A história da medicina, ainda que marcada por notáveis avanços científicos, também apresenta episódios em que o conhecimento foi instrumentalizado de maneira ideológica e excludente e entendida como pseudociência.
A eugenia é um dos mais emblemáticos exemplos desse desvio, tendo influenciado diretamente práticas médicas, políticas públicas e discursos científicos nas primeiras décadas do século XX. A neurologia, como campo em franca expansão nesse período, teve papel significativo em muitas dessas construções e, infelizmente, também em algumas de suas consequências mais trágicas.
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Origem
O termo “eugenia” foi cunhado por Francis Galton no final do século XIX, baseado nos postulados evolucionistas de Darwin — seu primo.
Galton defendia que a espécie humana poderia ser “aperfeiçoada” por meio da seleção dirigida de características hereditárias consideradas desejáveis, o que, inevitavelmente, implicava o controle — muitas vezes forçado — da reprodução de indivíduos com características julgadas “indesejáveis”.
Inicialmente associada a um discurso de progresso e saúde pública, a eugenia logo se converteu em fundamento ideológico para práticas discriminatórias, racistas e capacitistas, particularmente voltadas a pessoas com doenças mentais e neurológicas.
Durante o século XX, especialmente entre as décadas de 1920 e 1940, doenças neurológicas e transtornos mentais passaram a ser enquadrados como “sinais de degenerescência hereditária”.
Condições como epilepsia, deficiência intelectual, doença de Huntington, paralisia cerebral e esquizofrenia foram tratadas não apenas como patologias clínicas, mas como ameaças à “pureza” e à “eficiência” da sociedade.
Nos Estados Unidos, leis de esterilização compulsória foram implementadas em mais de 30 estados. A decisão da Suprema Corte no caso *Buck v. Bell* (1927) legitimou tais política. Mais de 60 mil esterilizações forçadas foram realizadas em pacientes considerados “inaptos”, frequentemente sem consentimento, baseadas em diagnósticos imprecisos e fortemente influenciados por vieses sociais, raciais e econômicos.
Muitos dos primeiros alvos eram crianças com doenças neurológicas identificadas como “incuráveis” — incluindo epilepsia, microcefalia, encefalopatias e retardo mental.
Lógica quebrada da eugenia
A base da eugenia repousa sobre a tentativa de estabelecer padrões normativos rígidos de funcionalidade física e cognitiva. Muitas das condições outrora classificadas como “degenerativas” hoje são compreendidas como parte de uma ampla neurodiversidade, com diferentes graus de impacto funcional e adaptativo.
Por exemplo, o transtorno do espectro autista (TEA), antes vinculado a modelos de degenerescência mental, é atualmente compreendido sob o paradigma da diversidade neurocognitiva. Esse deslocamento conceitual ilustra a importância de se analisar criticamente os fundamentos epistemológicos das classificações clínicas.
Embora as práticas eugênicas coercitivas tenham sido amplamente rejeitadas após a Segunda Guerra Mundial e os julgamentos de Nuremberg, os debates éticos continuam relevantes na contemporaneidade. Tecnologias emergentes como a edição genômica (CRISPR), o diagnóstico genético pré-implantacional e a inteligência artificial aplicada à triagem pré-natal levantam preocupações sobre a possibilidade de ressurgimento de discursos eugênicos, agora sob uma roupagem tecnocientífica.
No campo da neurologia, a interface com a genética moderna requer cautela. Estudos sobre predisposição genética a doenças neurodegenerativas (como Alzheimer e esclerose lateral amiotrófica) oferecem potencial diagnóstico, mas também demandam responsabilidade na comunicação e uso desses dados, evitando reducionismos deterministas.
A intersecção entre eugenia e neurologia revela como a produção científica, mesmo quando tecnicamente sofisticada, pode ser mobilizada para fins de exclusão e violência institucional. O resgate crítico dessa história é essencial para a formação de neurologistas, geneticistas e profissionais da saúde em geral, reforçando a necessidade de práticas pautadas em ética, direitos humanos e respeito à diversidade funcional e cognitiva.
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