As porfirias hepáticas agudas (PHA) são erros inatos raros do metabolismo do heme, e incluem a porfiria intermitente aguda (PIA), a coproporfiria hereditária (CPH), a porfiria variegada (PV) e a porfiria secundária à deficiência grave da enzima sulfídrica δ-aminolevulinato desidratase (o que provoca acúmulo de ácido 5-aminolevulínico no hepatócito). Os sintomas apresentados pelos pacientes são atribuídos ao acúmulo de metabólitos da via da biossíntese do heme que se acumulam frente a uma inatividade enzimática específica, cada uma atribuída a uma forma de porfiria.
A porfiria intermitente aguda (PIA) é o tipo mais comum de PHA, com uma prevalência estimada de pacientes sintomáticos de 1 a cada 100.000. Por sua vez, a frequência de variantes genéticas patogênicas na população é próxima a 1 a cada 1.700 indivíduos. A raridade da manifestação clínica da doença se deve à penetrância baixa do gene autossômico. A principal apresentação clínica envolve ataques de dor intensa, geralmente abdominal difusa, sem sinais de peritonite ou anormalidades em exames de imagem. Náuseas, vômitos, constipação, fraqueza muscular, neuropatia periférica e de pares cranianos, taquicardia e hipertensão também podem estar associados aos quadros agudos.
Os eventos agudos ocorrem principalmente em mulheres em idade fértil. Dessa forma, as porfirias devem ser consideradas na avaliação de todos os pacientes, especialmente mulheres com idade entre 15 e 50 anos, com dor abdominal recorrente grave não atribuível a outras causas mais comuns já investigadas.
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Testes diagnósticos para porfirias hepáticas agudas (PHA)
Os testes diagnósticos iniciais de escolha são o porfobilinogênio (PBG) urinário e o ácido delta-aminolevulínico (ALA) urinário, ambos corrigidos para creatinina urinária. Resultados que indiquem uma razão (ALA ou PBG)/creatinina urinária maior do que 10 mg/g de creatinina são diagnósticos da doença em um primeiro momento. O diagnóstico do tipo de PHA deve ser confirmado após o tratamento inicial por meio de testes genéticos para variantes patogênicas nos genes HMBS (sintetiza a enzima porfobilinogênio deaminase — principal deficiência enzimática atribuída à PIA), CPOX, PPOX e ALAD (codifica a enzima δ-aminolevulinato desidratase).
Por dentro das bases do tratamento
Os pilares do tratamento incluem a interrupção de medicamentos e substâncias desencadeantes das crises, administração de glicose intravenosa e oral, e hemina intravenosa, além do uso de analgésicos e antieméticos. A PHA também está associada a um maior risco de desenvolvimento de hipertensão arterial sistêmica, doença renal crônica, doença hepática crônica e hepatocarcinoma (CHC).
Recomendações específicas
Recomendação 1: Mulheres com idade entre 15 e 50 anos com dor abdominal grave, recorrente e inexplicada sem etiologia clara após uma investigação inicial devem ser consideradas para avaliação de uma PHA.
Estima-se que 3% a 5% dos pacientes com PHA sintomática cursem com crises recorrentes frequentes, geralmente definidos como 4 ou mais episódios por ano. Essas exacerbações podem não estar associadas a gatilhos identificáveis, embora algumas delas aconteçam durante a fase lútea dos ciclos menstruais, secundária ao aumento de progesterona.
Alguns indivíduos que carregam uma variante patogênica de PHA têm ALA e PBG elevados, mas nunca experimentaram crises agudas. Este grupo de altos excretores assintomáticos pode estar em risco aumentado de um ataque agudo desencadeado por fatores externos (como uso de drogas, álcool ou jejum prolongado), lesão renal ou hepática crônica e/ou hepatocarcinoma, quando comparados a indivíduos carreadores de mutações mas com níveis normais de ALA.
Recomendação 2: O diagnóstico inicial de PHA deve ser feito por meio de testes bioquímicos que medem ALA, PBG e creatinina em uma amostra de urina isolada.
Durante as crises agudas, tanto os níveis de ALA quanto os de PBG estarão elevados em ao menos 5 vezes o limite superior da normalidade do teste. Os níveis são altos o suficiente para que uma amostra de urina isolada seja suficiente. Elevações discretas e não diagnósticas de porfirinas urinárias (porfirinúrias secundárias) são frequentemente interpretadas incorretamente como indicativas de PHA e levam a um diagnóstico errôneo.
A menos que o paciente tenha sido tratado com hemina intravenosa, os testes de ALA e PBG podem ser realizados dias após o evento agudo. Estudos em pacientes com PIA mostraram que os níveis de ALA e PBG podem permanecer elevados na urina por meses a anos após uma crise aguda. Por outro lado, os níveis de ALA e PBG podem diminuir rapidamente após um ataque agudo em pacientes com CPH ou PV.
Recomendação 3: Testes genéticos devem ser utilizados para confirmar o diagnóstico de PHA em pacientes com testes bioquímicos positivos.
A recomendação é autoexplicativa. Pacientes que intercorreram com clínica sugestiva e possuem testes bioquímicos compatíveis, devem ser testados geneticamente para confirmação da doença. Familiares de primeiro grau devem ser rastreados com testes genéticos caso haja uma variante patogênica familiar identificada, como método de profilaxia. A maioria dos portadores de variantes patogênicas não passa por eventos agudos sintomáticos ao longo de suas vidas.
Recomendação 4: Crises agudas de PHA graves o suficiente para exigir internação hospitalar devem ser tratados com hemina intravenosa, administrada diariamente, preferencialmente em uma veia central de alto fluxo frente a possibilidade de flebite.
O tratamento atualmente recomendado para eventos agudos é a infusão intravenosa de hemina, geralmente administrada uma vez ao dia na dose de 3 a 4 mg/kg de peso corporal, normalmente por 4 dias. Frente às dificuldades de acesso encontradas no nosso meio, a medicação referida pode não estar disponível.
O alívio dos sintomas depende da eliminação do excesso de ALA e PBG e geralmente requer 48 a 72 horas, embora a recuperação dos sintomas neurológicos possa variar significativamente. Uma amostra de urina simples para ALA, PBG e creatinina deve ser coletada antes do início do tratamento com a hemina. O início da hemina pode ser feito de maneira empírica em pacientes com PHA suspeita.
Recomendação 5: Além da hemina intravenosa, o manejo das crises agudas de PHA deve incluir controle da dor, antieméticos, controle da hipertensão arterial sistêmica, taquicardia, hiponatremia e hipomagnesemia, se presentes.
A carga intravenosa de carboidratos (aproximadamente 300 g/d em adultos) é comumente utilizada durante os estágios iniciais dos eventos agudos, pois estudos demonstraram que o jejum induz a expressão do coativador de receptor ativado por proliferador de peroxissomo gama 1-alfa, que induz a expressão de ALA sintase 1 (ALAS1). Os eventos agudos podem estar associados à hiponatremia e hipomagnesemia devido a uma combinação de hipovolemia e síndrome da secreção inadequada de hormônio antidiurético (SIADH).
Recomendação 6: Os pacientes devem ser orientados a evitar gatilhos identificáveis que possam precipitar eventos agudos, como consumo de álcool e alguns medicamentos.
Fatores precipitantes comuns incluem medicamentos que induzem o citocromo P450, doenças agudas ou infecções, estresse físico ou psicológico, consumo excessivo de álcool, uso de tabaco e privação calórica.
Recomendação 7: A terapia profilática com hemina ou givosiran, administrada em ambiente ambulatorial, deve ser considerada em pacientes com crises recorrentes (4 ou mais por ano).
Embora a hemina seja eficaz na interrupção de eventos agudos, sua eficácia na prevenção de crises recorrentes é menos estabelecida. Além disso, o uso crônico de hemina está associado a várias complicações, incluindo a necessidade de cateteres venosos centrais permanentes, infecções e sobrecarga de ferro. Pacientes que recebem terapia profilática com hemina devem ser avaliados quanto à sobrecarga de ferro ao menos de 6 em 6 meses.
Em um estudo de fase 3, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo em pacientes com PHA e crises recorrentes, a administração subcutânea de givosiran mensal reduziu significativamente as taxas de eventos agudos, o que se correlacionou com níveis mais baixos de ALA e PBG urinários. Dessa forma, os autores do guideline sugeriram a prescrição de givosiran apenas para aqueles pacientes com eventos agudos recorrentes confirmados, tanto por testes bioquímicos quanto por pesquisa genética das variantes patogênicas das porfirias hepáticas.
Recomendação 8: O transplante de fígado para PHA deve ser restrito a pacientes refratários à farmacoterapia e com sintomas intratáveis, com significativa redução nos escores de qualidade de vida
A principal justificativa para o papel do transplante de fígado é que ele corrige a deficiência de porfobilinogênio deaminase no fígado de pacientes com PIA e restaura os níveis normais de PBG e ALA com resolução dos sintomas clínicos.
Recomendação 9: Pacientes com PHA devem ser monitorados anualmente quanto a doenças hepáticas.
Em pacientes com níveis de ferritina > 1.000 ng/mL, a flebotomia terapêutica deve ser considerada para reduzir a sobrecarga de ferro. O guideline não comenta sobre o uso de quelantes de ferro para pacientes com anemia refratária.
Recomendação 10: Pacientes com PHA, independentemente da gravidade dos sintomas, devem ser avaliados rotineiramente para hepatocarcinoma (CHC), começando aos 50 anos de idade, com ultrassom hepático a cada 6 meses.
Pacientes com PHA apresentam um risco aumentado de CHC (e colangiocarcinoma). O CHC pode ocorrer na ausência de fibrose hepática ou cirrose.
Recomendação 11: Pacientes com diagnóstico de PHA e em tratamento devem ser avaliados anualmente para doença renal crônica.
A hipertensão arterial sistêmica é frequentemente observada durante os eventos agudos, e pode resultar em hipertensão arterial sistêmica secundária em alguns pacientes. Em um relatório produzido por pesquisadores franceses, a doença renal crônica associada à porfiria (PAKD) ocorreu em até 59% dos pacientes com PIA sintomática, com um declínio anual na taxa de filtração glomerular de aproximadamente 1 mL/min/1,73 m². Entre os pacientes com diagnóstico de PAKD, aproximadamente 60% tinham hipertensão concomitante.
Recomendação 12: Os pacientes devem ser orientados sobre as complicações de longo prazo da PHA, incluindo neuropatia, doença renal crônica, hipertensão e CHC, com necessidade de monitoramento a longo prazo.
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