A encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI) perinatal é uma das principais causas de mortalidade e morbidade neonatal, afetando de 1 a 3 a cada 1000 nascidos vivos. Por sua vez, como os determinantes sociais de saúde (DSS) podem modificar o risco de EHI perinatal ainda é pouco estudado.
Neste ano, a JAMA Neurology publica estudo que buscou avaliar a associação entre raça, etnia materna e outros DSS com a ocorrência de EHI em uma grande coorte de nascimentos nos Estados Unidos.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, baseado em coorte populacional, envolvendo todos os nascidos vivos a partir de 35 semanas de idade gestacional em 15 hospitais do sistema Kaiser Permanente Northern California, entre janeiro de 2012 e julho de 2019. O estudo seguiu a diretriz STROBE para estudos observacionais.
O desfecho primário foi diagnóstico de encefalopatia hipóxico-isquêmica perinatal, definida pela presença de acidose perinatal (pH <7 ou déficit de base ≥10 mmol/L em gasometria de cordão ou em amostra de sangue até 2 horas de vida) associada a encefalopatia neonatal confirmada em prontuário.
As exposições avaliadas incluíram raça e etnia maternas autorreferidas, índice de privação de vizinhança (NDI, (Neighborhood Deprivation Index) e uso de seguro público. Variáveis clínicas maternas e neonatais (idade, paridade, obesidade, diabetes, hipertensão, complicações obstétricas, via de parto, peso ao nascer, entre outras) foram utilizadas como covariáveis.
A análise estatística utilizou modelos de regressão multivariada com equações de estimação generalizadas, ajustando para características clínicas, NDI (Neighborhood Deprivation Index) e seguro público. Sensibilidade foi testada excluindo casos com raça/etnia materna ausente.
Leia também: Principais exames genéticos e indicações em pediatria
Resultados
Dos 290.535 nascimentos, 25,8% eram de mães hispânicas, 24,6% de asiáticas ou ilhéus do Pacífico não hispânicas, 6,4% de negras não hispânicas, 4,2% multirraciais não hispânicas e 37,6% de brancas não hispânicas. A média da idade gestacional foi de 39 semanas, e 51,1% dos recém-nascidos eram do sexo masculino.
Ainda sobre as características da amostra, observou-se que mães asiáticas e brancas não hispânicas residiam com maior frequência em bairros menos desfavorecidos, enquanto mães hispânicas e negras não hispânicas estavam mais concentradas em bairros mais desfavorecidos e, além disso, eram mais frequentemente cobertas por seguro público. Em termos de fatores clínicos, idade materna avançada (maior que 35 anos) e nuliparidade foram mais comuns entre asiáticas e brancas não hispânicas, ao passo que os distúrbios hipertensivos da gestação foram mais frequentes entre mães negras não hispânicas.
A prevalência de EHI foi maior entre filhos de mães asiáticas (0,2%; RR 1,38; IC95% 1,06–1,80), negras (0,2%; RR 1,66; IC95% 1,15–2,14) e brancas não hispânicas (0,2%; RR 1,54; IC95% 1,21–1,95) em comparação aos filhos de mães hispânicas (0,1%). As chances de EHI diminuíram conforme aumentava o nível de privação dos bairros (P = 0,002 para tendência, pelo teste do qui-quadrado de razões de chance). Recém-nascidos de mães hispânicas apresentaram menor chance de EHI em comparação aos de mães brancas não hispânicas (OR, 0,70 [IC95%, 0,56–0,87]; P = 0,002).
Mesmo após ajuste para variáveis clínicas maternas, índice de privação de vizinhança (NDI) e tipo de seguro, o risco permaneceu significativamente menor para filhos de mães hispânicas (OR 0,75; IC95% 0,60–0,95; p = 0,02) em comparação aos filhos de mães brancas não hispânicas.
De maneira inesperada, viver em bairros pertencentes ao tercil mais desfavorecido do NDI esteve associado a menor risco de EHI (OR 0,78; IC95% 0,62–0,98; p = 0,03) em comparação ao tercil intermediário. Da mesma forma, possuir seguro público também se associou a menor risco de EHI (OR 0,72; IC95% 0,55–0,95; p = 0,02).
Além disso, os desfechos neonatais relacionados à EHI apresentaram variações importantes segundo raça e etnia. Escore de Apgar ≤ 5 no quinto minuto de vida e necessidade de reanimação em sala de parto ocorreram com maior frequência entre recém-nascidos de mães negras não hispânicas, indicando uma carga desproporcional de complicações nesse grupo.
Saiba mais: Anemia falciforme no Período Neonatal
Comentários: fatores sociais no risco de encefalopatia neonatal
O achado mais marcante deste estudo foi a constatação de que filhos de mães hispânicas apresentaram menor risco de EHI, mesmo em contextos de maior vulnerabilidade socioeconômica. Esse resultado se alinha ao chamado “paradoxo hispânico”, fenômeno descrito em outros desfechos perinatais, no qual populações hispânicas demonstram melhores resultados do que seria esperado com base apenas em fatores socioeconômicos. Diversas hipóteses têm sido levantadas para explicar essa proteção relativa, incluindo aspectos culturais, forte apoio comunitário, características demográficas como idade materna mais jovem, além de possíveis efeitos positivos de políticas públicas e de imigração seletiva.
Outro resultado que chamou a atenção foi a associação entre maior privação socioeconômica, medida pelo NDI, e menor risco de EHI. Em condições habituais, viver em bairros mais pobres costuma estar relacionado a piores desfechos materno-infantis, porém, neste estudo, ocorreu o contrário. Esse achado pode refletir, mais uma vez, a composição da amostra, já que muitas mães hispânicas residiam justamente nos bairros mais desfavorecidos e eram as que apresentaram risco mais baixo de EHI. Situação semelhante foi observada em relação ao seguro público, que, ao invés de indicar maior vulnerabilidade, mostrou-se associado a redução do risco, provavelmente pelo mesmo mecanismo de confusão. Assim, tais fatores não devem ser interpretados como protetores biológicos ou socioeconômicos em si, mas como marcadores indiretos da distribuição populacional dentro do sistema de saúde estudado.
Apesar da relevância dos determinantes sociais, os fatores clínicos maternos continuam a exercer papel central na determinação do risco de EHI. Distúrbios hipertensivos, idade materna avançada e nuliparidade, mais prevalentes em mães negras e brancas não hispânicas, contribuíram para explicar a maior ocorrência de EHI nesses grupos. Dessa forma, o estudo sugere que a interação entre características médicas individuais e determinantes sociais complexos é fundamental para compreender o risco de encefalopatia hipóxico-isquêmica.
O estudo apresenta algumas limitações. Não houve inclusão de dados sobre raça ou etnia paterna (o que poderia influenciar os resultados), a categoria “multirracial” englobou diferentes perfis (não permitindo análises mais refinadas), o uso de NDI e tipo de seguro como medidas indiretas de condição socioeconômica (pois não capta nuances de renda, escolaridade ou qualidade do cuidado recebido). Por fim, o estudo não diferenciou a gravidade da EHI, analisando apenas sua presença, o que limita a compreensão de como os determinantes sociais podem afetar não apenas a incidência, mas também a evolução clínica da doença.
Mensagem prática
O risco de encefalopatia hipóxico-isquêmica perinatal é influenciado não só por fatores clínicos, mas também por determinantes sociais de saúde. Filhos de mães hispânicas apresentaram menor risco, mesmo em contextos de maior vulnerabilidade, sugerindo efeito protetor de fatores culturais, comunitários e do cuidado integrado. A prevenção deve considerar aspectos médicos e sociais de forma conjunta.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.