Uma das estratégias tidas como essenciais para o controle da tuberculose no mundo é a identificação e tratamento de indivíduos com tuberculose latente — o chamado tratamento preventivo para tuberculose (TPT). Embora o TPT para casos de tuberculose sensível já esteja estabelecido e conte com múltiplos esquemas possíveis, isso não é verdade quando se fala de contatos de pessoas com infecção por Mycobacterium tuberculosis droga-resistente (TB-DR). Para esses casos, a recomendação atual é o seguimento clínico dos contatos para o desenvolvimento de sinais e sintomas de doença ativa, visando a um diagnóstico precoce.
Algumas medicações vêm sendo estudadas em relação à sua eficácia como TPT. Entre elas, destacam-se as fluoroquinolonas, como a levofloxacina, que podem ser utilizadas no tratamento de TB-DR. O guideline de 2019 da American Thoracic Society já recomendava oferecer TPT por 6 a 12 meses com uma fluoroquinolona para contatos de indivíduos com TB-DR, em combinação com outra droga ou em monoterapia. Entretanto, as evidências para essa conduta ainda eram escassas.
Recentemente, foram publicados os resultados de dois grandes ensaios clínicos que investigaram essa questão: o VQUIN-MDR, conduzido no Vietnã, e o TB-CHAMP, conduzido na África do Sul. Apesar de independentes, as definições e desfechos avaliados foram semelhantes em ambos os estudos, permitindo comparações e análises conjuntas entre eles.
Desenho dos estudos
TB-CHAMP: Foi um ensaio clínico duplo-cego, randomizado por cluster e controlado por placebo conduzido em 5 locais na África do Sul, entre os anos de 2017 e 2023.
VQUIN-MDR: Foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo conduzido em 10 províncias do Vietnã, entre os anos de 2016 e 2019.
Populações incluídas
TB-CHAMP: Foram considerados casos-índice elegíveis, adultos com diagnóstico de TB pulmonar bacteriologicamente confirmada com resistência à isoniazida e rifampicina (TB-MDR). Entre seus contatos, eram elegíveis crianças menores de 5 anos que tivessem sido expostas ao caso-índice nos 6 meses anteriores. Posteriormente, crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos com o mesmo critério de exposição também se tornaram elegíveis se apresentassem um exame positivo de IGRA ou infecção pelo HIV.
Antes da inclusão no estudo, as crianças foram avaliadas para a presença de TB ativa por meio de anamnese, exame físico e radiografia de tórax. Somente as crianças sem evidências de TB ativa foram incluídas.
VQUIN-MDR: Foram considerados como casos-índices, adultos com diagnóstico de TB pulmonar bacteriologicamente confirmada com resistência a rifampicina ou a rifampicina e isoniazida. Contatos domiciliares de todas as idades desses indivíduos eram elegíveis se apresentassem evidência de infecção por M. tuberculosis (PPD ≥ 10 mm ou com conversão de PPD), infecção pelo HIV ou IMC < 16, desde que sem evidências de TB ativa. A avaliação para TB prevalente foi realizada de forma semelhante à do TB-CHAMP.
Leia também: Incidência e fatores de risco para tuberculose ativa em contatos domiciliares
Intervenções
TB-CHAMP: Os domicílios de cada caso-índice foram randomizados a razão de 1:1 para receber levofloxacina na dose de 15 a 20 mg/kg (máximo de 750 mg) ou placebo por 24 semanas.
VQUIN-MDR: Os participantes foram randomizados para receber levofloxacino na dose de 10 a 15 mg/kg para adultos e 15 a 20 mg/kg para crianças (máximo de 750 mg) ou placebo por 180 dias.
Desfechos
TB-CHAMP: O desfecho primário foi TB incidente (diagnosticada clínica ou microbiologicamente), incluindo óbito por TB, após 48 semanas da randomização. O desfecho de segurança pré-estabelecido foi qualquer evento adverso de grau 3 ou superior durante o período de tratamento e que tenha sido pelo menos possivelmente relacionado à medicação.
Desfechos secundários incluíram TB incidente em 72 semanas, óbito por qualquer causa, qualquer evento adverso de grau 3 ou maior no período entre o início da medicação do estudo e 30 dias após a última dose, eventos adversos graves até 30 dias após a última dose da medicação, descontinuação do tratamento do estudo devido a eventos adversos e adesão ao tratamento.
VQUIN-MDR: O desfecho primário foi TB incidente bacteriologicamente confirmada. Desfechos secundários incluíram todas as formas de TB (bacteriologicamente confirmada ou clinicamente provável), conclusão do tratamento (pelo menos 80% das doses programadas em até 270 dias), descontinuação do tratamento do estudo devido a eventos adversos, ocorrência de eventos adversos graus 3 ou 4, óbito ou aquisição de resistência a fluoroquinolonas em comparação com o caso-índice.
Resultados
TB-CHAMP: Foram incluídas 922 crianças que eram contatos de casos-índice com TB-MDR, dos quais 497 foram randomizadas para receber levofloxacina e 497, placebo. Devido à exclusão tardia, a população incluída como “intenção de tratar” modificada incluiu 916 crianças e os dados dessas foram utilizados para a análise primária de eficácia.
A mediana de idade dos participantes foi de 2,8 anos, sendo 91% menores de 5 anos. No geral, 49,2% eram do sexo masculino e 2,1% tinham infecção pelo HIV. A retenção ao estudo foi semelhante em ambos os grupos, com 81% dos participantes com seguimento de até pelo menos 48 semanas e 73%, até 72 semanas. Adesão ao tratamento foi de 86% em ambos os braços.
A incidência de TB foi de 2,3% no estudo (21/916) durante o período de seguimento, com 10 participantes apresentando diagnóstico microbiológico. Em 2 participantes, o diagnóstico de TB ocorreu após a 72ª semana. TB incidente na semana 48 ocorreu em 5 dos 451 participantes no braço de levofloxacina (1,1%) e em 12 dos 465 no braço que recebeu placebo (2,6%), o que correspondeu a um HR = 0,44 (IC 95% = 0,15 – 1,25; p = 0,12), sem diferença estatística entre os grupos. Na semana 72, TB incidente ocorreu em 1,3% dos participantes no grupo da intervenção vs. 2,8% no grupo placebo, com um HR = 0,49 (IC 95% = 0,18 – 1,30).
Em relação aos eventos adversos, também não houve diferença significativa entre os grupos, com 0,9% dos participantes no grupo de levofloxacina e 1,7% dos que estavam no grupo placebo desenvolvendo eventos com grau 3 ou superior (HR = 0,52; IC 95% = 0,16 – 1,71; p = 0,29). Foram reportados dois óbitos durante o período do estudo, mas nenhum esteve relacionado com TB e nem ao tratamento do estudo. Descontinuação do tratamento devido a eventos adversos ocorreu em 1,3% das crianças no grupo que recebeu levofloxacina e em 0,2% no grupo placebo (HR = 5,00; IC 95% = 0,61 – 41,32; p = 0,14). Baixa adesão ao tratamento com levofloxacina não esteve associada a maior incidência de TB durante o período de seguimento.
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VQUIN-MDR: Entre os contatos elegíveis, 2.041 foram incluídos e randomizados, com 1.023 sendo alocados no grupo que recebeu levofloxacina e 1.018, no grupo placebo. As idades dos participantes variaram de 2 a 87 anos. A porcentagem de participantes que completou os 6 meses de tratamento foi menor no grupo que recebeu levofloxacina em relação aos que receberam placebo (68,4% vs. 82,9%, respectivamente). Descontinuação devido a eventos adversos leves foi mais comum no grupo da intervenção e esses indivíduos também tiveram maior probabilidade de descontinuar o tratamento do estudo.
No período de seguimento de 30 meses, TB incidente bacteriologicamente confirmada ocorreu em 6 participantes do grupo da levofloxacina (0,6%) e em 11 do grupo placebo (1,1%). TB diagnosticada clinicamente ocorreu adicionalmente em 1 e em 2 participantes dos grupos da levofloxacina e placebo, respectivamente. Essa diferença não foi estatisticamente significativa. Em ambos os grupos, a incidência de TB foi maior entre os participantes que não completaram o tratamento em comparação com os que completaram.
Pelo menos 1 evento adverso de qualquer grau foi relatado em 306 participantes (31,9%) no grupo da levofloxacina e em 125 (13,0%) no grupo placebo, o que representa uma diferença de risco de 18,9% (IC 95% = 14,2 – 23,6%; p < 0,001). Entretanto, houve pouca diferença entre os grupos na incidência de eventos adversos graves, com uma diferença de risco de 1,0% (IC 95% = -0,3 – 2,4). Descontinuação do tratamento do estudo devido à ocorrência de eventos adversos ocorreram em 71 participantes no grupo da levofloxacina (7,4%) e em 11 no grupo placebo (1,1%). Ao longo dos 30 meses de seguimento, foram registrados 7 óbitos, todos considerados como não relacionados com TB.
Entre os 17 participantes que desenvolveram TB incidente, 11 tiveram resultados de suscetibilidade disponíveis (sendo 2 com presença de mutações associadas à resistência à quinolonas) e para 8 foi possível comparar os isolados de M. tuberculosis dos participantes com os do caso-índice. Não foi detectado desenvolvimento de resistência à quinolona no período do estudo.
Vale ressaltar
- Individualmente, em ambos os estudos não houve diferenças entre a administração de levofloxacina e placebo e o desenvolvimento de TB incidente. Entretanto, a análise conjunta dos dados individuais de cada estudo mostrou uma redução de 60% na incidência cumulativa de TB com levofloxacina em comparação com placebo (diferença relativa = 0,41; IC 95% = 0,18 – 0,92; p = 0,03).
- Também em ambos os estudos, a incidência de TB foi menor do que a esperada quando se fez o cálculo da amostra necessária para demonstrar diferença, o que pode interferir com o poder do estudo.
- No TB-CHAMP, a administração de levofloxacina por 6 meses em crianças não esteve associada a maior ocorrência de eventos adversos. Já no VQUIN-MDR, aproximadamente um terço dos participantes optou por descontinuar o tratamento devido a eventos adversos.
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