A doença relacionada à imunoglobulina G4 (IgG4) é uma condição fibroinflamatória multissistêmica e, portanto, pode acometer o sistema nervoso central, principalmente as paquimeninges. A paquimeningite é definida como presença de espessamento e realce contrastado na dura-máter em região craniana ou espinhal, identificada através de exames de neuroimagem. Compreender as nuances clínicas presentes na paquimeningite relacionada à IgG4 (IgG4-RP) é desafiador, diante de sua raridade e conhecimento limitado, na qual grande parte das evidências são derivadas de relatos de casos e séries de casos.
A JAMA Neurology, no final de 2024, publica revisão sistemática sobre a IgG4-RP que se propõe a fornecer insights clínicos importantes para neurologistas e reumatologistas na abordagem dessa condição.
Métodos
Trata-se de revisão sistemática conduzida segundo as diretrizes Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). Foram pesquisados relatos de caso e séries nas bases de dados PubMed/MEDLINE, Embase, Scopus desde o início até 30 de maio de 2023.
Os critérios de inclusão contemplaram: relatos de caso e séries que seguissem os critérios diagnósticos de IgG4-RD estabelecidos pela American College of Rheumatology/European League Against Rheumatism (ACR/EULAR) 2019 e os critérios revisados diagnósticos para IgG4-RD em 2020. Os critérios de exclusão, por sua vez, incluíram: casos que não preencheram os critérios de definição de paquimeningite propostos (como: pseudotumor orbitário, hipofisite isolada, leptomeninge isolada).
Entre as publicações elegíveis, foram extraídos dados demográficos do paciente, além de dados clínicos e de propedêutica realizadas. Os achados encontrados na propedêutica desses casos foram segmentos em achados laboratoriais, radiológicos e patológicos. O prognóstico de IgG4-RP foi avaliado através da classificação dos pacientes em categorias de resposta clínica completa, parcial, sem resposta ou piora clínica. A influência do tratamento com corticoides e imunossupressores no prognóstico também foi registrado.
Panorama geral da revisão sistemática
A busca de dados identificou 1.091 artigos, sendo 529 duplicados. Após exclusão de artigos ao realizar leitura de abstract ou do texto completo, 128 publicações foram elegíveis para o estudo. No compilado desses estudos, 208 participantes foram incluídos sendo 63,5% homens, idade média de 52 (39.062) anos, em que a maioria dos relatos de caso foram derivados dos Estados Unidos (21,1%), Japão (17,3%), Índia (11,5%), China (11%).
Manifestações clínicas
As principais manifestações neurológicas clínicas encontradas foram cefaleia (48%) e disfunção de nervos cranianos (54%). A apresentação de disfunção de nervos cranianos mais comum foi através de síndromes neuro-oftalmológicas (podendo comprometer, logo, nervos ópticos, oculomotor, troclear e abducente) com sintomas como perda visual, diplopia e estrabismo. Déficits neurológicos focais sensitivos ou motores (27%), crises epilépticas (11%), declínio cognitivo (2%), disautonomia (1%) também foram observados ainda que em menor proporção.
Na paquimeningite hipertrófica relacionada à IgG-4, quase metade dos casos (49%) apresentou envolvimento sistêmico concomitante. As três regiões sistêmicas mais comumente afetadas foram: seios paranasais (23%), pulmões (17%) e linfonodos (15%).
Exames complementares
Na avaliação radiológica, apenas 153 pacientes foram incluídos na análise de envolvimento topográfico dural diante da disponibilidade de dados. Nessa avaliação, o envolvimento topográfico da imagem craniana da paquimeningite poderia estar localizada na base do crânio, convexidades cerebrais, e/ou dobras durais. O comprometimento da base do crânio foi mais frequente na fossa média, especialmente no seio cavernoso, ápice orbital e fossa infratemporal. Na fossa posterior, a região mais acometida foi o clivus e o espaço retroclival. Por outro lado, o envolvimento da fossa anterior foi raro. A distribuição nas convexidades cerebrais seguiu um gradiente ântero-posterior, enquanto o acometimento das dobras durais foi observado em apenas 16% dos casos.
Já o envolvimento do parênquima cerebral ocorreu em 12% dos pacientes, geralmente como consequência da infiltração meníngea ou do efeito de massa (edema) adjacente. Quanto ao envolvimento espinhal da IGG4-RP, o padrão foram predominantemente cervicotorácico. Em 18 casos de paquimeningites espinhais (43%), houve contraste dural estendido longitudinalmente em mais de 3 corpos vertebrais contíguos. A paquimeningite espinhal foi mais propensa a ser uma manifestação isolada de IgG4-RD em comparação com paquimeningite cranial (35/45 [78%] vs 82/146 [56%]; p = 0,01).
Na avaliação dos achados laboratoriais, níveis elevados de IgG4 no plasma foram presentes em 97/147 (65%) dos pacientes, apesar da maioria desses casos (50/93; 54%) foram leves aumentos (1-2x o valor normal). Pleocitose (43/82; 52%) e proteinorraquia (41/71; 58%) foram as anormalidades liquóricas comuns, enquanto todos os casos em que os níveis de IgG4 no líquor foram avaliados possuíram valores elevados.
Na avaliação patológica, 169 pacientes do estudo apresentaram dados documentados de achados patológicos consistentes com doença relacionada a IgG4, sendo 137 (81%) com biópsias meníngeas. Em quase todas as biópsias, foram encontradas infiltração linfoplasmocitária e relação IgG4/IgG elevada. Por outro lado, achados como padrão estoriforme de fibrose (28%) e flebite obliterante (16%) foram menos frequentes.
Tratamento e Prognóstico
A mediana de follow-up dos pacientes foi de 9 meses (intervalo interquartil 1-20), em que apenas 1 paciente evoluiu a óbito. Entre os 151 estudos que informaram sobre evolução de doença, 91 (60%) apresentaram curso monofásico e 60 (40%) com cursos recorrentes. Apenas 37% dos pacientes tiveram recuperação completa, enquanto 55% apresentaram melhora parcial.
Corticosteroides foi a terapia mais prescrita, em 143/169 casos (85%). Quanto aos imunossupressores, a terapia de manutenção com rituximabe foi realizada em 31%, com azatioprina em 12%, com metotrexato em 12% e com micofenolato em 4% dos casos.
Comentários finais
Considerando os dados fornecidos nessa revisão sistemática, pode ser observado quão desafiador é realizar o diagnóstico de paquimeningite relacionada à IgG4.
Como cefaleia e disfunção de nervos cranianos são as manifestações neurológicas mais prevalentes, um diagnóstico diferencial possível é a síndrome de Tolosa-Hunt. Os autores sugerem que uma forma de as diferenciar pode ser através dos exames complementares em que, diferentemente da síndrome de Tolosa-Hunt, a IgG4-RP pode envolver estruturas além do seio cavernoso, como a fossa infratemporal e o clivus. Nem sempre o envolvimento sistêmico da doença relacionada à IgG4 auxiliará nessa distinção, visto que não estava presente em praticamente metade dos casos avaliados de IgG4-RP nessa revisão sistemática.
Outros diagnósticos diferenciais para causas de paquimeningite seriam a neurosarcoidose e vasculite ANCA-associada. Enquanto a neurosarcoidose apresenta maior frequência de crises epilépticas e envolvimento de dobras durais (foice cerebral e tenda do cerebelo), a vasculite ANCA-associada tem maior predominância em mulheres e frequentemente se manifesta com febre e sintomas otológicos.
Quanto aos exames complementares necessários para classificação de IgG4-RP como “possível”, “provável” ou “definitivo” conforme critérios diagnósticos da ACR/EULAR 2019, os resultados presentes nessa revisão sistemática ratificam o desafio de realizar esse diagnóstico. Afinal, níveis séricos de IgG4 estavam elevados em apenas 65% dos casos, sendo muitas vezes de caráter leve (limitando sua utilidade como marcador diagnóstico e demandando cautela na sua interpretação). Os achados histopatológicos característicos e clássicos da doença, como fibrose estoriforme e flebite obliterante, foram incomuns, o que pode comprometer a sensibilidade dos critérios diagnósticos atuais, mesmo que a infiltração linfoplasmocitária e relação IgG4/IgG elevada nas biópsias meníngeas tenham sido frequentes. Por outro lado, a aferição de IgG4 no líquor pode ser um biomarcador potencial (embora ainda pouco estudado), visto que os níveis de IgG4 liquóricos estavam elevados em todos os casos testados dos pacientes incluídos nesse estudo.
As principais limitações relacionadas a essa revisão sistemática foram: (1) curto período de seguimento que teve mediana de follow-up de 9 meses, podendo subestimar as taxas de recorrência; (2) possível viés de publicação, já que casos com achados laboratoriais atípicos podem ser menos frequentemente relatados e (3) distribuição geográfica limitada, com a maioria dos casos publicados originando-se do Japão e dos EUA, o que pode não refletir totalmente a heterogeneidade global da doença.
Mensagens práticas
- IgG4-RP frequentemente se manifesta com cefaleia e disfunção de nervos cranianos, na qual o diagnóstico pode ser desafiador, considerando que nem sempre há aumento dos níveis séricos de IgG4 ou achados histopatológicos típicos.
- A resposta ao tratamento é limitada, com recorrências frequentes e recuperação incompleta em muitos casos.
- Novas estratégias terapêuticas são necessárias, especialmente para pacientes que apresentam recidivas.
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