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Endocrinologia25 setembro 2025

Lipodistrofia parcial familiar: as recomendações do novo consenso brasileiro

A consequência básica da lipodistrofia é a ausência de tecido adiposo suficiente para a deposição de gordura, que promove seu acúmulo ectópico.

A lipodistrofia é uma síndrome caracterizada pela perda parcial ou completa do tecido adiposo subcutâneo. Classicamente, a condição, rara, pode ser dividida entre as causas genéticas (familiares) ou adquiridas (secundárias ao uso de medicações, HIV, transplante de medula, idiopáticas, etc) e entre formas parciais – autoexplicativa, onde há perda apenas local de tecido subcutâneo – e formas generalizadas, onde a perda acontece em todo o corpo. 

A consequência básica da lipodistrofia é a ausência de tecido adiposo suficiente para a deposição de gordura, que promove seu acúmulo ectópico, com aumento de ácidos graxos circulantes, culminando em resistência insulínica grave, DM de difícil controle, esteatose hepática, hipertrigliceridemia e suas consequências, além do risco específico de diferentes condições englobadas dentro das lipodistrofias. 

Recentemente foi publicado um novo consenso brasileiro sobre as lipodistrofias parciais familiares, que oferece, pela primeira vez no país, um guia completo para suspeita, diagnóstico, classificação e manejo dessas formas raras e heterogêneas de perda parcial de tecido adiposo. O documento nasce de uma força-tarefa de especialistas do BRAZLIPO e endereça lacunas como a baixa consciência entre clínicos, ausência de critérios padronizados e barreiras de acesso a centros especializados.  

O objetivo central do documento foi transformar sinais clínicos de lipoatrofia periférica e anormalidades metabólicas (como as mencionadas dislipidemia, resistência insulínica, DHEM, DCV precoce) em critérios diagnósticos que permitam aumentar a detecção desta condição e orientem um cuidado específico, desde as mudanças no estilo de vida a terapias-alvo como volanesorsen e metreleptina. Pela relevância do tema, trazemos para discussão aqui no Portal Afya.

Leia também: Revisitando o papel da resistência insulínica no diabetes mellitus tipo 1

médico explicando para paciente sobre lipodistrofia parcial familiar

Quando suspeitar: fenótipo, história e exame físico 

A suspeita clínica deve surgir diante de lipoatrofia em membros (critérios de suspeição), especialmente se acompanhada de: hipertrigliceridemia (≥150 mg/dL) e/ou HDL baixo; diabetes, IFG/TG (sobretudo <40 anos); MASLD; DAC precoce (<45 anos); acantose nigricans e SOP. O documento salienta que o fenótipo costuma “enganar” pelo IMC relativamente normal ou discreto sobrepeso, apesar do alto risco cardiometabólico; a relação cintura/quadril (RCQ) >0,85 (mulheres) e >0,95 (homens) aumenta a probabilidade diagnóstica quando combinada a tais anormalidades. 

Na avaliação antropométrica, além de circunferências, o consenso destaca pregas cutâneas (coxa anterior, subescapular, tríceps, panturrilha). A avaliação da prega de coxa, por exemplo, pode auxiliar na suspeita (sugestivo de lipodistrofia se < 20 mm em mulheres e 10 mm em homens). O Índice de Köb (Köbberling) — razão entre subescapular e panturrilha — ajuda na diferenciação entre LFP tipo 1 e forma indeterminada quando >3,477, por exemplo. Veremos mais sobre ao final. 

No exame físico, além da lipoatrofia de membros com aparente “muscularidade” e veias proeminentes (flebomegalia), são sugestivas as gorduras “paradoxais” em monte de Vênus/genitália, região cervical e submandibular (queixo duplo), e, nas mulheres com LFP2, ombros mais largos que o quadril, mãos pequenas e alargadas com dedos afilados (“sausage fingers”). 

Avaliação laboratorial e composição corporal 

O painel laboratorial base inclui lipidograma completo (com ApoB se disponível), triagem glicêmica (glicemia, HbA1c e TOTG conforme necessidade), hemograma/plaquetas, enzimas hepáticas para escore FIB-4 e CPK quando há suspeita de miopatia (especialmente variantes LMNA). Em mulheres com sinais de SOP, dosar androgênios (testosterona total, androstenediona, SDHEA) e 17-OHP. Para diferenciais (formas adquiridas), investigar HIV e complemento; Caso suspeita clínica, afastar Cushing e acromegalia, que são diferenciais cabíveis. A leptina costuma estar baixa ou “inapropriadamente normal”, e a adiponectina tende a ser reduzida. 

A densitometria de corpo inteiro (DXA) é sugerida também como um método objetivo para quantificar a lipoatrofia. É recomendado pelo consenso utilizar o FMR (relação gordura de tronco/gordura de membros inferiores) com pontos de corte sugeridos de >1,2 (mulheres) e >1,7 (homens), além da gordura de membros inferiores <25% do total como indicador útil, sobretudo em mulheres. “Sombras de gordura” (fat shadow) na DXA também apresentaram alta acurácia para lipodistrofias generalizadas e parciais.

Novos critérios diagnósticos

O consenso propõe um modelo combinatório que parte de um critério obrigatório de perda de gordura periférica, somado a critérios maiores/menores e/ou genética. O diagnóstico se confirma quando ocorrer:

  • 1 obrigatório + 2 maiores;
  • 1 obrigatório + 1 maior + 2 menores;
  • 1 obrigatório + teste genético positivo para subtipo conhecido. 

Critério obrigatório: documentação de escassez de gordura nos membros inferiores

O critério obrigatório (que sempre deve estar presente) é a documentação da escassez de gordura nos membros inferiores. A comprovação pode ser feita por: 

  • Prega de coxa ≤10 mm (homens) ou ≤20 mm (mulheres); OU
  • DXA com FMR >1,2 (mulheres) ou >1,7 (homens); OU
  • Gordura de membros inferiores <25% da gordura corporal total (mulheres).

Critérios maiores

  • Parente de 1º grau com LFP confirmada (clínica/genética); 
  • Hipertrigliceridemia grave (≥500 mg/dL) ou pancreatite aguda por hiperTG; 
  • Diabetes/IFG/IGT (especialmente <40 anos); 
  • MASLD.

Critérios menores 

  • História clínica: pancreatite por hiperTG (familiar), SOP, DM/hiperTG em parente de 1º grau <40 anos, DAC pessoal/familiar precoce, hipertensão <40 anos.
  • Laboratório: TG 150–499 mg/dL e/ou HDL baixo (♀<50; ♂<40); hipoleptinemia (♂<8 ng/mL; ♀<12 ng/mL).
  • Exame físico/antropometria: IMC <30, RCQ >0,85/0,95, acantose, muscularidade saliente, depósito de gordura suprapúbica/cervical/submandibular e supraclavicular preenchida.

Quando indicar pesquisa molecular (teste genético) em lipodistrofias parciais? 

A avaliação genética pode confirmar o diagnóstico e auxilia a orientar o aconselhamento familiar. Painéis NGS devem incluir genes de lipodistrofias congênitas e parciais (AGPAT2, LMNA, PPARG, PLIN1, CAV1, LIPE, CIDEC, AKT2, MFN2, entre outros). O consenso recomenda testar casos que atendam aos critérios de suspeição e rastrear em cascata familiares de casos clínicos/genéticos confirmados, mesmo quando o indivíduo não cumpre integralmente os critérios clínicos.  

Subtipos principais e classificação

O consenso ainda aborda, de forma sucinta, os principais subtipos de lipodistrofias parciais familiares. Aqui, fazemos um apanhado com as principais informações: 

1) LFP1 (Köbberling): Perda de gordura restrita a glúteos e extremidades, com acúmulo troncular e face/genitália poupadas; maior frequência de hiperTG, pancreatite e DAC que na LFP2. Dada a heterogeneidade e provável base poligênica, o consenso define LFP1 quando o Índice de Köb >3,477; O grande diferencial aqui é o tipo indeterminado (tipo x), onde o paciente apresenta uma variante de significado incerto ou desconhecido. Logo, em ambas as situações, não teremos uma variante patogênica clara, como nos outros subtipos, por isso a necessidade desse diferencial. Caso o Kob index for menor que 3,477, definimos como tipo X. 

2) LFP2 (Dunnigan, LMNA): O subtipo genético mais prevalente (~80% dos casos com variantes conhecidas). Fenótipo típico: lipoatrofia de membros, gordura em suprapúbica/cervical/supraclavicular (sinal de Dunnigan), “muscularidade” e flebomegalia; nas mulheres, quadro mais exuberante e diagnóstico mais precoce. Variantes LMNA podem associar miopatia e cardiomiopatia/arrítmias. 

3) LFP3 (PPARG): Lipoatrofia de membros geralmente menos marcada que na LFP2, mas metabolismo mais comprometido, como dislipidemia e resistência à insulina mais intensas.  

Outras formas genéticas: Destacam-se PLIN1 (tipo 4), CAV1 (tipo 7), CIDEC (tipo 5), LIPE (tipo 6), além de quadros relacionados a AKT2, ADRA2 e MFN2. Fora 1–3, os fenótipos variam e exigem integração clínica com a genética para classificação final. 

Manejo

O tratamento começa por mudanças no estilo de vida  (dieta hipocalórica individualizada, atenção ao risco de hiperTG e esteatose hepática mesmo sem obesidade; exercício aeróbico e resistido) e rastreamento regular metabólico-hepático-cardiovascular. Além disso, é fundamental a atenção ao risco de DM e dislipidemia. 

Em pacientes com DM, a metformina segue como primeira linha; em resistência significativa, agonistas do GLP-1, inibidores de SGLT2 ou insulina devem ser considerados. Vale destacar que agonistas de GLP-1 apresentam evidências advindas apenas de séries de casos, porém demonstram um potencial significativo na condição. Tiazolidinedionas podem ter vantagem nos LFP3 (alvo PPAR gama). O consenso também pontua a tirzepatida como uma opção promissora. 

Quanto ao manejo da dislipidemia, devemos priorizar o uso de estatinas de alta potência, seguida de ezetimiba para metas de LDL; para hiperTG severa (≥500 mg/dL), fibratos e ômega-3. O volanesorsen (anti-APOC3; 285 mg SC semanal) deve ser considerado nas LFP com pancreatite aguda/recorrente ou alto risco por hiperTG severa refratária. Ensaios clínicos demonstraram redução de TG em ~88% aos 3 meses e queda de gordura hepática. É fundamental a monitorização de plaquetopenia, efeito colateral conhecido da medicação. 

Outra opção interessante para casos refratários é a metreleptina (leptina recombinante), que pode promover melhora da hiperfagia, resistência insulínica e de complicações em lipodistrofias. O consenso recomenda seu uso quando HbA1c >8,0% e/ou TG ≥500 mg/dL apesar de tratamento otimizado. A posologia recomendada no consenso é iniciar em 0,05 mg/kg/dia SC e titular até 10 mg/dia. Estudos mostram quedas de HbA1c e triglicerídeos.

Monitoramento contínuo de glicose no manejo da hipoglicemia pós-bariátrica

Como esta nova diretriz pode influenciar a nossa prática médica

O novo consenso sobre LPF permite organizar o raciocínio frente a hipótese de lipodistrofia através de passos simples, como a observação mais objetiva do fenótipo, avaliação de pregas, FMR na densitometria e, após, o emprego de critérios diagnósticos bem definidos para fechar o diagnóstico, além da pesquisa molecular. 

No cuidado longitudinal, a diretriz traz recomendações atualizadas sobre quando empregar terapias específicas como o volanesorsen e a metreleptina. Ao mesmo tempo, reafirma o papel central do controle lipídico intensivo e o uso criterioso dos aGLP-1 e iSGLT2. 

Por fim, é um documento muito útil para a prática do endocrinologista e permite uma melhora no manejo e diagnóstico desta condição rara e que muitas vezes passa desapercebida. 

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Referências bibliográficas

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