A cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperosmolar hiperglicêmico (EHH) são duas das principais emergências relacionadas ao diabetes (DM).
Embora de fato poucas evidências advindas de ensaios clínicos randomizados tenham sido publicadas nos últimos anos, o último posicionamento da American Diabetes Association (ADA) sobre o tema foi publicado em 2001 e atualizado em 2009, já há 15 anos, versando muito pouco sobre o EHH. Em contrapartida, a Joint British Diabetes Societies for Inpatient Care (JBDS) tem atualizado constantemente seus posicionamentos, ainda que muitas das recomendações acabem se baseando em dados nacionais britânicos e as recomendações também sejam mais destinadas ao país.
Recentemente, em junho de 2024, foi publicado no jornal Diabetologia, da European Association for the Study of Diabetes (EASD) – a “ADA” da Europa – um posicionamento conjunto entre ADA, EASD, JBDS e American College of Clinical Endocrinologists (AACE) sobre o manejo e critérios diagnósticos atualizados da CAD e do EHH, uniformizando dessa forma as condutas e parâmetros entre as principais sociedades de diabetes no mundo. O consenso foi encabeçado pelo Dr. Guillermo E Umpierrez, um dos maiores (se não o maior) nome no estudo da hiperglicemia hospitalar.
Vale lembrar que a cetoacidose diabética representa a emergência aguda hiperglicêmica mais comum, correspondendo a cerca de 9% das internações por descompensação de diabetes nos EUA. Apresenta atualmente mortalidade < 1% em países desenvolvidos, mas pode chegar a 13% em crianças em países subdesenvolvidos e é a principal causa de morte em crianças com DM1. Na última década a incidência de CAD e EHH vem aumentando globalmente. Dados recentes mostram que crises hiperglicêmicas ocorrem em cerca de 44,5 a 82,6 eventos/pessoa/ano em indivíduos com DM1 e 3,2 eventos/pessoa/ano em DM2.
Trazemos aqui os principais destaques abordados onde algumas mudanças sutis podem ser encontradas. Para organizar melhor a revisão, vamos subdividir em alguns tópicos:
- Critérios diagnósticos da CAD e EHH
- Manejo da cetoacidose diabética (CAD)
- Manejo do estado hiperosmolar hiperglicêmico (EHH)
- Critérios de resolução da CAD e EHH
Critérios diagnósticos
Os critérios diagnósticos revisados da CAD são (todos devem estar presentes):
- Hiperglicemia: Glicemia ≥ 200 mg/dL OU história prévia de diabetes
- Cetose: Beta hidroxibutirato ≥ 3,0 mmol/l OU cetonúria ≥ 2+
- Acidose metabólica: pH < 7,3 E/OU bicarbonato < 18 mmol/l
Comentários: destaque para a redução do valor apontado pela ADA (no posicionamento de 2009 o valor da glicemia era ≥ 250 mg/dL), que já era indicado no guideline da JBDS e seguido pela Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). A inclusão no critério diagnóstico de diagnóstico prévio de DM melhora a sensibilidade para detecção e limiar de suspeição, sobretudo ao se considerar a maior incidência de CAD euglicêmica relacionada ao uso de inibidores de SGLT-2.
Já os critérios do EHH são (todos os quatro devem estar presentes)
- Hiperglicemia: Glicemia ≥ 600 mg/dL
- Hiperosmolaridade: Osmolalidade efetiva calculada* > 300 mOsm/kg OU Osmolalidade sérica total > 320 mOsm/kg
- Ausência de cetonemia significativa: Beta hidroxibutirato < 3,0 mmol/l OU cetonúria < 2+
- Ausência de acidose: pH ≥ 7,3 E bicarbonato ≥ 15 mmol/l
*Osmolalidade efetiva calculada = 2 x Na + glicose (em mmol/l)
*Osmolalidade sérica total = 2 x Na + glicose + ureia (em mmol/l; se conversão para mg/dL, é necessário dividir glicose/18 e ureia/6).
A gravidade da cetoacidose também foi definida como leve, moderada ou grave:
- Leve: Beta hidroxibutirato 3,0 a 6,0 mmol/l; pH 7,25 – 7,30 ou bicarbonato 15-18 mmol/l; estado mental alerta
- Moderado: Leve: Beta hidroxibutirato 3,0 a 6,0 mmol/l; pH 7,0 – 7,25 ou bicarbonato 10-15 mmol/l; estado mental alerta/sonolento
- Grave: Beta hidroxibutirato > 6,0 mmol/l; pH < 7,0; bicarbonato < 10 mmol/l; estado mental em estupor/coma
Uma última observação é que nem todos pacientes vão apresentar critérios claros e isolados de CAD e EHH, sendo possível ocorrer uma superposição de ambas as condições devido ao nível de desidratação apresentado.
Manejo da cetoacidose diabética (CAD)
Classicamente, dividimos o tratamento da CAD entre:
– Controle do fator precipitante
– Controle do potássio
– Controle da volemia
– Controle da glicemia e infusão de insulina
Potássio
– Se K < 3,5: NÃO iniciar insulina. Repor inicialmente 10-20 mEq/hora
– Se K entre 3,5 e 5,0: Iniciar insulina e repor potássio com meta de manter K entre 4 e 5 mEq/l
– Se K > 5,0: Iniciar apenas insulina e monitorar idealmente a cada 2h.
Manejo da volemia
– Iniciar a hidratação com soro fisiológico (SF) 0,9% ou outro cristaloide. Se hipovolemia grave iniciar 1l/hora; se não, considerar meta de reposição de 50% do déficit estimado de fluidos nas primeiras 8-12h
– Caso após a hidratação inicial a mesma ainda permaneça com sinais de choque, devemos manter o uso de cristalóides (SF 0,9% 1L/hora) até estabilização hemodinâmica, associando o uso de drogas vasoativas.
– Quando a glicemia estiver < 250 mg/dl, associar soro glicosado 5-10% (utilizar desde o início se CAD euglicêmica)
Insulina e glicemia
– Iniciar em bomba de infusão, na dose de 0,1U/kg/hora. Se CAD leve, é possível considerar o tratamento com insulina subcutânea (SC) 0,1 u/kg a cada hora ou 0,2U/kg a cada 2h
– Quando a glicose atingir níveis de 250 mg/dl, reduzir a velocidade para 0,05 u/kg/h
– Manter níveis de glicemia entre 150 e 250 mg/dl até a resolução da CAD.
Devemos monitorizar a glicose a cada 1-2h e eletrólitos, creatinina, beta hidroxibutirato, pH e BIC a cada 4h até a resolução da CAD. Bicarbonato, como de praxe, só deve ser considerado se pH < 7,0.
Manejo do estado hiperosmolar hiperglicêmico (EHH)
A grande particularidade aqui é que a meta não deve ser o controle de acidose e sim da osmolalidade. Além disso, a própria depleção volêmica desempenha um papel na patogênese, sendo que a reposição de volume pode per se auxiliar a reduzir a hiperglicemia e portanto a osmolalidade. Vale destacar que o tratamento, sobretudo do EHH, carece de grandes ensaios clínicos randomizados e é majoritariamente pautada na recomendação de especialistas.
As principais considerações para o manejo do EHH são:
- Reposição volêmica: iniciar na mesma velocidade que na CAD nas primeiras 2-4h, mas objetivar a reposição de 50% do déficit de volume em 8-12h e todo déficit em 24-48h. Atentar a situações de risco para hipervolemia como IC e DRC.
- O tempo de resolução da hiperglicemia usualmente ocorre entre 8 e 10h e os níveis não devem ser menores que 90-120 mg/dL para prevenção de edema cerebral
- Além disso, a taxa de queda do sódio não deve exceder 10 mmol/l em 24h
- A queda da osmolalidade sérica não deve ser superior a 3-8mOsm/kg/h.
- Lembrar que a hidratação inicial deve promover uma redução da glicose sérica e osmolalidade, promovendo entrada de água nas células e elevação do sódio sérico (a cada 100 mg/dL de queda promove um aumento de 1,6 mmol/l de sódio).
- O posicionamento recomenda o uso de soro 0,45% apenas se a osmolalidade não cair apesar do balanço hídrico adequado e uso de insulina
- É possível considerar iniciar insulina apenas depois da hidratação inicial para prevenir quedas acentuadas na osmolalidade, iniciando seu uso apenas quando a glicemia parar de cair após a reposição volêmica.
- A dose inicial de insulina caso não haja cetose associada por ser de 0,05U/kg/h
Devemos monitorizar a glicose a cada 1-2h e eletrólitos, creatinina e Osmolalidade sérica a cada 4h até a resolução da CAD.
Critérios de resolução da CAD e EHH
Os critérios de resolução trazidos no posicionamento são:
CAD:
- pH ≥ 7,3 ou BIC ≥ 18 mmol/L
- Cetonas plasmáticas < 0,6 mmol/L
- Idealmente, glicemia < 200 mg/dL
O Ânion GAP não deve fazer parte dos critérios e não devemos avaliar cetonúria, uma vez que esta leva mais tempo para a correção.
EHH: Apesar de não haver uma definição consensual, o texto traz os seguintes critérios:
- Osm plasmática < 300 mOsm/kg
- Hiperglicemia corrigida (glicemia < 250 mg/dL)
- Débito urinário > 0,5 ml/kg/h
- Melhora do status cognitivo
Veja também: Atualização do guideline da SBD sobre hiperglicemia hospitalar
Conclusões
Apesar de sutis, as mudanças trazem um clareamento e homogeneidade no diagnóstico da CAD e EHH, bem como uma padronização sobre os pontos chave do tratamento e critérios de resolução. Tal fato permite uma facilidade maior até mesmo para elaboração de novos estudos sobre os temas.
Ainda, vale lembrar que algumas das características desse posicionamento já estavam presentes nos posicionamentos da JBDS e da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), que apresenta em sua diretriz orientações mais aprofundadas sobre o tema.
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