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Oftalmologia15 setembro 2024

Diretriz brasileira para controle da miopia: tratamento disponível no Brasil

As novas diretrizes têm como objetivo compartilhar orientações de avaliação e manejo da progressão de miopia em crianças.
Por Juliana Rosa

A miopia não corrigida é uma causa evitável de deficiência visual que afeta a aprendizagem, o desempenho acadêmico e a autoconfiança dos jovens. Embora a prevalência da miopia esteja em crescente ascendente, tanto no Brasil como em outros países sul-americanos, a progressão miópica aparentemente não possui grande impacto no mundo, devido ao fato de ser inferior ao experimentado nessa região.  

Estudos populacionais também identificaram tendências temporais ascendentes na prevalência da condição entre as crianças, especialmente as do sexo feminino. A miopia, que é uma condição genética, também apresentou aumento em adolescentes, em comparação com outras faixas etárias, além de ser uma condição mais prevalente em áreas urbanas do que em áreas rurais na Ásia. 

A iniciação da miopia em uma idade precoce varia de 5 a 7 anos, com uma maior taxa de progressão e aumento durante a infância, principalmente entre crianças expostas a fatores ambientais e comportamentais associados à progressão. Mais especificamente, esses fatores são fatores de risco para alta miopia na fase final da adolescência. 

Crianças que são submetidas à iniciação e crescimento rápidos têm maior probabilidade de desenvolver alta miopia na vida adulta. Se não tratada, a alta miopia é responsável por complicações que podem até mesmo levar à incapacidade visual.  

Vários fatores estão associados ao risco de progressão da miopia como: o pouco tempo em atividades ao ar livre, sistemas escolares altamente competitivos nas idades mais jovens (especialmente em idades precoces nos países do Leste Asiático), o uso cada vez mais frequente e crescente de telas, além do envolvimento em outras atividades próximas. 

Vale destacar que as complicações relacionadas à alta miopia incluem descolamento de retina, glaucoma, catarata, degeneração macular miópica e neuropatia óptica.  

O objetivo das diretrizes publicadas pela Sociedade Brasileira de Oftalmopediatria (SBOP) e pela Sociedade Brasileira de Lentes de Contato (SOBLEC) em agosto de 2024 nos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia é compartilhar orientações de avaliação e manejo da progressão de miopia em crianças.  

Essas diretrizes foram baseadas em uma revisão da literatura conhecida e da experiência clínica do corpo de especialistas, envolvendo os conceitos mais atuais de classificação da miopia, fatores de risco para a progressão da condição, consultas oftalmológicas e regimes de exames correlatos, além de estratégias para prevenir a progressão.  

 

1) Classificação de miopia 

A miopia se caracteriza quando o equivalente esférico (SER), com acomodação ocular relaxada, é ≤-0,5 D. A baixa miopia é caracterizada por um erro de refração entre -0,5 e >-6,00 D, enquanto a alta miopia é quando o erro refrativo é ≤-6,00 D, de acordo com o International Myopia Institute (IMI). Apesar disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a alta miopia como erro de refração acima de -5,00 D.  

Já a pré-miopia inclui crianças com status de erro refrativo <+0,75 D aos 6 anos, +0,50 D entre 7 e 8 anos, +0,25 D aos 9-10 anos e 0 D aos 11 anos e é importante porque identifica crianças que correm alto risco de desenvolver miopia no futuro. 

A miopia pode ser ainda categorizada em tipos refrativos e axiais, mas que são frequentemente consideradas entidades distintas. Na miopia refrativa, o poder óptico da córnea e/ou cristalino é elevado em olhos com comprimento axial (AL) normal. Por outro lado, na miopia axial, o eixo óptico é muito longo em comparação com o poder de refração da córnea e do cristalino.  

 

2) Fatores de risco para miopia de progressão rápida 

Além do fator idade já citado, a hereditariedade também desempenha um papel importante no desenvolvimento da miopia. Estudos sobre miopia parental revelaram que ter um dos pais míope triplica o risco de miopia, enquanto ter ambos o pai com miopia aumenta o risco em sete vezes.  

Apesar disso, vários fatores também influenciam a progressão da miopia, incluindo a etnia (mais comum entre os asiáticos), pais com maior nível de escolaridade, menos tempo passado ao ar livre e o envolvimento em atividades escolares/próximas ao trabalho. 

3) Avaliação oftalmológica  

Em caso de suspeita de progressão da miopia, uma avaliação com oftalmologista deve ocorrer a cada seis meses, incluindo: 

  • História clínica: avaliação da deficiência visual à distância, se aplicável, idade desde o início do uso de óculos, história familiar de miopia e fatores de risco do estilo de vida (por exemplo, nível de escolaridade dos pais, tempo ao ar livre, tempo perto do trabalho, tempo de tela digital, etc.) 
  • Melhor acuidade visual corrigida para visão de longe e de perto 
  • Avaliação da visão acomodativa e binocular 
  • Biomicroscopia anterior 
  • Refração cicloplégica – utilizando o protocolo de cicloplegia recomendado: uma gota de proximetacaína a 0,5%, seguida por uma gota de ciclopentolato a 1% e, em seguida, uma gota de tropicamida a 1% administrada com intervalo de 0-5 minutos. O teste deve ser realizado 30-40 minutos após a primeira gota. 

Exames adicionais (se disponíveis): Medição anual de AL (semestralmente em casos de evolução rápida) usando dispositivos sem contato como biometria óptica; Topografia da córnea (para excluir ceratocone ou para determinar a necessidade de adaptação de lentes de contato). 

 

4) Diagnóstico de progressão miópica e indicação de tratamento: 

  • Exame de erro refrativo cicloplégico: aumento superior a -0,50 D ao longo de 1 ano (com exceções consideradas (0,5) para casos de miopia de início precoce (<7 anos) e com outros fatores de risco de rápida evolução) 
  • AL: crescimento axial de 0,3 mm/ano (até 10 anos) ou 0,2 mm/ano (acima de 10 anos) 

 

5) Prevenção da miopia 

As crianças com fatores de risco de progressão rápida e as identificadas como pré-míopes devem ser cuidadosamente acompanhadas para prevenir ou retardar o início precoce ou a progressão da miopia. Além disso, o incentivo a atividades ao ar livre deve ser visto como um tratamento adicional para complementar outras intervenções de controle da condição (Nível I), e não como uma solução isolada. 

 

6) Tratamento para reduzir a progressão da miopia 

Atropina para controle de miopia 

A atropina é uma droga muscarínica, mas seu local exato de ação permanece indeterminado. Estudos indicam que baixas concentrações de atropina podem controlar aproximadamente 40%-70% da progressão da miopia na população asiática (Nível I). Porém, vale considerar, que após a interrupção do uso de atropina, alguns pacientes podem apresentar efeito rebote (Nível I); portanto, a duração ideal do tratamento permanece incerta.  

O tratamento atual envolve a administração de uma gota de atropina à noite por no mínimo 2 anos, mas pode se estender até que a criança atinja 15-16 anos (Nível I). Para evitar potenciais efeitos rebote, alguns pesquisadores propõem uma redução gradual da concentração de atropina em vez de uma parada abrupta, embora ainda faltem estudos detalhados sobre essa abordagem. A redução pode ser realizada diminuindo gradativamente a concentração por pelo menos 2 meses e, quando atingir 0,01%, pode ser utilizado em dias alternados por um breve período antes da suspensão. 

O uso de atropina em baixa concentração em crianças com 5 anos ou mais é considerado seguro, porém crianças mais novas podem necessitar de uma dose mais elevada para um controle eficaz da miopia (por exemplo, 0,05%) (Nível I). Os eventos adversos relacionados ao uso de atropina são raros e podem incluir alergias, midríase e acomodação reduzida. Assim, discutir o uso da atropina com a família da criança é fundamental.  

A atropina não é recomendada para pacientes com astigmatismo superior a 1,50 ou 2,50, ectasia corneana, doenças neurológicas ou com alergia à atropina. Seu uso em indivíduos com Síndrome de Down e alta miopia, carece de respaldo suficiente em estudos publicados; portanto, não é possível prever os resultados esperados ou a segurança do tratamento nesses casos. 

 

Possibilidades de prescrição de atropina para controle da miopia: 

  1. Iniciar com atropina em baixas doses (0,01%) por 1 ano. Caso o controle desejado não seja alcançado, aumentar a dose para 0,025%. Se ainda assim não for controlado no ano seguinte, aumentar ainda mais a dose para 0,05% (Nível I).
  1. Iniciar a dose entre 0,01% e 0,025% com base em critérios de evolução de risco, como pouca idade da criança, história parental de miopia, taxa de progressão da miopia (MPR), refração e diâmetro axial.
  1. Para crianças entre 5 e 8 anos: iniciar tratamento com atropina 0,025% ou 0,05%. 

Para crianças entre 9 e 15 anos:  Se evolução for 0,50D/ano ou a refração for menor ou igual a 4 D e/ou AXL for menor que 24,5 mm, iniciar com atropina 0,01%. Se for superior a 0,50 D/ano ou refração acima de -4 D e/ou AXL for maior que 24,5 mm, iniciar com atropina 0,025% 

Para pacientes com idade superior a 15 anos: iniciar tratamento com atropina 0,01% (Nível I). 

 

Desfocagem hipermetrópica para tratamento de miopia 

Designs de lentes oftálmicas: 

  • Defocus Incorporated Multiple Segments (DIMS) (desenvolvida pela Hoya) a progressão da miopia foi significativamente reduzida em 59% e o alongamento AL diminuiu em 60% quando comparado ao uso de lentes monofocais (Nível I). Outro ensaio clínico randomizado de 2 anos envolveu crianças de 8 a 13 anos (n=160) com miopia de -1,00 a -5,00 D e astigmatismo de até 1,50 D. O ensaio comparou crianças que usavam óculos monofocais com aquelas que usavam lentes DIMS. Os resultados mostraram que as crianças que usavam lentes DIMS tiveram 52% menos progressão da miopia e 62% menos alongamento axial em comparação com o grupo controle. Além disso, 21,5% dos usuários de lentes DIMS não apresentaram progressão da miopia durante o período do estudo, em contraste com 7% daqueles que usaram óculos monofocais (Nível I). Após um período de 3 anos, 120 crianças que inicialmente usavam óculos monofocais passaram a usar lentes DIMS. Os resultados positivos no controle da miopia foram mantidos por mais 3 anos (n=65). Mesmo aquelas crianças que foram submetidas à substituição da lente DIMS (n=55) responderam bem ao tratamento, como é evidente a partir de uma curva de progressão melhorada (Nível I). Em um estudo recente com acompanhamento de 6 anos, o artigo avaliou quatro grupos: Grupo 1 (n=36) usou óculos DIMS por 6 anos; O Grupo 2 (n=14) usou lentes DIMS durante os primeiros 3,5 anos e depois mudou para óculos SV; O Grupo 3 (n=22) usou óculos SV durante os primeiros 2 anos e depois mudou para lentes DIMS; O Grupo 4 (n=18) usou óculos SV durante os primeiros 2 anos, depois mudou para lentes DIMS durante 1,5 anos e finalmente voltou a usar óculos SV. Os resultados do estudo revelaram que o Grupo 1 não apresentou diferenças significativas na progressão da miopia (-0,52 ± 0,66 vs. -0,40 ± 0,72 D) e alongamento axial (0,32 ± 0,26 vs. 0,28 ± 0,28 mm, ambos p>0,05) entre o 1º e o 3º anos subsequentes. Nos últimos 2,5 anos, os grupos que usaram lentes DIMS (Grupos 1 e 3) apresentaram menor progressão da miopia e alongamento axial do que os grupos que usaram lentes monofocais (Grupos 2 e 4) (Nível I).

 

  • Tecnologia HALT (desenvolvida pela Essilor): Desaceleração de 67% na progressão da miopia em comparação com lentes monofocais usadas durante 12 horas. Um estudo randomizado de 2 anos com 157 crianças de 8 a 13 anos mostrou uma redução na progressão da miopia para SE e AL em 67% (0,99 D) e 60% (0,41 mm), respectivamente, quando comparado com lentes monofocais (Nível I). 

 

  • Lente de óculos com desfocagem perifocal (desenvolvida pela IOT/Art Optica). Desfocagem assimétrica positiva (maior na área temporal) no meridiano horizontal. Em um estudo envolvendo uma população caucasiana, após 5 anos, a progressão da miopia foi significativamente reduzida de -1,95 ± 0,2 D no grupo controle versus -1,16 ± 0,2 D no grupo tratado, com uma diferença de 0,79 D entre eles. O alongamento do AL diminuiu 56% (0,46 mm ± 0,05 vs 0,71 ± 0,09 mm) em 2 anos quando comparado ao uso de lentes monofocais (Nível I). 

 

Design de lentes de contato: 

A lente da CooperVision MiSight é atualmente a única lente descartável aprovada no Brasil para controle de miopia. Um estudo clínico de 7 anos envolvendo a lente MiSight não mostrou nenhum efeito rebote aparente (Nível I).  

Em um estudo multicêntrico, prospectivo, randomizado e duplo-cego, foram comparadas com lentes gelatinosas esféricas descartáveis ​​de visão simples em crianças de 8 a 12 anos com miopia variando de -0,75 a -4,00 D e astigmatismo <1,00 D. O estudo mostrou reduções na progressão da miopia (59%) e AL (52%) (Nível I). Após 6 anos de acompanhamento, 23% dos pacientes apresentaram alteração refrativa inferior a 0,25 D (equivalente esférico). 

 

Ortoceratologia 

É uma técnica utilizada para redução reversível da miopia com lentes de contato de curva reversa. Ela atua reduzindo a espessura do epitélio central da córnea através da redistribuição do fluido intracelular dessas células para o espaço intracelular das células epiteliais periféricas médias. Assim, a lente de contato exerce pressão negativa na região médio-periférica, levando ao espessamento do epitélio da córnea nessa área.  

Isso significa que a remodelação da córnea é responsável por uma redução temporária do comprimento axial do olho, corrigindo a miopia e reduzindo a sua progressão em 35%-60%. A elevação formada na periferia média da córnea leva a uma alteração refrativa que corrige a desfocagem hipermetrópico na periferia média da retina (Níveis I e II). 

Contraindicações: pacientes com inflamação ou infecções no segmento anterior do olho; anormalidades na conjuntiva, córnea ou pálpebra; hipoestesia corneana; olho seco; condições sistêmicas que afetam os olhos, as vias lacrimais e o lacrimejamento. Além de também ser contraindicada para pacientes com astigmatismo contra a regra, ectasia corneana, astigmatismo superior a metade do grau esférico, cilindros maiores que 1,75 D e córneas mais planas que 40 D ou mais curvadas que 48 D e aqueles que, após o tratamento, apresentam curvatura corneana abaixo de 38 D. 

 

Tratamentos combinados  

Alguns estudos sugeriram que a combinação de atropina e ortoceratologia pode levar a um efeito maior na desaceleração do alongamento axial em crianças com miopia em comparação com a monoterapia e com ortoceratologia (Nível II).  

Uma meta-análise recente comparando ortoceratologia com ortoceratologia mais atropina encontrou quatro estudos elegíveis com um total de 267 indivíduos (Nível I). O tratamento combinado mostrou um efeito aditivo mais pronunciado na desaceleração do crescimento axial entre crianças com menor miopia, enquanto a monoterapia foi igualmente eficaz como a combinação em crianças com maior miopia, nas quais a a ortoceratologia proporciona uma maior correção, resultando em melhor desfocagem na retina periférica. 

Por outro lado, em crianças com menor miopia, a extensão da correção da miopia é menor, e isso pode não melhorar suficientemente a desfocagem na retina periférica apenas através da monoterapia. Nesses casos, a adição de atropina 0,01% parece ser mais eficaz. O estudo sugere que a combinação de ortoceratologia e atropina a 0,01% produz maior eficácia na desaceleração do alongamento axial em crianças com miopia.  

Num estudo recente, realizado numa população europeia com 146 participantes, os participantes foram divididos em 4 grupos: 53 receberam atropina a 0,01%, 30 usaram óculos DIMS, 31 receberam uma combinação de atropina a 0,01% e DIMS, e 32 usaram os óculos únicos, óculos de controle de visão. Os resultados mostraram que após 1 ano de tratamento, o grupo que recebeu atropina e DIMS apresentou uma redução significativa na progressão da miopia em comparação com os grupos apenas com DIMS e apenas com atropina. Verificou-se ainda que durante esse período, não houve diferença na progressão da miopia entre os grupos atropina e DIMS. (Nível II)

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Referências bibliográficas

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