionais;
C. Estudos observacionais (caso-controle e desenho de coorte);
D. Opinião de especialistas, relatos de casos, raciocínio a partir de primeiros princípios;
X. Situações excepcionais em que estudos de validação não podem ser realizados e há uma clara preponderância de benefício ou dano.
As evidências que apoiam as recomendações são classificadas de “A” a “D”, sendo “A” o mais alto:
- Grau A: estudos consistentes de nível A;
- Grau B: nível B consistente ou extrapolações de estudos de nível A;
- Grau C: estudos de nível C ou extrapolações de estudos de nível B ou nível C;
- Grau D: evidências de nível D ou estudos preocupantemente inconsistentes ou inconclusivos de qualquer nível; e
- Grau X: não é um nível claro de evidência conforme descrito pelo Centre for Evidence-Based Medicine. É reservado para intervenções que são antiéticas ou impossíveis de testar de forma controlada ou científica e para as quais a preponderância de benefício ou dano é indiscutível, impedindo uma investigação rigorosa.
Com relação à força da recomendação:
- A recomendação pode ser classificada em recomendação forte, recomendação, opção ou nenhuma recomendação, considerando a integração da avaliação da qualidade das evidências com uma avaliação do equilíbrio previsto entre benefícios e danos;
- Recomendação forte: Deve ser seguida, a menos que haja uma justificativa clara e convincente para uma abordagem alternativa;
- Recomendação: Os pediatras são prudentes em segui-la, mas são aconselhados a permanecerem atentos a novas informações e a serem sensíveis às preferências do paciente;
- Opção: É uma declaração “pode”, aplicada quando há um equilíbrio entre riscos e benefícios de uma intervenção ou quando a evidência é mais fraca, mas ainda há um benefício percebido (por exemplo, a intervenção provavelmente ajudará, mas há falta de suporte de evidência);
- Nenhuma recomendação: Não há evidências que sustentem ou refutem a eficácia de uma intervenção.
1) Abordagem multimodal
- Pediatras e outros profissionais de saúde que atuam com pediatria devem tratar a dor aguda usando uma abordagem multimodal que inclua o uso apropriado de terapias não farmacológicas, medicamentos não opioides e, quando necessário, opioides;
- Qualidade da evidência: B;
- Força da recomendação: Forte.
2) Opioide não deve ser prescrito como monoterapia
- Pediatras e outros profissionais de saúde NÃO devem prescrever opioides como monoterapia para crianças e adolescentes com dor aguda;
- Qualidade da evidência: B;
- Força da recomendação: Forte.
3) Administração de opioides
- Ao prescrever opioides para dor aguda em crianças e adolescentes, os profissionais de saúde devem fornecer formulações de opioides de liberação imediata, começar com as doses mais baixas apropriadas para a idade e o peso e fornecer um suprimento inicial de 5 dias ou menos, a menos que a dor esteja relacionada a trauma ou cirurgia com uma duração esperada da dor de mais de 5 dias;
- Qualidade da evidência: C;
- Força da recomendação: Recomendação.
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4) Codeína ou tramadol não estão indicados
- Pediatras e profissionais de saúde NÃO devem prescrever codeína ou tramadol nas seguintes situações:
- 4.1 Ao tratar dor aguda em crianças e adolescentes menores de 12 anos;
- 4.2 Ao tratar dor aguda em adolescentes de 12 a 18 anos de idade com apneia obstrutiva do sono, doença pulmonar grave ou obesidade;
- 4.3 Ao tratar dor pós-cirúrgica após amigdalectomia ou adenoidectomia em crianças e adolescentes menores de 18 anos;
- 4.4 Ao tratar dor aguda em pessoas de qualquer idade que estejam amamentando.
- Qualidade da evidência: X;
- Força da recomendação: Forte.
5) Cautela em pacientes em uso de sedativos
- Ao tratar dor aguda em crianças ou adolescentes que estejam tomando medicamentos sedativos, como benzodiazepínicos, pediatras e outros profissionais de saúde devem ter cautela ao prescrever opioides;
- Qualidade da evidência: X;
- Força da recomendação: Forte.
6) Naloxona e overdose
- Ao prescrever opioides, pediatras e outros profissionais de saúde devem fornecer naloxona e aconselhar pacientes e familiares sobre os sinais de overdose de opioides e como reagir a uma overdose;
- Qualidade da evidência: X;
- Força da recomendação: Recomendação.
7) Armazenamento e administração supervisionada
- Ao prescrever opioides, é fundamental que pediatras e demais profissionais de saúde orientem os cuidadores sobre a importância do armazenamento seguro e da administração supervisionada dos medicamentos para crianças e adolescentes;
- Qualidade da evidência: D;
- Força da recomendação: Opção.
8) Descarte
- Ao prescrever opioides, é essencial que pediatras e outros profissionais de saúde instruam os cuidadores sobre o descarte adequado de medicamentos não utilizados, auxiliando-os na elaboração de um plano seguro para esse descarte. Sempre que possível, os profissionais devem disponibilizar opções seguras de descarte no próprio local de atendimento;
- Qualidade da evidência: A;
- Força da recomendação: Forte.
9) Acompanhamento de especialistas
- No manejo de dor aguda exacerbada em crianças e adolescentes com dor crônica preexistente, pediatras e demais profissionais de saúde devem prescrever opioides quando necessário, em coordenação com outros médicos que estejam prescrevendo opioides para o paciente. Além disso, é recomendado trabalhar em conjunto com especialistas em dor crônica, cuidados paliativos ou programas de manejo de opioides para desenvolver um plano de tratamento adequado;
- Qualidade da evidência: D;
- Força da recomendação: Opção.
Comentário
Existe, de fato, uma grande dificuldade de equilíbrio entre prescrever pouco (e não manejar adequadamente a dor, expondo o paciente a complicações decorrentes de uma analgesia ineficaz) e prescrever em excesso (expondo o paciente a complicações relacionadas ao fármaco). De um lado, podemos observar os Estados Unidos e sua batalha contra os opioides já há alguns anos. Do outro, temos o Brasil, em que há ainda um grande receio da população leiga, mas também de profissionais de saúde. Como podemos balancear estas questões? Esse é um grande desafio na pediatria atualmente.
O opioide ainda é o padrão-ouro para o tratamento da dor aguda. Costumo explicar para as famílias que a morfina é forte sim (essa é uma das perguntas mais realizadas pelos pais), mas que ela é forte para tratar dor de forte intensidade. Raramente a morfina dará depressão respiratória em doses para analgesia (é claro que precisa ser feita com todos os cuidados para que esta complicação seja assistida se ocorrer). O que vejo na prática é uma falta de prescrição da morfina significativa em dores de maior intensidade, sendo feitos opioides mais fracos que não ajudam a criança em sua queixa. Aliás, a recomendação atual em pediatria, conforme a Organização Mundial de Saúde e que está publicada no Tratado de Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é que a dor aguda em crianças seja considerada como uma escada de dois degraus: no primeiro degrau (dor leve a moderada), a escolha deve ser para as medidas não farmacológicas associadas ao uso de analgésicos simples e antiinflamatórios não esteroidais (AINE). Em um segundo degrau (dor moderada a intensa), estas medidas devem continuar e o opioide (de preferência) deve ser forte. Isso porque opioides fracos expõem o paciente aos efeitos colaterais dessa classe medicamentosa e acabam não trazendo uma analgesia tão efetiva. No entanto, ainda há uma resistência muito grande na inclusão destas medidas na prática diária. Esta excelente publicação da AAP veio em um momento crucial e espero que possa contribuir significativamente com a melhora da analgesia nos pacientes pediátricos ao redor do mundo.
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