Em abril de 2020, logo após o início da pandemia da covid-19, foram identificadas crianças nos Estados Unidos e no Reino Unido apresentando uma doença hiperinflamatória pós-infecciosa relacionada a infecção pelo SARS-CoV-2. Na ocasião, a CDC (Centers for Disease Control and Disease Prevention) publicou critérios para o diagnóstico da doença, que ficou conhecida como MIS-C (multisystem inflammatory syndrome in children).
A definição inicial precisava ser ampla por se tratar de uma doença rara e ainda desconhecida, de forma que o diagnóstico pudesse ser aventado mesmo que em apresentações menos típicas e que assim o paciente pudesse receber o tratamento adequado.
Desde então, além de um contexto epidemiológico diferente, há maior entendimento sobre a doença e suas principais manifestações clínicas e laboratoriais, de forma que havia a necessidade de atualização da definição da doença.
Este mês foi publicada na revista Pediatrics esta atualização.
Metodologia
Em 2021, a CDC e a CSTE (Council of State and Territorial Epidemiologists) criaram um grupo de trabalho que visava atualizar as definições sobre a doença a fim de minimizar o erro no diagnóstico da MIS-C. O artigo publicado por Melgar e colaboradores no final de 2022 descreve em detalhes o racional e todo o processo utilizados na criação desta atualização.
Os autores se basearam em 3 fontes de dados: um painel de experts que destacou quais características da doença eram mais distintas em relação a outras doenças inflamatórias que acometem a faixa etária, uma revisão da literatura e a aplicação dos novos critérios em um grupo de 8.800 pacientes com diagnóstico de MIS-C notificados ao CDC a partir da definição anterior.
Resultados
As principais diferenças entre os critérios diagnósticos publicados em 2020 e os atuais (Tabela 1) foram no sentido de simplificar e padronizar o critério de evidência de estado hiperinflamatório, definindo como um valor de proteína C reativa (PCR) ≥ 3 mg/dL. Foram feitos esforços no sentido de melhor especificar o acometimento multiorgânico sugestivo da doença. Neste contexto, foram excluídos da definição o envolvimento renal, neurológico e respiratório. O envolvimento cardíaco foi dividido em duas possibilidades: choque e envolvimento cardíaco identificado por baixa fração de ejeção ventricular, anormalidades nas coronárias e/ou troponina aumentada. O acometimento de pele agora é definido simplesmente como envolvimento mucocutâneo, incluindo rash, mucosite, hiperemia conjuntival e alteração das extremidades.
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Outra atualização interessante é que agora a definição de evidência de contato com o SARS-CoV-2 inclui positividade de RT-PCR e teste de antígeno até 60 dias antes do quadro suspeito de MIS-C, sendo aceito ainda sorologia positiva desde que realizada durante a doença atual. Além disso, antes era obrigatório que a história de contato fosse com caso confirmado de covid-19, enquanto agora se aceita também contato com paciente com suspeita da doença.
Tabela 1 – Comparação entre as definições de 2020 e a de 2022 para o diagnóstico de MIS-C
Definição de 2020 | Definição de 2022 | |
Idade | < 21 anos | < 21 anos |
Hospitalização | Paciente clinicamente grave, com necessidade de internação | Paciente clinicamente grave, com necessidade de internação ou com evolução para óbito |
Diagnóstico diferencial | Ausência de outros diagnósticos plausíveis | Ausência de outro diagnóstico mais provável |
Febre | Febre (≥ 38 ˚C ou não aferida) por ≥ 24 horas | Febre (≥ 3 8˚C ou não aferida) independente do período |
Inflamação | Pelo menos um dos marcadores: PCR, VHS, fibrinogênio, procalcitonina, d-dimero, ferritina, LDH, IL-6, neutrofilia, linfopenia ou hipoalbuminemia | PCR ≥ 3,0 mg/dL (30 mg/L) |
Infecção pelo SARS-CoV-2 | Exposição a caso confirmado de covid-19 nas 4 semanas que antecederam os sintomas ou diagnóstico recente/atual de covid-19 por RT-PCR, sorologia ou teste de antígeno | * Contato próximo com paciente com diagnóstico ou suspeita de covid-19 nos 60 dias que antecederam a internação atual.
* RT-PCR ou teste de antígeno positivo durante a hospitalização ou nos 60 dias que antecederam a internação atual. * Sorologia positiva no curso da doença atual (antes ou durante internação)
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Envolvimento Multissistêmico | Envolvimento de ≥ 2 órgãos:
* Coração (choque, arritmia, alteração em ecocardiograma, elevação de troponina ou BNP) * Rins (lesão renal aguda, falência renal) * Pulmões: (pneumonia, desconforto respiratório agudo, embolismo pulmonar) * Hematológico (elevação de d-dimero, trombofilia, trombocitopenia) * Gastrointestinal (elevação de bilirrubinas e/ou enzimas hepáticas, diarreia) * Pele (rash, lesões mucocutâneas) * Neurológico (acidente vascular cerebral, meningite asséptica, encefalopatia). | Início agudo de pelo menos 2 das seguintes manifestações:
* Envolvimento cardíaco (FEVE ≤ 55%, alteração de coronárias, elevação de troponina) * Envolvimento mucocutâneo (rash, mucosite, conjuntivite, eritema ou edema de extremidades) * Choque * Envolvimento de TGI (dor abdominal, vômitos, diarreia) * Envolvimento Hematológico (plaquetas < 150.000, linfócitos < 1.000) |
PCR: proteína C reativa; VHS: velocidade de hemosedimentação; LDH: desidrogenase láctica; RT-PCR: reverse transcription polymerase chain reaction, BNP: brain natriuretic peptide; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; TGI: trato gastrointestinal.
Conclusões
As alterações sofridas pela definição da doença tornaram a coleta de dados dos pacientes com MIS-C mais simples e focaram ainda em distinguir a doença de seus principais diagnósticos diferenciais: doença de Kawasaki, covid-19 grave e síndrome de choque tóxico.
De qualquer forma, não é possível predizer a especificidade e as taxas de falsos positivos a partir dos novos critérios, especialmente considerando a alta soropositividade para SARS-CoV-2 atualmente e a possibilidade de sobreposição das manifestações clínicas da MIS-C com a de outras doenças febris.
Os autores argumentam que a definição foi criada visando a monitorização de casos e não o diagnóstico da doença, devendo prevalecer o julgamento clínico.
Ferramentas mais objetivas para o diagnóstico da MIS-C são necessárias especialmente devido aos quadros da doença se apresentarem de forma cada vez mais leve atualmente em comparação com o início da pandemia da covid-19, o que aumenta a dificuldade de diferenciar a doença de outras doenças comuns.
Saiba mais: Presença de edema retrofaríngeo e cervicalgia em crianças com MIS-C
Comentários
Se por um lado é importante que esse diagnóstico seja lembrado devido ao risco de óbito e complicações, por outro o médico deve permanecer atento aos diagnósticos diferenciais justamente pelas manifestações de MIS-C serem heterogêneas e comuns a uma infinidade de outras doenças comuns na infância.
A história de contato com caso suspeito ou confirmado de covid-19 é especialmente relevante no contexto atual, já que as infecções pelo SARS-CoV-2 não são tão frequentes no momento quanto no início da pandemia. É preciso cuidado especial com as manifestações mais inespecíficas como febre, sintomas gastrointestinais e elevação de PCR, além de atenção na investigação do envolvimento cardíaco, por vezes não clinicamente aparente, com a solicitação de troponina e ecocardiograma.
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