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Gastroenterologia10 abril 2024

Um panorama atual sobre a pancreatite crônica 

A pancreatite crônica é uma entidade rara, com prevalência de aproximadamente 50 casos por 100.000 pessoas e predileção pelo sexo masculino (relação de 3:2)
Por Leandro Lima

A pancreatite crônica é caracterizada por episódios inflamatórios pancreáticos recorrentes que, em conformidade com a teoria fibroinflamatória, induzem à perda progressiva da função exócrina e endócrina. 

Um panorama atual sobre a pancreatite crônica 

Imagem de brgfx no Freepik

Principais causas 

A principal etiologia da pancreatite crônica é o uso abusivo de álcool, notadamente quando o consumo ultrapassa 5 unidades diárias (90 g). Nota-se ainda o efeito sinérgico com o tabagismo, que potencializa também o risco evolutivo para o adenocarcinoma pancreático. 

Na ausência de fatores de risco óbvios, a atenção deve se voltar para as alterações genéticas, especialmente diante de histórico familiar compatível.  

As principais mutações interferem na ação da tripsina, seja por meio de ganho da função (gene PRSS1) ou perda da função inibitória (genes SPINK1 e CTRC) e na função ductal (gene CFTR). Mais recentemente, foi aventado o papel de mutações no gene inTRPV6.  

A doença multiorgânica relacionada à IgG4, responsiva à corticoterapia, deve ser aventada particularmente entre os homens acima dos 60 anos com quadro de icterícia indolor.  

Leia também: ACSCC 2022: Conduta expectante frente a lesões císticas do pâncreas

Fisiopatologia 

As vias da inflamação, fibrose e dor na pancreatite crônica se perpetuam pela ativação das células estreladas pancreáticas, que migram do seu estado quiescente para o modo ativado, quando geram uma produção pungente de citocinas. 

As células estreladas, uma vez ativadas, sintetizam proteínas da matriz extracelular e secretam IL-4 e IL-13, deflagrando a atividade de macrófagos que, por sua vez, sintetizam TFG-β, intensificando o estado fibroinflamatório inerente à condição.  

O TFG-β realiza ainda a mediação da dor por meio da via de sinalização intracelular Smad3 nos neurônios sensoriais pancreáticos, estimulando as vias sensitivas aferentes direcionadas ao sistema nervoso central a partir da medula espinhal.  

A síndrome malabsortiva e o diabetes do tipo 3C geralmente se desenvolvem a partir do comprometimento glandular intenso, com função pancreática remanescente inferior a 10%. 

Manifestações clínicas 

A dor abdominal, tipicamente debilitante, é considerada a apresentação mais frequente (90% dos casos), referida na região epigástrica, com irradiação para o dorso e exacerbada no período pós-prandial.  

A esteatorreia, manifesta por fezes oleosas, volumosas, pálidas, mal-cheirosas e flutuantes, é acompanhada por síndrome malabsortiva, emagrecimento não intencional,  déficit de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), sarcopenia, osteopenia e osteoporose. 

Propedêutica fecal 

A mensuração da gordura fecal em amostra de 72 horas, propedêutica clássica, deve ser realizada na vigência de ingestão adequada de lipídeos (70 a 100 g). Os valores considerados normais são os menores ou iguais a 7%. Entretanto, as dificuldades práticas da coleta podem ser contornadas, com boa sensibilidade, pela pesquisa de gordura em amostra única de fezes. 

A propedêutica fecal ainda inclui a dosagem de elastase-1 e quimotripsina, com destaque para a maior especificidade e sensibilidade da primeira, que se aproximam de 100%. 

Alterações morfológicas e diagnóstico imaginológico 

As estenoses e cálculos ductais, em conjunto com as alterações parenquimatosas (atrofia, fibrose, calcificações e pseudocistos), são fundamentais para o diagnóstico e podem ser identificadas com boa acurácia pelos exames seccionais de imagem: TC e RM de abdome. 

A ultrassonografia endoscópica, por ser um método mais invasivo e menos específico, é reservada para os casos duvidosos, podendo ser útil ao elucidar alterações sutis, como focos e bandas hiperecóicas parenquimatosas, contornos lobulados do pâncreas, pequenos cistos parenquimatosos, dilatação, irregularidades e diminutos cálculos do ducto pancreático principal.  

As técnicas quantitativas de RM têm se desenvolvido rapidamente, valendo-se do alto conteúdo proteico pancreático que permite individualizar o volume extracelular (preditor de fibrose) e graduar o conteúdo de gordura (preditor de lipossubstituição).  

Saiba mais: Abordagem diagnóstica e terapêutica da síndrome do intestino irritável e da diarreia funcional

Abordagem 

A abstinência do álcool e tabagismo são fundamentais no tratamento da pancreatite crônica, mas são insuficientes para interromper a progressão da doença. 

A reposição de enzimas pancreáticas é importante no manejo da esteatorreia e da síndrome malabsortiva, recomendando-se geralmente a dose inicial de 40.000 a 50.000 unidades de lipase por refeição. O seu papel no controle álgico é controverso, de forma que não pode ser recomendada exclusivamente para essa finalidade. 

O controle álgico deve ser realizado de forma escalonada, por meio de analgesia simples, adicionando-se opioides sob demanda. Terapias adjuvantes incluem os antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina e gabapentinoides, que atuam no mecanismo de dor neuropática.  

O bloqueio do plexo celíaco, realizado por meio da infusão de anestésicos locais e corticoides, permite a redução da demanda por opioides em mais da metade dos casos, embora o alívio usualmente seja transitório.  

Nos indivíduos com estenoses e cálculos no ducto pancreático principal, a descompressão endoscópica ou cirúrgica pode ser útil no alívio da dor.  

Os stents de longo prazo posicionados no ducto pancreático podem trazer melhora do controle álgico em quase 90% dos pacientes. A drenagem cirúrgica, entretanto, é mais consistente no que se refere ao controle álgico em longo prazo (37% vs. 14% em 5 anos), devendo ser considerada de forma precoce na ausência de resposta às medidas menos invasivas. 

Uma vez indicado o tratamento cirúrgico, as técnicas preservadoras de parênquima pancreático e do duodeno são preferíveis, exemplificadas pelas cirurgias de Frey e Beger/Berne, bem como a pancreatojejunostomia longitudinal (cirurgia de Puestow).   

A pancreatectomia total, combinada com o autotransplante de ilhotas pancreáticas, deve ser reservada para o cenário de refratariedade ampla ao tratamento clínico, endoscópico e cirúrgico. O procedimento deve ser considerado mais precocemente na pancreatite crônica hereditária, pelo risco elevado de câncer pancreático.  

O diabetes é tratado em um primeiro com metformina, avançando-se para a insulinoterapia nos casos indicados. A terapia com incretinas deve ser evitada, pelo potencial intrínseco da classe farmacológica de deflagrar episódios de agudização de pancreatite.  

Uma atenção especial deve ser direcionada à prevenção da hipoglicemia. Os indivíduos com pancreatite crônica podem apresentar síndrome de mau esvaziamento gástrico por múltiplos fatores (gastroparesia diabética, estenose duodenal e compressão extrínseca por pseudocistos) e perdem um importante mecanismo contrarregulatório, em decorrência da menor capacidade de secreção do glucagon pelas células alfa das ilhotas pancreáticas. 

Complicações 

A evolução para adenocarcinoma ductal pancreático é uma das complicações mais temidas, com risco aumentado em pelo menos 13 vezes, principalmente nos primeiros 5 anos após o diagnóstico e, na presença de diabetes, alcança 33 vezes. O câncer pancreático é ainda mais frequente nas etiologias hereditárias de pancreatite crônica, quando há indicação de rastreio radiológico anual e consideração quanto à pancreatectomia total profilática. 

O marcador tumoral CA 19-9, embora possa estar aumentado no contexto da própria pancreatite crônica e na obstrução biliar benigna, quando elevado, aumenta a probabilidade de malignidade subjacente, com sensibilidade e especificidade superiores a 80% e razão de verossimilhança positiva de 4,08 e negativa de 0,24, podendo ser combinado com os métodos imaginológicos no rastreamento. 

As complicações inflamatórias, como pseudocistos, ascite, derrame pleural, fistula pancreática e trombose esplâncnica são mais esperadas na etiologia alcoólica (OR 2,0 – IC 95%: 1,38 a 2,9 – P < 0,001), enquanto as complicações fibrosantes, como estenoses ductais, biliares e duodenais, são mais associadas ao tabagismo (OR 2,23 – IC 95%: 1,56 a 2,32 – P < 0,001).  

Os pseudocistos pancreáticos demandam intervenção na presença de sintomas compressivos locais persistentes, condicionando dor abdominal, obstrução duodenal, gástrica ou biliar, sendo a modalidade de drenagem preferencial a ecoendoscópica, seja pela janela transgástrica ou transduodenal, com taxa de resolução próxima aos 90%. 

As complicações vasculares são representadas principalmente pelos pseudoaneurismas da artéria esplênica e trombose venosa. O manejo dos pseudoaneurismas geralmente se dá pela via intervencionista, através da embolização percutânea, com taxa de sucesso de 88% e risco de infarto esplênico de 5,5%. As tromboses esplâncnicas, especialmente no território da veia esplênica, devem levar à vigilância para o desenvolvimento de hipertensão portal segmentar e a discussão sobre o risco vs. benefício da anticoagulação.  

Novos horizontes 

As novas modalidades terapêuticas têm visado a inibição da IL-4, IL13 e TFG-β, com estudos incipientes em modelos animais com a pirfenidona. A sinvastatina pode auxiliar na correção de mecanismos autofágicos acinares e o paricalcitol, um potente análogo da vitamina D, pode induzir à retomada do estado quiescente das células estreladas pancreáticas.    

Conclusão e mensagens práticas  

  • A pancreatite crônica é uma doença crônica, rara e, até o presente momento, sem tratamento curativo.  
  • Os principais fatores de risco são o etilismo e tabagismo que, uma vez interrompidos, desaceleram, mas não interrompem, o seu curso evolutivo.  
  • A doença multiorgânica relacionada à IgG4, mais frequente entre homens idosos, é uma exceção em termos de responsividade à corticoterapia e imunomodulação. 
  • As medidas suportivas gerais incluem a analgesia, reposição de enzimas pancreáticas e vitaminas lipossolúveis, suporte nutricional, rastreio da doença osteometabólica e do adenocarcinoma pancreático.  
  • Os procedimentos descompressivos, sejam endoscópicos ou cirúrgicos, são indicados como adjuvantes no tratamento da dor, com melhores resultados em longo prazo com os segundos.
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Referências bibliográficas

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