ADA 2024: Racional e subanálises do estudo FLOW
No último dia do congresso da American Diabetes Association (ADA 2024), os autores do estudo FLOW e especialistas se reuniram para revisitar em detalhes o estudo, recém-publicado no New England Journal of Medicine (e que foi revisado aqui no Portal Afya), com destaque para análises secundárias, população estudada e análises de subgrupos.
O estudo FLOW foi o primeiro ensaio clínico randomizado (RCT) de um agonista de GLP-1 (a semaglutida) a avaliar como desfecho primário um desfecho composto renal em pacientes com diabetes. Até então, os inibidores de SGLT-2 eram os grandes expoentes nesse assunto, conferindo nefroproteção a pacientes com ou sem diabetes, algo não observado basicamente desde a demonstração da proteção renal gerada por iECA ou BRAs. Tal benefício foi amplamente demonstrado em estudos desenhados para indivíduos com ou sem diabetes (ex: EMPA-KIDNEY, CREDENCE e DAPA-CKD), após evidências iniciais em análises de desfechos secundários observados em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (ex: estudos EMPA-REG, CANVAS e DECLARE-TIMI).
Aqui, o objetivo dos autores foi revisitar com maiores detalhes o FLOW, sobretudo apresentando uma nova avaliação do resultado do estudo de acordo com a estratificação entre aqueles que já estavam em uso de inibidores de SGLT-2 (cerca de 15%) ou não. Vamos aos pontos mais importantes desse simpósio.
Diabetes e doença renal
O Dr. Peter Rossing (Universidade de Copenhagen) deu início à discussão abordando a importância do tema. Atualmente, o diabetes acomete cerca de 500 milhões de indivíduos, sendo que a previsão para 2045 é de aumentar esses números em 46%, chegando a cerca de 800 milhões de casos.
A doença renal é uma complicação muito comum em pacientes com diabetes, chegando a ocorrer em 40% dos indivíduos com DM2 e 30% em indivíduos com DM1. A importância desta associação é gigantesca, já que a doença renal crônica (DRC) também vem aumentando em incidência e prevalência e também como causa de morte, sendo previsto que em 2040 possa corresponder à 5ª maior causa de morte no mundo. Além disso, a associação entre DM e DRC aumenta em 4 vezes o risco de mortalidade por todas as causas comparado à população geral, ou seja, a presença de uma comorbidade acentua os danos que a outra pode causar.
Nos anos recentes temos visto benefícios crescentes nas terapias como inibidores de SGLT-2 e a finerenona reduzindo o risco de desfechos renais, porém é claro que existe um risco residual que é necessário endereçar.
Os agonistas de GLP-1 podem ser uma opção nesse cenário. Quando analisa-se estudos de risco cardiovascular com medicações dessas classes, é visto, em análises secundárias, que pacientes com doença renal, sobretudo naqueles com albuminúria presente, melhora dos desfechos. Contudo, até então, não havíamos nenhum estudo desenhado para verificar tal achado. Aí entra o estudo FLOW, com o objetivo de avaliar o impacto da semaglutida nessa população.
Design do estudo
Esmiuçando o estudo, o FLOW foi um ensaio clínico randomizado, de fase 3, duplo cego, placebo controlado, multicêntrico (28 países, incluindo o Brasil, que colaborou com 124 participantes). Os pacientes foram randomizados para semaglutida 1mg/semana vs. placebo de forma 1:1.
O estudo incluiu adultos com DM2 (com HbA1c < 10%) e doença renal crônica, definida como taxa de filtração glomerular (TFG) entre 50 e 75 ml/min com albuminúria maior que 300 mg/g (e menor que 5000) ou TFG entre 25 e 50 ml/min com albuminúria maior que 100 mg/g, que já estavam em uso de iECA ou BRA na dose máxima tolerada. Tais critérios acabaram por selecionar uma população de alto risco ou muito alto risco de progressão da doença renal (93% da população selecionada).
O objetivo primário do estudo foi avaliar o tempo para o surgimento de um primeiro evento dentre um desfecho composto por:
- Queda > 50% na TFG basal (sustentada por mais que 28 dias)
- Falência renal (definida como necessidade de diálise, transplante renal ou Taxa de filtração glomerular – TFG < 15 ml/min)
- Morte por causas renais
- Morte por causas cardiovasculares
Os desfechos secundários confirmatórios foram testados de maneira hierárquica ( se o P atingisse significância com um valor de 0,032, a análise prosseguia para o seguinte):
- Desfecho Composto renal
- Queda anual na TFG
- MACE (eventos cardiovasculares maiores, definidos como morte por causa cardiovascular, IAM ou AVC não fatais)
- Morte por todas as causas
A demografia e características clínicas principais dos pacientes do estudo foi a seguinte:
- Predominantemente branca e não hispanico/latinos;
- Média de idade foi de 66 anos;
- 30% mulheres;
- Média de glicada inicial de 7,8% e 67% tinha DM há mais de 15 anos
- IMC médio 32 kg/m²
- 23% tinha IAM prévio e cerca de 20% tinha IC prévia
- A média de TFG inicial era de 47 ml/min (cerca de 12% da população do estudo tinha TFG < 30 ml/min), enquanto a média de albuminúria foi de 580 mg/g, sendo que 68% dos pacientes tinha albuminúria A3.
Cerca de 95% dos pacientes estavam em uso de iECA/BRA (os demais eram intolerantes) e cerca de 15% em uso de inibidores de SGLT-2 (lembrando que o estudo foi desenhado em 2018 e iniciado em 2019 – logo, o uso dessa classe não era tão comum no momento do recrutamento para o estudo).
Em suma, o objetivo era selecionar pacientes de alto risco de progressão de doença renal e alto risco cardiovascular. Ao final, foram randomizados 3533 participantes.
Desfechos renais
O Dr. Vlado Perkovic deu continuidade explicando os desfechos renais. O estudo teve duração de 3,4 anos, interrompido precocemente após uma análise interina demonstrando benefícios claros favorecendo o grupo semaglutida.
O desfecho primário renal ocorreu em 23,2% dos pacientes do grupo placebo (410 pacientes/ano) e em 18,7% no grupo semaglutida (331), o que resultou num Hazard Ratio (HR) de 0,76 (0,66 – 0,88; IC 95%; P = 0,0003). Isso significa que houve uma redução de 24% no desfecho primário no grupo semaglutida 1 mg/semana vs. placebo. O NNT foi de 20 em 3 anos.
Com relação aos componentes do desfecho primário, destaque sobretudo à menor proporção de pacientes com queda persistente da TFG > 50% (HR 0,73) e morte por causas cardiovasculares (HR 0,71 (0,56 – 0,89; IC 95%)
Interessantemente, também havia sido pré especificada a análise do desfecho primário excluindo morte por causas cardiovasculares, com o intuito de se analisar puramente os desfechos renais. Mesmo assim, o Hazard Ratio continuou significativo – HR 0,79 (0,66 – 0,94; IC 95%).
O primeiro evento secundário confirmatório analisado foi a queda na TFG. A velocidade de progressão da DRC foi menor no grupo semaglutida vs. placebo (a queda na TFG foi 1,16 ml/min/ano menor (p < 0,001). Como o primeiro evento secundário confirmatório atingiu significância estatística, os outros foram analisados, também de forma hierárquica.
A queda de albuminúria também foi muito mais significativa no grupo semaglutida (queda 32% superior).
Redução impressionante de eventos cardiovasculares e morte por todas as causas
O Dr. Kenneth Mahaffey foi o responsável pela discussão dos resultados cardiovasculares.Comparado ao placebo, os resultados cardiovasculares foram o seguinte:
- Risco de eventos cardiovasculares maiores (MACE): HR 0,82 (0,68-0,98; IC 95%; p = 0,01)
- Morte por todas as causas: HR 0,80 (0,67-0,95; IC 95%; p = 0,01)
Atingir uma redução absoluta de risco de cerca de 3% e relativa de 20% nessa população foi algo considerado muito significativo, sendo que o NNT para redução de MACE foi de 45, enquanto morte por todas as causas teve um NNT de 39.
Dados adicionais: análise de subgrupos – resultados de acordo com o uso de inibidores de SGLT-2
A randomização inicial respeitou uma estratificação de acordo com o uso inicial de inibidores de SGLT-2. 15,6% dos participantes estavam em uso de iSGLT-2 desde o início. a média de idade, TFG e albuminúria foi equilibrada entre os grupos para comparação dos dados. Os dados desta subanálise foram publicados hoje na revista Nature.
Indo direto aos resultados, o maior destaque na análise é que não houve diferenças entre os grupos de forma estatisticamente significativa devido ao P para interação não ter sido significativo para o desfecho primário (p = 0,109) ou para os desfechos secundários.
Na análise do endpoint primário, pacientes que não estavam em uso de iSGLT-2 que receberam uso da semaglutida tiveram um grande impacto na redução, a exemplo do estudo original (HR 0,73), porém aqueles que já estavam em uso de iSGLT-2 não tiveram diferença (HR 1,07). Destaca-se, novamente, o P para interação não significativo – o número de participantes no grupo iSGLT-2 era muito pequeno e houve um número ínfimo de eventos, o que não permitiu conclusões adequadas.
O mesmo aconteceu para os eventos secundários.
Contudo, vale a discussão sobre a diferença de impacto que os agonistas de GLP-1 podem ter a depender do uso ou não de inibidores de SGLT-2. A apresentação focou em ressaltar que não há motivos no momento para se considerar uma diferença de desfechos naqueles que estão ou não em uso dessa classe, mas dados adicionais serão necessários para tal conclusão de forma definitiva, já que o estudo original não teve poder para de fato encontrar diferenças entre os grupos.
Trazendo os dados para a prática
A Dra. Katherine Tuttle foi a responsável por trazer os insights e como os dados do FLOW trial podem ser integrados à prática no cuidado de pacientes com diabetes e doença renal crônica.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que o estudo avaliou uma população de alto risco ou muito alto risco de progressão da DRC. Ainda não está claro se o benefício é independente do uso de inibidores de SGLT-2, mas nesse momento, ganhamos a opção de outra medicação que pode reduzir riscos renais e cardiovasculares nessa população, com um perfil de segurança adequado.
Confira os destaques do ADA 2024!
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