Nos últimos anos, a medicina tem testemunhado uma transformação significativa com o aumento expressivo da presença feminina, como atesta o Demografia Médica CFM – 2024. Aquela que sempre foi uma área dominada por homens, hoje se vê moldada pela crescente participação de mulheres que, a cada dia, conquistam mais espaço e reconhecimento profissional.
Publicado em fevereiro deste ano, o documento do CFM revela ainda que o aumento no número de médicas no Brasil vem sendo percebido desde 2009. Em 2024, os homens ainda representam, ligeiramente, a maioria entre os médicos com até 80 anos, correspondendo a 50,09% do total, enquanto as mulheres compõem 49,91%.
Estima-se, porém que, em breve, o número de médicas ultrapasse o de médicos. Atualmente, entre os profissionais na faixa de até 39 anos de idade, as mulheres já constituem a maioria, representando 58% em comparação a 42% dos homens.
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Evolução histórica
Historicamente, a medicina foi vista por muitos séculos como uma profissão inadequada para mulheres, devido à longa e extenuante carga de estudo e trabalho, além da necessidade de tomar decisões rápidas e complexas – qualidade comumente atribuída com exclusividade aos homens.
As primeiras mulheres a se formarem médicas enfrentaram uma série de barreiras sociais e profissionais, como preconceito, falta de apoio institucional e limitações no acesso a postos de trabalho.
No Brasil, as pioneiras na área, como Rita Lobato Velho Lopes, a primeira mulher a se formar médica no país em 1887, abriram caminho para muitas outras. Mesmo tendo enfrentado desafios imensos, a trajetória dessas mulheres corajosas lançou as bases para a mudança que vemos hoje.
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Cenário atual
Embora a ideia equivocada de que mulheres são naturalmente mais aptas ao papel de cuidadoras, é inegável que experiências como a maternidade, o cuidado de familiares doentes e uma maior participação na comunidade — responsabilidades que frequentemente recaem sobre as mulheres — conferem a elas uma perspectiva mais humanizada no exercício da medicina.
Um estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia, publicado no Brazilian Journal of Development, revela que as mulheres são maioria em quatro das seis especialidades básicas: pediatria (69,63%), Medicina de Família e Comunidade (54,63%), Clínica Médica (50,96%) e Ginecologia e Obstetrícia (50,53%) — as mesmas que apresentam os maiores índices de humanização na prática médica.
Essa presença cada vez maior não se restringe apenas à quantidade, mas também à qualidade e ao impacto que elas têm no setor. Pouco a pouco, mulheres médicas estão assumindo papéis de liderança em hospitais, clínicas e universidades. Elas também estão na linha de frente da pesquisa médica, contribuindo de maneira significativa para o avanço do conhecimento científico.
Para a Dra. Amanda Gomes, editora-médica assistente do nosso Portal, a diversidade de gênero na área médica é importante sobretudo por conta da representatividade. “Contudo, sabe-se que apesar do aumento do número de mulheres médicas, a progressão de carreira é inferior quando comparada a dos homens e a liderança em grupos de pesquisa científica ainda é predominantemente masculina”, afirma.
Desafios persistentes
“Já somos maioria de ingresso nas faculdades, mas ainda não nos espaços de poder”, reitera a ideia a Dra. Raíssa Moraes, para quem essa é uma conta que não fecha. “Exigem que sejamos excelentes profissionais, sempre disponíveis, mas também que sejamos mães dedicadas à família. Acho que somente uma mulher em cargo de liderança para entender as necessidades que passamos”, completa, frisando que as mulheres já conquistaram muitas coisas, mas ainda há um longo caminho pela frente.
A desigualdade salarial é, certamente, um dos desafios a serem superados: estudos indicam que, em média, médicas ganham menos do que seus colegas homens, mesmo quando ocupam posições similares.
De acordo com o relatório Saúde Financeira do Médico em 2023, um dos fatores que ajuda a explicar tal discrepância é a carga horária. Enquanto, entre os profissionais casados e com filho, mulheres trabalham em média 47,8 horas por semana, homens trabalham 54,7 horas no mesmo período.
O impacto das funções familiares na carreira profissional da médica é evidenciado também ao observarmos que, nas formações familiares sem filhos, o tempo de dedicação ao trabalho remunerado delas aumenta para 50,6 horas por semana.
“Por que não cobramos, enquanto sociedade, que os cuidados com os filhos também não sejam uma atribuição dos homens, dentro ou fora da medicina?”, finaliza Dra. Raíssa.
Representatividade
Outro desafio é a sub-representação feminina em especialidades de alta remuneração e prestígio, como a cirurgia, a medicina intensiva e a cardiologia. Embora cada vez mais mulheres estejam se especializando nessas áreas, os números ainda são menores quando comparados aos homens.
Para a Dra. Amanda, antes de tudo, é necessário acabar com os estereótipos de gênero, que atribuem às mulheres funções de subordinadas.
“Nesse sentido, as escolas se configuram como um espaço oportuno para a divulgação das contribuições das cientistas para a sociedade, pois, ao valorizar o papel da mulher na ciência, certamente muitas meninas podem despertar o seu interesse pela área e contribuir para o fortalecimento do protagonismo feminino na medicina”, diz.
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Perspectivas para o futuro
A expectativa é que a presença feminina na medicina continue crescendo e que, com isso, venham também mudanças na cultura organizacional das instituições de saúde. Para a Dra. Isabel Melo, a diversidade de gênero tem sido apontada como um fator que contribui para a inovação e a melhoria na qualidade do atendimento ao paciente.
“Até mesmo por entender algumas particularidades do cuidado da população feminina e fatores que influenciam no adoecimento, promoção de saúde e na adesão a tratamentos, já que as profissionais mulheres muitas vezes também vivenciam e convivem com esses mesmos fatores”, afirma.
A ascensão das mulheres na medicina pode servir de inspiração para futuras gerações, incentivando mais meninas e jovens mulheres a seguirem carreiras na área da saúde. Programas de mentoria, redes de apoio e políticas públicas que promovam a igualdade de gênero serão fundamentais para assegurar que essa tendência se mantenha e que as mulheres continuem a alcançar seu pleno potencial no campo da medicina.
Conclusão
O protagonismo da mulher na medicina não é apenas um reflexo da mudança dos tempos, mas também uma conquista que resulta de décadas de luta por igualdade e reconhecimento.
“Antigamente, às mulheres era dado um único papel: o de ser mãe. Hoje eu vejo colegas alcançando o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e prosperando na carreira e na maternidade”, comenta a ginecologista e obstetra Dra. Caroline Oliveira.
Com sua crescente participação, as mulheres não estão apenas moldando o futuro da Medicina, mas também redefinindo os padrões de cuidado e liderança na área da saúde. As barreiras ainda existem, mas o caminho para a igualdade está cada vez mais claro e acessível.
“A multiplicidade da atuação das mulheres, seja na prática médica ou na ciência, é uma comprovação do movimento de que nós podemos e estamos fazendo cada vez mais aquilo que queremos”, encerra.
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