A obesidade é um distúrbio metabólico complexo com múltiplas influências genéticas e ambientais, caracterizado pelo desbalanço crônico entre ingestão calórica e gasto energético. Embora a maior parte dos casos resulte da interação entre variantes genéticas comuns e fatores comportamentais e ambientais, um subconjunto de pacientes desenvolve obesidade grave devido a mutações monogênicas, que alteram diretamente os mecanismos de regulação do apetite e metabolismo energético.
A obesidade monogênica ocorre devido a mutações raras em genes essenciais para a sinalização hipotalâmica da saciedade e controle energético, resultando em fome incontrolável desde a infância e rápido acúmulo de gordura corporal. Essas mutações impactam especialmente a via leptina-melanocortina, fundamental para o equilíbrio entre ingestão alimentar e gasto calórico. A identificação dessas condições é crucial, pois justamente a partir da compreensão dessas condições foram desenvolvidos tratamentos específicos, como agonistas do receptor de melanocortina 4 (MC4R) e a leptina recombinante, que podem modificar significativamente o curso da doença. Além disso, a compreensão dessas condições pode trazer mais luz ao entendimento da fisiopatologia da obesidade como um todo, com benefícios que podem transbordar ao manejo da obesidade comum.
Por sua relevância, foi publicado recentemente uma revisão acerca do tema na revista Endocrinology and Metabolism Clinics of North America, discorrendo sobre aspectos fisiopatológicos e a importância do diagnóstico precoce por meio da genotipagem e as estratégias terapêuticas disponíveis.
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Diagnósticos clínicos
A obesidade monogênica geralmente se manifesta nos primeiros anos de vida, com ganho de peso excessivo antes dos cinco anos, acompanhado por um quadro de fome insaciável e resistência a intervenções convencionais. No entanto, sua identificação ainda é um desafio, visto que muitos desses pacientes inicialmente recebem um diagnóstico de obesidade comum, retardando a implementação de tratamentos adequados.
O reconhecimento clínico dessas formas raras de obesidade baseia-se na presença de sinais fenotípicos específicos e características endócrinas associadas. As principais características incluem:
- Início precoce de obesidade (antes dos cinco anos), muitas vezes já evidente no primeiro ano de vida.
- Hiperfagia intensa e insaciável, com busca compulsiva por alimentos e dificuldade em respeitar sinais normais de saciedade.
- História familiar de obesidade grave e precoce (sobretudo se padrão de herança recessiva – por exemplo, em familiares com consanguinidade)
- Ausência de causas secundárias, com características sindrômicas (exemplo: Prader-Willi, Bardet-Biedl).
- Distúrbios endócrinos associados, que podem incluir hipogonadismo, insuficiência adrenal e atraso puberal, dependendo da mutação envolvida.
O diagnóstico molecular (avaliação genética) desempenha um papel essencial na confirmação etiológica e na orientação terapêutica. O uso de técnicas de sequenciamento de genes relacionados à obesidade permite identificar mutações patogênicas em indivíduos suspeitos, direcionando-os para tratamentos específicos, como agonistas de MC4R ou reposição de leptina.
Os principais genes envolvidos na obesidade monogênica incluem:
- MC4R (Melanocortina 4 Receptor): A mutação mais frequente, responsável por 5% a 6% dos casos de obesidade infantil grave. Pacientes com deficiência total de MC4R apresentam hiperfagia severa, ausência de resposta à saciedade e menor gasto energético basal. Já aqueles com mutações parciais podem responder a terapias que modulam o MC4R.
- LEPR (Receptor de Leptina): A deficiência desse receptor leva à resistência à leptina, resultando em hiperfagia extrema e hipogonadismo hipogonadotrófico, devido à incapacidade de regulação do eixo reprodutivo pelo hipotálamo.
- POMC (Pró-opiomelanocortina): Pacientes com deficiência de POMC apresentam insuficiência adrenal primária, obesidade grave e características fenotípicas específicas, como pele pálida e cabelo ruivo, devido à falta de produção de melanocortina.
- PCSK1 (Proprotein Convertase 1/3): Afeta a maturação de hormônios regulatórios, resultando em hiperfagia, insuficiência adrenal e disfunções endócrinas múltiplas, incluindo diabetes insipidus e hipogonadismo.
A diferenciação entre obesidade monogênica e outras formas sindrômicas é essencial, visto que a presença de malformações congênitas, deficiência intelectual ou dismorfismos faciais pode sugerir outras condições genéticas, como síndrome de Bardet-Biedl ou Prader-Willi.
Manejo clínico
A obesidade monogênica requer tratamento altamente especializado, envolvendo intervenções farmacológicas personalizadas, estratégias nutricionais e, em casos refratários, cirurgia metabólica.
Dentre as terapias farmacológicas direcionadas, destaque para o uso do setmelanotide (Agonista MC4R de Ação Seletiva) e à metreleptina (análogo da leptina humana). Com relação ao setmelanotide (Agonista MC4R de Ação Seletiva), o mesmo está indicado para pacientes com deficiência de POMC, LEPR e PCSK1, uma vez que por agir como agonista anorexigênico, restaura a sinalização hipotalâmica da saciedade. Por seu mecanismo de ação, é ineficaz em mutações que causam perda total da função do MC4R, mas pode ser benéfico em mutações parciais. Estudos demonstraram que 80% dos pacientes com obesidade monogênica (e indicação de seu uso) tratados por um ano perderam ≥10% do peso corporal no período. Vale lembrar que o tratamento da obesidade monogênica é muito desafiador e medidas farmacológicas comuns normalmente não surtem os efeitos desejados ou resultados apresentados na população geral.
Já a leptina recombinante pode ser utilizada em pacientes com deficiência congênita de leptina, restaurando a homeostase metabólica e reduzindo hiperfagia. O uso da medicação levou a melhora significativa na composição corporal e sensibilidade à insulina nesses pacientes.
Medidas tradicionais
Como mencionado, as medidas tradicionais podem ter menor impacto nos indivíduos com obesidade monogênica. Contudo, agonistas de GLP-1 (Liraglutida e Semaglutida) podem ser boas alternativas para pacientes com mutações MC4R funcionais, promovendo redução do apetite e controle glicêmico. Estudos mostraram uma perda média de 7% do peso corporal em pacientes com obesidade monogênica tratados com semaglutida.
Tratamento cirúrgico
A cirurgia metabólica pode ser considerada para pacientes com obesidade monogênica refratária ao tratamento clínico, especialmente aqueles com mutações em MC4R. O bypass gástrico em Y de Roux (RYGB) demonstrou melhores resultados do que a gastrectomia vertical, promovendo maior redução de peso nesses pacientes. Vale destacar que pacientes com mutações completas do MC4R podem ter resposta limitada até mesmo à cirurgia.
Perspectivas
O avanço no conhecimento da obesidade monogênica trouxe novas oportunidades para diagnósticos precoces e tratamentos específicos baseados na genética individual de cada paciente. O desenvolvimento de agonistas de MC4R, por exemplo, representa um marco no manejo dessa condição, permitindo melhor controle da hiperfagia e redução sustentada do peso corporal em diversas das mutações identificadas.
A implementação do diagnóstico molecular precoce e terapias personalizadas pode transformar significativamente o prognóstico desses pacientes. No futuro, espera-se que abordagens como terapia gênica e edição genética possam fornecer soluções definitivas para a obesidade monogênica, revolucionando o tratamento dessa população de difícil manejo.
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