A terapia antirretroviral (TARV) é um dos pilares do cuidado de pessoas vivendo com HIV (PVHIV), sendo capaz de alterar a história natural da infecção pelo vírus. Contudo, para máxima eficácia e prevenção de seleção de mutações de resistência, é necessário que se alcancem níveis séricos adequados dos fármacos administrados. Na prática clínica, são comuns situações em que a absorção dos medicamentos que compõem a TARV pode não ser a ideal. Em condições em que há impossibilidade do uso de via oral, por exemplo, levanta-se o questionamento sobre a eficácia dos antirretrovirais para supressão viral após serem macerados e administrados por via enteral. Embora para alguns medicamentos, já há informação sobre essa questão, para outros as evidências ainda são escassas.
O esquema com bictegravir/entricitabina/tenofovir alafenamida (B/F/TAF) é considerado uma opção de primeira linha para o tratamento de HIV, possuindo alta eficácia e alta barreira genética. Além disso, apresenta vantagens como apresentação coformulada e facilidade posológica. Recentemente, foi aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) para ser incorporado ao SUS.
Conforme o uso dessa opção terapêutica se amplie, espera-se que situações em que haja necessidade de sua administração por via enteral aumente. Entretanto, as evidências sobre eficácia dessa estratégia são limitadas. Nesse contexto, um estudo publicado na Open Forum Infectious Diseases procurou avaliar o impacto na capacidade de B/F/TAF) de suprimir carga viral do HIV quando macerado e administrado por sonda enteral.
Materiais e métodos
Trata-se de um estudo retrospectivo que analisou dados de registros eletrônicos de dois hospitais norte-americanos entre fevereiro de 2018 e dezembro de 2023.
Considerou-se como possivelmente elegíveis pacientes com infecção pelo HIV com registro de terem recebido B/F/TAF por via nasogástrica, gastrostomia, via orogástrica ou por jejunostomia por pelo menos 7 dias consecutivos e que apresentavam pelo menos uma mensuração de carga viral do HIV no período de até 12 meses após essa prescrição.
O desfecho primário foi supressão viral nova ou mantida — definida como carga viral < 200 cópias/mL — no período de 12 meses de seguimento. Desfechos secundários incluíram resistência aos antirretrovirais e mudanças no esquema de TARV.
Resultados
Dos 54 indivíduos elegíveis, 19 foram incluídos na análise (22 foram excluídos por receberem B/F/TAF por via enteral por menos de 7 dias e 13, por não terem resultados de carga viral no período de seguimento).
A mediana de idade foi de 54 anos e a maioria dos participantes (84%) era do sexo masculino. A mediana de tempo de administração de B/F/TAF por via enteral foi de 19 dias (IQR = 7,5 – 64). Intubação orotraqueal foi o motivo mais frequente para impossibilidade de uso de via oral.
Durante o período de seguimento, 17 pacientes (89%) alcançaram ou mantiveram supressão viral. Entre os 8 pacientes com viremia detectável à admissão hospitalar, 6 apresentaram carga viral indetectável durante o seguimento. Apesar de permaneceram detectáveis, os 2 participantes restantes apresentaram quedas significativas de carga viral, com reduções de 2,8 e 3,3 log, respectivamente.
Houve 2 mudanças de TARV entre os participantes do estudo: um devido à interação medicamentosa com rifampicina e o outro para otimização do esquema e por interações com medicações prescritas. Três pacientes continuaram a receber B/F/TAF por via enteral após alta hospitalar. Baseados nos registros disponíveis, não houve detecção de novas mutações de resistência.
Foram registrados 8 óbitos na coorte, a maioria por causas não relacionadas ao HIV (6/8; 5 por infecções não relacionadas ao HIV e 1 por AVE hemorrágico). Dois indivíduos morreram devido a infecções oportunistas, mas mantiveram carga viral indetectável durante hospitalização.

Considerações finais: via enteral e supressão viral
- Esse estudo demonstra que a administração de B/F/TAF por via enteral após maceração é eficaz para levar ou manter supressão viral.
- As limitações do estudo, como utilizar dados de um único centro, natureza retrospectiva, ausência de avaliação de parâmetros de farmacocinética/farmacodinâmica e o tamanho amostral, impedem conclusões definitivas. Entretanto, os resultados sugerem que via enteral pode constituir uma alternativa em casos de pacientes que recebam B/F/TAF e estejam impossibilitados de utilizar via oral.
Autoria

Isabel Cristina Melo Mendes
Infectologista pelo Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ) ⦁ Graduação em Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro
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