A abordagem familiar é um dos aspectos mais importantes da Medicina de Família e Comunidade (MFC) e, provavelmente, o mais marcante e específico. Nesse contexto, no segundo dia do 18º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade (CBMFC 2025), a palestra “Crises Normativas e Paranormativas no Ciclo de Vida Familiar”, promovida pelos MFCs Camila Brandão Lobo, Lorenna Jacob de Mendonça e Rodrigo Santos Custodio Oliveira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), convidou os participantes a aprofundar justamente seus conhecimentos sobre as dinâmicas familiares, reforçando sobre como as fases do ciclo de vida e suas crises atuam como determinantes sociais diretamente implicados na saúde física, mental, espiritual, sexual e social dos indivíduos.
Entendendo o ciclo de vida familiar
Os ciclos de vida familiar são divididos em fases marcadas por transições marcadas, como sair de casa, formar um novo casal, ter filhos pequenos ou adolescentes, enfrentar o ninho vazio e lidar com o envelhecimento. Essas etapas, inspiradas nos modelos de Carter & McGoldrick e Bloise & Valerio, ajudam a compreender algumas das transformações possivelmente esperadas no funcionamento familiar ao longo do tempo.
No entanto, é necessário reconhecer que essas definições derivam de uma perspectiva tradicional e eurocentrada, muitas vezes centrada em famílias brancas, de classe média e heteronormativas. A apresentação no CBMFC propôs uma leitura mais plural e decolonial das famílias brasileiras, considerando configurações diversas como famílias LGBTQIA+, recasamentos, coparentalidade, famílias multigeracionais, contextos de migração, violência estrutural e disparidades socioeconômicas.
Nesse contexto, novos ciclos de famílias contemporâneas foram mais profundamente abordados. A partir das últimas décadas, começou-se a observar uma queda da taxa de natalidade, com famílias que optam por não ter filhos, e uma redução na fecundidade entre aquelas que os têm.
Mudanças nos papéis de gênero têm levado à formação de famílias com dois provedores financeiros e maior equidade nas responsabilidades domésticas e parentais. Também se destacam os divórcios, recasamentos, uniões informais e novos arranjos de conjugalidade, incluindo casais poliamorosos e pessoas LGBTQIA+.
Além disso, há que se notar que há novos arranjos de parentalidade, que incluem desde a adoção e a coparentalidade até a gestação solidária e a reprodução assistida. Todas demandam uma abordagem sensível e não normativa por parte da equipe de saúde. Soma-se a isso o envelhecimento populacional, com famílias que frequentemente reúnem três ou mais gerações sob o mesmo teto, além do impacto crescente das migrações e da desigualdade econômica.
A partir dessa perspectiva, a palestra buscou sistematizar as fases desses ciclos contemporâneos em quatro etapas:
- Etapa Constitutiva: caracterizada pela formação do vínculo conjugal, com desafios como dependência econômica ou afetiva, uniões entre adolescentes e dificuldades de adaptação à convivência, muitas vezes marcadas por diferenças socioculturais, econômicas e religiosas.
- Etapa Procriativa: envolve desde expectativas e conflitos sobre a gravidez, nascimento do primeiro filho e redistribuição de papéis, até a escolarização das crianças e adolescência, incluindo desafios como superproteção ou distanciamento emocional.
- Etapa de Dispersão: marcada pela saída dos filhos de casa, ingresso no mercado de trabalho, independência afetiva e financeira, e os recomeços das relações parentais.
- Etapa Familiar Final: os pais novamente sós enfrentam mudanças como a chegada dos netos, aposentadoria, climatério e viuvez, desafiando a identidade e o sentido de pertencimento.
Crises normativas e paranormativas do ciclo de vida familiar
As crises são compreendidas como momentos de instabilidade e vulnerabilidade dentro da trajetória de vida familiar. Enquanto as crises normativas são “esperadas”, ou seja, associadas naturalmente às transições do ciclo de vida, como adolescência, casamento ou aposentadoria, as crises paranormativas envolvem situações inesperadas ou traumáticas, como separações abruptas, perdas, doenças graves, desemprego ou violências.
Nesse sentido, distinguir entre esses dois tipos de crise é essencial para que o médico de família e comunidade possa propor estratégias de cuidado mais eficazes, acolher com empatia e reconhecer o impacto profundo que até eventos aparentemente “pequenos” podem ocasionar dentro de um determinado sistema familiar.
Por que isso importa na APS?
A MFC propõe uma abordagem integral e longitudinal. Assim, ferramentas como o genograma (que revela relações, padrões familiares e eventos marcantes) e o ecomapa (que mostra a rede de apoio e os contextos externos que influenciam a família) se destacam como aliados na prática clínica nesse contexto.
Além disso, é essencial que se pratique a escuta ativa: uma escuta empática e sem julgamento, um dos pilares do cuidado centrado na pessoa. Essa escuta sensível e atenta é capaz de identificar sofrimentos subjetivos que, muitas vezes, não emergem em queixas biomédicas objetivas, muito menos em uma primeira fala ou como queixa de apresentação.
Ao reconhecer o ciclo de vida familiar e as crises associadas como determinantes sociais de saúde, o médico de família se posiciona como um facilitador do cuidado, promovendo acolhimento, resiliência e autonomia. A abordagem familiar permite não apenas a compreensão ampliada do sofrimento, como também um tratamento mais adequado e eficaz.
A palestra aponta que trabalhar em uma perspectiva decolonial e adaptada à realidade brasileira significa também desconstruir padrões normativos e acolher famílias em suas múltiplas formas, oferecendo escuta e apoio qualificado.
Mensagens finais
- A crise familiar é um ponto de entrada potente para o cuidado na APS.
- Reconhecer as fases do ciclo de vida ajuda a entender os desafios esperados em cada momento pelos pacientes.
- Genograma e ecomapa são ferramentas valiosas para compreensão contextual.
- A escuta ativa não é apenas um ato investigativo, mas também terapêutico.
- A abordagem de novos e contemporâneos ciclos familiares amplia a capacidade de cuidado, respeitando a diversidade das famílias.
Confira a cobertura do CBMFC 2025 aqui no Portal Afya!
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