A obesidade representa hoje uma das principais ameaças à saúde pública global, afetando quase 900 milhões de adultos e associando-se a uma ampla gama de doenças crônicas, incluindo diabetes tipo 2 (DM2), doenças cardiovasculares, doença renal crônica, neoplasias e transtornos musculoesqueléticos. Ainda que as intervenções comportamentais representem a base do manejo, são frequentemente insuficientes para promover perda de peso clinicamente significativa e sustentada.
A cirurgia bariátrica consolidou-se como o tratamento mais eficaz para a obesidade grave, com benefícios metabólicos que se estendem à melhora do controle glicêmico, risco cardiovascular e redução da mortalidade. No entanto, o advento de terapias farmacológicas potentes, como a tirzepatida — um agonista duplo de GIP e GLP-1 —, acendeu pela primeira vez a possibilidade do debate da eficácia entre um tratamento medicamento e a cirurgia. Ensaios clínicos randomizados e controlados, como os do programa SURMOUNT, demonstraram que tirzepatida proporciona perdas de peso superiores a 20% e melhora marcante do risco cardiometabólico, sugerindo que sua eficácia pode ser comparável à de procedimentos cirúrgicos.
Nesse contexto, foi elaborado um estudo com o objetivo de comparar, num cenário de mundo real, os desfechos clínicos de adultos com obesidade que receberam tratamento com tirzepatida versus aqueles submetidos a cirurgia bariátrica. Trazemos o estudo para discussão sobre este tema, que deve ser cada vez mais frequente na prática clínica endocrinológica.
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Métodos
O estudo foi uma coorte retrospectiva, realizada com dados da TriNetX Global Collaborative Network — uma plataforma internacional que agrega prontuários eletrônicos de mais de 140 instituições em quatro continentes, incluindo variáveis clínicas, laboratoriais, demográficas e de medicação. Foram incluídos adultos com IMC ≥ 30 kg/m², sem eventos prévios como morte, eventos cardiovasculares ou renais nos três meses anteriores à inclusão (lembrando que foi uma coorte retrospectiva, por isso o desfecho “morte” faz sentido).
Os pacientes foram divididos em dois grupos (tirzepatida – indivíduos que iniciaram prescrição da medicação entre janeiro de 2022 e novembro de 2024 – e grupo cirurgia bariátrica (CB) – pacientes que realizaram bypass gástrico em Y-de-Roux ou gastrectomia vertical (sleeve), sem uso prévio ou posterior de tirzepatida). Para reduzir viés de seleção, foi realizado pareamento por escore de propensão (propensity score matching) 1:1, com ajuste para idade, sexo, raça, comorbidades, uso de medicações cardiovasculares e antidiabéticas, e parâmetros laboratoriais, totalizando 84.884 pares bem balanceados.
Os desfechos primários do estudo foi mortalidade por todas as causas, enquanto os secundários foram a incidência de eventos cardiovasculares maiores (MACE), definidos como infarto agudo do miocárdio, AVC isquêmico, hemorrágico ou morte súbita; e renais (MAKE), definidos como insuficiência renal terminal ou necessidade de diálise.
A população incluída no estudo apresentou uma alta carga de comorbidades. Notavelmente, a prevalência de DM2 foi maior no grupo tirzepatida (41,0%) em comparação à CB (25,8%), bem como o uso de insulina (15,2% vs. 8,2%), agonistas de GLP-1 (39,7% vs. 8,1%) e iSGLT2 (10,2% vs. 2,0%). Após o pareamento, as diferenças entre os grupos foram anuladas, garantindo comparabilidade.
Resultados
Ao longo do seguimento de até dois anos, a taxa de mortalidade foi significativamente menor no grupo tirzepatida: 0,19 por 100 pessoas/ano vs. 0,57 no grupo cirurgia (Hazard ratio (HR): 0,311; IC95%: 0,257–0,375; p < 0,0001).
A superioridade foi mantida em todas as análises estratificadas por faixa etária, sexo e categorias de IMC. Entre indivíduos ≥65 anos o HR foi de 0,271, enquanto em pacientes com IMC ≥40, HR 0,473. O benefício se manteve de forma independente ao sexo biológico (Homens: HR 0,420; mulheres: HR 0,339).
A tirzepatida também foi associada a um menor risco de eventos cardiovasculares maiores (MACE) e renais (MAKE):
- MACE: HR 0,743 (IC95%: 0,673–0,821; p < 0,0001)
- MAKE: HR 0,375 (IC95%: 0,336–0,419; p < 0,0001)
As análises de subgrupos mostraram redução consistente desses riscos em todas as faixas de idade, IMC, sexo e tipo de cirurgia.
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Eventos adversos
A incidência de efeitos adversos gastrointestinais foi significativamente menor com tirzepatida do que com cirurgia bariátrica. Eventos como náusea, constipação, refluxo e colelitíase foram menos frequentes no grupo farmacológico. A diferença mais notável ocorreu com íleo (HR 0,126), que foi quase exclusivamente reportado no grupo cirúrgico.
Apesar dos dados interessantes a respeito de desfechos clínicos, os autores não mencionaram dados relativos ao peso, percentual de perda de peso ou IMC inicial e ao final do seguimento em nenhum dos grupos, o que prejudica consideravelmente a análise dos resultados.
Conclusão e mensagem prática
Este estudo de mundo real de larga escala apresenta evidências iniciais de que a tirzepatida pode ser uma alternativa terapêutica segura e eficaz à cirurgia bariátrica em pacientes com obesidade. A magnitude da redução de mortalidade (−69%), eventos cardiovasculares (−26%) e renais (−62%) em dois anos supera as expectativas, com perfil de segurança superior e sem a necessidade de uma abordagem cirúrgica definitiva. Diferentemente da cirurgia, que exige avaliação multidisciplinar, estrutura hospitalar e recuperação prolongada, a tirzepatida pode ser iniciada em nível ambulatorial, inclusive por médicos da atenção primária.
Contudo, trata-se de um estudo retrospectivo, que apesar de utilizar métodos para mitigação de vieses, não traz a mesma robustez de um ensaio clínico randomizado, que deve ser o próximo passo nessa análise comparativa. Um outro ponto deve ser a custo efetividade, uma vez que a cirurgia é feita em um único momento, ao passo que a medicação deve ser mantida. As cenas para os próximos capítulos devem também incluir dados de longo prazo (onde o potencial da cirurgia pode aumentar e a aderência medicamentosa diminuir) e comparar o percentual de peso perdido, para que se possa aventar se os efeitos são medicação-dependentes ou se estão relacionados unicamente à perda de peso em si.
Por fim, de toda forma, surge uma medicação capaz de “bater de frente” com a cirurgia bariátrica nos estudos sobre tratamentos para a obesidade.
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