HbA1c como ferramenta de rastreio de diabetes mellitus gestacional
Apesar dos avanços na compreensão da fisiopatologia do diabetes mellitus gestacional (DMG) e a padronização dos critérios diagnósticos dessa condição, sobretudo após o estudo HAPO, o diagnóstico do DMG ainda é tema de controvérsias, seja sobre o momento do diagnóstico, valores de corte e mesmo métodos indicados para o rastreio.
O papel do teste oral de tolerância à glicose para a situação é consolidado, configurando hoje o método de escolha. A depender do país e da referência utilizada na literatura, recomenda-se ou o diagnóstico “em um passo”, com a realização do TOTG 75g entre 24 e 28 semanas (recomendação seguida pelo ministério da saúde brasileiro) ou em “dois passos”, com a realização do TOTG 50 g como triagem seguido do TOTG 100 g caso o primeiro esteja alterado com o objetivo de aumentar a especificidade deste diagnóstico.
Alguns estudos buscam avaliar o papel da hemoglobina glicada nesse contexto, dada sua ampla disponibilidade e facilidade na realização do teste, apesar das limitações desta no contexto da gestação.
Um estudo recentemente publicado no Lancet avaliou o resultado de três coortes prospectivas que avaliaram o papel da HbA1c como primeiro método de rastreio para a condição logo no início da gestação. Por se tratar de um tema relevante, de grande prevalência e possíveis impactos na saúde pública, trouxemos este artigo para abordagem em nosso portal.
O estudo
O estudo batizado como “STRiDE” buscou investigar o impacto do uso da HbA1c como ferramenta de rastreio precoce do diabetes mellitus gestacional. O objetivo foi, portanto, avaliar se a HbA1c (sozinha ou em um escore composto) poderia de forma acurada predizer as gestantes que testariam positivo para DMG no TOTG 75 g entre 24 e 28 semanas.
O objetivo foi justificado pelos autores pelo fato de que, apesar da consolidação do TOTG como ferramenta de rastreio, trata-se de um método trabalhoso, de maior custo e menor disponibilidade, não atendendo a todas as populações. Devido à ampla disponibilidade da HbA1c, o método pode ser uma ferramenta mais simples e mais acessível.
Os autores avaliaram uma coorte prospectiva de gestantes em sete centros na Índia (N = 3.070), no Quênia (N = 4104) e compararam com dados da coorte utilizada no estudo Pride (N = 4.320), que compreendeu uma população etnicamente diversa na Inglaterra.
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A HbA1c foi avaliada antes das 16 semanas e as pacientes foram submetidas ao TOTG 75 g entre 24 e 28 semanas para avaliação de fato do diagnóstico de DMG. Além disso, a HbA1c foi avaliada de forma isolada e também dentro de um escore composto por idade, IMC e história familiar de diabetes.
O estudo ocorreu entre fevereiro de 2016 e dezembro de 2019. Os critérios de inclusão foram mulheres gestantes, sem história prévia de diabetes, entre 18 e 50 anos, com menos de 16 semanas de gestação (ou 20 semanas no Quênia). Foram excluídas gestantes com DM1 ou DM2 e aquelas com uso de metformina 6 semanas antes do recrutamento por qualquer motivo, além daquelas com anemia grave (Hb < 8 g/L) ou hemoglobinopatias.
A prevalência de DMG encontrada (pelo TOTG 75 g) na população indiana foi de 19,2%, enquanto no Quênia foi de apenas 3,0%, contrastando com os 14,5% da coorte inglesa.
A hemoglobina glicada, como ferramenta de rastreio precoce de diabetes mellitus na gestação, atingiu um resultado interessante.
Em primeiro lugar, a HbA1c foi, como esperado, um fator de risco independente para o desenvolvimento de DMG. O RR nas coortes indiana, queniana e inglesa foram, respectivamente, 1,6; 3,49 e 4,72.
Em segundo, a HbA1c foi avaliada em um papel “rule-in e rule-out” para selecionar gestantes que testariam positivo no TOTG, tornando o exame desnecessário (ou seja, fechando o diagnóstico de DMG e também identificando aquelas cujo risco seria tão baixo que o TOTG seria dispensável). Os autores destacaram a escassez de estudos que avaliam o exame sobretudo com esse papel de descarte de HbA1c, sendo que a grande maioria dos estudos avalia o papel da HbA1c como um marcador diagnóstico substituto ao TOTG.
O uso da HbA1c sozinha, na proposta rule-in e rule-out seria capaz de reduzir a necessidade de realização do TOTG em 42% na Índia, 50% no Quênia e 47% no Reino Unido.
A variabilidade da acurácia da hemoglobina glicada (HbA1c) em diferentes populações deve ser considerada
Um destaque importante foi a variabilidade da acurácia da HbA1c nas diferentes coortes. Os valores de corte de rule-in (maior risco) e rule-out (sem risco) variaram consideravelmente:
- Índia: Rule-in: 5,4% e Rule-out: 4,9%;
- Quênia: Rule-in: 6,0% e Rule-out: 5,2%;
- Pride (coorte inglesa): Rule-in: 5,6% e Rule-out: 5,2%;
Logo, os autores ressaltam a importância de que, apesar de factível o uso da HbA1c como um passo inicial do rastreio do DMG, é preciso validar e investigar quais valores de corte devem ser utilizados para aquela população específica.
Escore de fatores de risco e HbA1c também têm impacto positivo
Um escore composto por fatores de risco (idade, IMC e história familiar de diabetes) também demonstrou uma boa capacidade de predição de DMG. O score poderia reduzir a necessidade de realização do TOTG 75g entre 50 e 64% das vezes, considerando as pacientes com critério “rule-in” como já diagnosticadas com DMG, sendo inclusive superior à HbA1c sozinha como preditor do diagnóstico de DMG, com melhor área sob a curva (AUC).
Perspectivas
O objetivo principal do estudo foi a simplificação do processo de rastreio de DMG, sobretudo em regiões de menor acesso à saúde. O ministério da saúde, Febrasgo e SBEM em seu guia para o rastreio e diagnóstico de DMG já abordam uma forma de realizar o rastreio simplificado utilizando apenas a glicemia de jejum no primeiro trimestre e, caso menor que 92 mg/dL, repetir entre 24 e 28 semanas. Tal abordagem infelizmente pode levar à perda de cerca de 15% dos diagnósticos quando comparada à realização clássica do TOTG, mas foi uma forma encontrada para se mitigar danos.
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A HbA1c até o momento carecia de maiores evidências e se apresenta como uma ferramenta mais disponível e que pode auxiliar na avaliação nesses locais de menor acesso à saúde. Contudo, é fundamental ressaltar que o objetivo desse estudo não foi comparar diretamente esse método com o uso do TOTG, mas sim uma forma complementar de se estabelecer uma abordagem passo-a-passo que resulte em um rastreio mais amplamente disponível e que potencialmente contribua para a melhora dos desfechos neonatais em filhos de mães diabéticas.
Portanto, ficamos no aguardo de ensaios clínicos randomizados que avaliem o impacto dessa forma de rastreio em desfechos gestacionais e sua validação na população brasileira.
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