A dor crônica é uma das condições mais prevalentes e desafiadoras da prática médica. Mais do que um sintoma, ela se torna parte da identidade de quem convive com ela, influenciando relações, produtividade, autoestima e saúde mental. Ainda que terapias medicamentosas sigam como pilar de tratamento, cresce a demanda por estratégias que promovam o protagonismo do paciente no manejo da própria dor — e é aí que entram as intervenções digitais de saúde.
Você, médico, já se perguntou se um app de celular, um programa de realidade virtual ou uma simples notificação no relógio do paciente poderia fazer a diferença no seu bem-estar diário?
A revisão sistemática publicada no Journal of Medical Internet Research traz respostas promissoras — e outras desafiadoras — sobre como essas tecnologias estão sendo vivenciadas por pacientes em contextos reais.
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O que são DHIs e por que agora?
As chamadas Digital Health Interventions (DHIs) englobam recursos tecnológicos aplicados à saúde: aplicativos, websites, dispositivos vestíveis, terapias guiadas online e até realidade virtual. Durante a pandemia de covid-19, essas ferramentas se tornaram mais acessíveis e ganharam protagonismo como formas alternativas e complementares de cuidado — especialmente para condições crônicas que exigem suporte contínuo.
Essa revisão qualitativa analisou 27 estudos com mais de mil pacientes convivendo com dor crônica, investigando como eles experienciam o uso de DHIs em suas rotinas. E os achados vão além da eficácia: eles revelam como as pessoas sentem, interpretam, rejeitam ou abraçam essas tecnologias no cotidiano.
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Experiências positivas: o que encanta os pacientes?
1. Transformação pessoal e autoconfiança
Muitos pacientes descreveram que o uso de apps com conteúdo de Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) os ajudou a reformular crenças sobre a dor. Os ajudaram a sair do papel de “vítima da dor” e recuperar a sensação de controle. Estratégias simples — como escrever pensamentos, planejar metas pequenas ou identificar padrões de dor — se tornaram ferramentas poderosas para eles.
2. Motivação e engajamento em movimento
Relógios inteligentes, notificações e lembretes foram percebidos como “companheiros de caminhada” que incentivavam a prática diária de atividade física. “Graças ao app, eu sabia exatamente o que precisava fazer. Isso me fez me mexer mais.” “As notificações eram minhas preferidas — algumas diziam ‘Que tal se mover agora? Tenha um bom dia!’ — eu amava isso.”
3. Suporte emocional entre consultas
Pacientes relataram que ouvir áudios relaxantes, fazer meditações guiadas ou receber mensagens positivas proporcionava alívio e acolhimento em momentos de dor. “Quando a dor bate forte, você se sente muito só. Mas dava para ouvir aquela voz calma… e eu relaxava, sentia que não estava tão sozinha.”
4. Limitações e desafios: o que ainda precisa evoluir?
- Excesso de informação e autovigilância negativa: Para alguns, revisar gráficos de dor ou responder perguntas diárias sobre desconfortos gerou mais ansiedade. “Ficar vendo meus registros todos os dias me fez mergulhar num vórtice de mal-estar.”
- Realidade virtual nem sempre relaxa: Apesar de imersiva e inovadora, a realidade virtual (VR) causou mal-estar em alguns pacientes, especialmente os que já lidavam com ansiedade. Notificações podem frustrar: Em dias de dor intensa, mensagens de motivação causavam culpa e frustração. “Me sentia mal quando não conseguia cumprir a meta e o app me lembrava disso.”
- O valor do contato humano: O digital é bem-vindo, desde que venha como aliado — não substituto.
“Esse programa foi ótimo, mas não troco por uma conversa presencial com meu terapeuta.”
5. Conclusões práticas: o que o estudo nos ensina?
- Crescimento pessoal x sobrecarga: As DHIs podem empoderar — mas também gerar ansiedade se mal calibradas ou mal utilizadas.
- Autonomia com suporte: Personalizar a experiência digital é essencial para engajamento. Nenhum app fará o que um médico de verdade faz.
- Conexão constante, mas humana: O digital deve ser um braço da relação médico-paciente — não uma barreira.
E na minha prática? Como integrar essas tecnologias?
Como médicos, somos convocados a experimentar e recomendar — com critério e acompanhamento — programas digitais de atividade física, sono ou dieta aos pacientes com sintomas leves a moderados e avalie, em sua prática clínica, se a integração dessas ferramentas potencializa os resultados terapêuticos.
É possível fazer o monitoramento remoto das métricas geradas pelo app (por exemplo, horas de sono, passos diários, adesão às metas alimentares) e ajustar o plano terapêutico em tempo real, favorecendo a aderência e engajamento do paciente ao tratamento.
Para maximizar benefícios, temos que pensar em:
- Selecione apps com dados científicos e boas avaliações de usabilidade;
- Defina metas claras (por ex., 30 min de caminhada 3×/semana);
- Use dashboards clínicos (quando disponíveis) para monitorar adesão;
- Agendar retornos breves para discutir métricas e ajustar o plano;
- Atente-se à real acessibilidade: ofereça alternativas offline quando o acesso digital seja limitado.
Exemplos práticos:
- Dor lombar com cinesiofobia — app de exercícios progressivos;
- Fibromialgia e insônia — app de higiene do sono e meditações;
- Isolamento social — plataformas com fóruns de pacientes;
- Múltiplos medicamentos — apps de adesão e registro de sintomas.
Conclusão
A dor crônica desafia, sim. Mas também abre espaço para inovação. Quando bem aplicadas, as tecnologias digitais não apenas dão controle melhor da doença os pacientes — elas também ampliam nossa atuação como médicos.
Embora os efeitos sobre o bem-estar geral ainda precisem de mais investigação, a integração criteriosa dessas ferramentas na prática diária pode otimizar resultados e engajar pacientes de forma inovadora. Vale a pena pesquisar e testar!
Comece pequeno: ouça seus pacientes, ajuste um cuidado a mais. Um lembrete gentil, um gráfico bem feito ou um áudio relaxante pode ser a faísca que transforma a dor em possibilidade de cuidado. Inove. Humanize. Pense em como trazer o futuro para o presente da sua prática médica.
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