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Endocrinologia22 setembro 2025

Revisitando o papel da resistência insulínica no diabetes mellitus tipo 1

Revisão explorou estudos através de clamps euglicêmicos/hiperinsulinêmicos e outros métodos para observar o impacto da resistência insulínica em indivíduos com diabetes tipo 1

O diabetes tipo 1 (DM1) é classicamente definido como uma condição causada de deficiência absoluta de insulina, causado pela destruição autoimune das células beta pancreáticas, culminando em hiperglicemia e suas consequências. 

Hoje, contudo, sabemos que a realidade clínica é mais complexa. Uma proporção significativa de pacientes desenvolve resistência insulínica (RI), fenômeno que modifica o curso da doença, amplia o risco cardiovascular, acelera complicações microvasculares e impõe maior dificuldade terapêutica, por diversos mecanismos, desde os mais clássicos como a própria obesidade, como outros mais complexos e frequentemente ignorados. 

Para explorar essa complexa fisiopatologia, foi publicada recentemente uma revisão no JCEM, revista da Endocrine Society e um dos principais periódicos sobre endocrinologia do mundo. A revisão explorou estudos exclusivamente realizados em humanos através de clamps euglicêmicos/hiperinsulinêmicos e outras metodologias padrão para observar o impacto da resistência insulínica em indivíduos com DM1, bem como seus determinantes como a exposição periférica excessiva à insulina exógena, hiperglucagonemia persistente, glicotoxicidade, lipotoxicidade, inflamação crônica de baixo grau, disfunção endotelial, entre outros. Trazemos os principais pontos dessa extensa revisão para discussão aqui no portal. 

Resistência insulínica em indivíduos com DM1 

A resistência insulínica no diabetes tipo 1 precisa ser entendida a partir da contribuição de diferentes tecidos e sistemas que, em conjunto, determinam o perfil individual de sensibilidade à sua ação.  

Para compreendermos melhor, a revisão traz uma divisão didática a partir da qual podemos compreender melhor o papel de cada tecido. No fígado, por exemplo, um dos principais reguladores do metabolismo glicêmico, a produção endógena de glicose permanece paradoxalmente elevada mesmo diante de hiperglicemia. Esse fenômeno pode ser explicado pela presença de hiperglucagonemia vista em alguns indivíduos com DM1 (decorrente do desbalanço na ilhota pancreática e ausência de inibição local pela insulina), pelo aumento do aporte de substratos como lactato, glicerol e aminoácidos e, sobretudo, pela perda do gradiente portal-periférico de insulina que caracteriza a fisiologia normal. A administração subcutânea periférica rompe essa relação, modificando a farmacodinâmica da insulina no organismo, levando a hiperinsulinemia sistêmica. 

Porém é no músculo esquelético que encontramos o principal determinante da resistência insulínica no diabetes tipo 1. Estudos com clamp e técnicas de ressonância magnética demonstram que em indivíduos com hiperglicemia há uma redução significativa da captação de glicose, que chega a ser cerca de 40% inferior à observada em controles saudáveis, fenômeno conhecido por glicotoxicidade. O defeito é predominantemente de transporte e fosforilação da glicose, com falha na translocação de transportadores GLUT-4 para a membrana e consequente redução da geração de glicose-6-fosfato. O fluxo para síntese de glicogênio é particularmente comprometido, enquanto a oxidação da glicose tende a permanecer relativamente preservada. 

O tecido adiposo também apresenta peculiaridades. A supressão da lipólise por níveis fisiológicos de insulina pós-prandial é incompleta, resultando em maior liberação de ácidos graxos livres e glicerol para a circulação. Esse fluxo sustentado de substratos contribui para lipotoxicidade em fígado, músculo e endotélio, além de estimular vias inflamatórias de baixo grau. O aumento de ácidos graxos livres circulantes sabidamente aumentam a resistência insulínica. 

Do ponto de vista vascular, a insulina normalmente atua como vasodilatador e recrutador de leitos capilares, favorecendo a perfusão e o acesso da glicose ao espaço intersticial. No diabetes tipo 1, esse efeito também parece estar comprometido. Em condições de insulinemia fisiológica, o fluxo total pode ser preservado, mas a extração de glicose pelo músculo está reduzida, caracterizando um desacoplamento entre perfusão e metabolismo. O recrutamento capilar mediado por insulina encontra-se prejudicado, e esse fenômeno se correlaciona diretamente com a magnitude da queda na captação de glicose, estabelecendo uma ponte entre resistência insulínica e disfunção endotelial precoce. 

Outro aspecto importante é a interface com a autoimunidade. Evidências crescentes sugerem que a resistência insulínica também pode atuar como acelerador da progressão da autoimunidade em indivíduos suscetíveis. Em familiares de primeiro grau de pacientes com DM1 com autoanticorpos positivos, índices mais altos de resistência predizem progressão mais rápida para o diabetes clínico. Essa interação bidirecional compõe a chamada hipótese do “acelerador”, em que fatores ambientais e metabólicos modulam a velocidade da agressão autoimune. Ou seja: a resistência insulínica, por diversas vias, pode gerar uma situação de maior estresse para as células beta pancreáticas, exposição antigênica e precipitar o desenvolvimento de respostas autoimunes exacerbadas, culminando no DM1. Apesar de dados apontarem para tanto, ainda carecemos de estudos que comprovem de fato a causalidade dessa associação resistência insulínica vs. autoimunidade. 

O curso da resistência insulínica acompanha fases distintas. Antes mesmo do diagnóstico clínico, parentes de primeiro e segundo graus com autoanticorpos já apresentam HOMA-IR significativamente maior, sugerindo que o desequilíbrio metabólico precede a hiperglicemia franca. Em adolescentes e adultos jovens, o impacto da puberdade (hormônio do crescimento), da obesidade e de infecções pode acelerar esse processo. 

Após o diagnóstico, há um período breve de redução mensurável da sensibilidade insulínica, seguida por um período de normalização relativa durante a chamada lua-de-mel, por volta de três meses, e um novo declínio entre nove e doze meses, estabilizando em patamar de sensibilidade menor que o observado em controles. Essa trajetória parece se manter nos anos seguintes, caracterizando a resistência insulínica como traço persistente da condição, independente do tempo de evolução ou mesmo da presença de sobrepeso. 

Estratégias terapêuticas 

Estratégias de estilo de vida são o ponto de partida. A prática regular de atividade física estruturada, sobretudo programas que combinem exercícios aeróbicos e de força, melhora a sensibilidade insulínica, reduz a variabilidade glicêmica e contribui para menor necessidade de insulina. A introdução de pausas ativas durante o dia, especialmente após as refeições, mostrou-se eficaz em reduzir picos pós-prandiais e aumentar o tempo no alvo sem incrementar o risco de hipoglicemias. O sono também deve ser avaliado de forma adequada, já que até mesmo uma única noite de restrição parcial é capaz de reduzir em quase 20% a sensibilidade à insulina, e distúrbios crônicos, como a apneia obstrutiva do sono, se associam a maior variabilidade glicêmica e risco de complicações. 

Quanto ao esquema de insulina utilizado, pacientes em uso de infusão subcutânea contínua de insulina apresentam melhor disposição de glicose em comparação a regimes de múltiplas doses. Apesar de não haver estudos que trazem comparações diretas entre diferentes esquemas e seu impacto na resistência insulínica, dados advindos exclusivamente de pacientes em uso de bombas de insulina sinalizam para uma redução da glicotoxicidade, possivelmente pelo melhor controle e pela redução da variabilidade glicêmica, além da redução da hiperinsulinemia periférica. 

Entre os fármacos adjuvantes, a metformina é a opção mais bem estudada. Embora seus efeitos sobre a hemoglobina glicada sejam modestos, pode ser particularmente útil em pacientes com sobrepeso ou maior resistência clínica evidente. As tiazolidinedionas mostraram algum benefício metabólico, mas seu uso é limitado por efeitos adversos como ganho de peso, edema e risco de insuficiência cardíaca. 

Os inibidores de SGLT2 reduzem a hemoglobina glicada, o peso corporal e a dose de insulina, mas o risco de cetoacidose diabética euglicêmica permanece um obstáculo importante. Ensaios de curto prazo não demonstraram melhora clara da sensibilidade insulínica medida por clamp, e seu uso exige monitorização rigorosa, além de critérios de seleção restritos. Já os agonistas do GLP-1 e os co-agonistas despontam como agentes promissores, especialmente em pacientes com obesidade, oferecendo redução de peso e de dose de insulina, com potenciais benefícios cardiovasculares indiretos. O uso ainda é considerado offlabel, mas os dados emergentes sugerem uma função adjuvante cada vez mais plausível. Por fim, a pramlintida, análogo da amilina, atua reduzindo a hiperglicemia pós-prandial e o estresse oxidativo associado, permitindo menor necessidade de insulina prandial e favorecendo maior estabilidade glicêmica. 

Conclusão e mensagem prática 

A resistência insulínica no diabetes tipo 1 é um fenômeno precoce, persistente e clinicamente determinante, sendo uma condição que dialoga com a autoimunidade e com o risco cardiovascular, podendo afetar o controle glicêmico e aumentar o risco de complicações. 

Reconhecer sua presença pode auxiliar a ampliar o horizonte do tratamento do diabetes tipo 1, trazendo melhorias no controle glicêmico e redução do risco de complicações. 

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Referências bibliográficas

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