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Carreira13 dezembro 2025

Caso clínico: Antes que o ano acabe. Obrigada, doutor, pela ajuda!

Médico acompanha a longa luta de um paciente com cirrose até a morte e descobre, num último presente, que cuidar vai além de curar

Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.

O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.

Boa leitura!

Leia mais: 8 estratégias para melhorar a relação com seus pacientes durante as consultas

 

médico consolando um paciente em um relacionamento de empatia

Caso clínico

A quinta-feira desperta com uma mensagem. Doutor, ele morreu.

Médicos estão habituados a antecipar o luto, experimentar por dias, semanas até, a perda de alguém que não se foi ainda. Os sinais se encadeiam em uma mórbida ladainha: UTI, droga vasoativa, antibióticos, ventilação mecânica, mais antibióticos, diálise, coma, espera, espera, fim. Esse caso não foi diferente, raramente são.

A diferença não estava no infeliz processo, estava em meu papel. Era paciente do meu ambulatório. Fui eu quem lhe diagnosticou, confortou e tratou até a derradeira internação. E houve antes muitas outras, caso difícil. Cirrose, alcoolismo, depressão, dor, desemprego, esposa, filho. Fica pior quando a gente se envolve, quando se é o único nome com quem se pode contar. Não é mais serviço de Doutor Fulano, não tem ninguém acima, abaixo, ao lado… Apenas eu. Precisamente como o planejado.

Na última consulta do ano, trouxe-me um panetone, desses mais simples. A mão amarela e trêmula, o sorriso forçoso. Bem sabia quanto aquilo lhe custava, tive o ímpeto de lhe pagar em espécie, mas seria ofensivo. A esposa, que vinha sempre ao seu lado, dolorosamente lúcida, também preferia outro tipo de gesto. Preferia que tomasse seus remédios, que deixasse de beber, que tirasse forças sabe-se lá de onde, que tivesse um pouco de sorte também, pois sem ela não há jeito.

Passaram uns meses e o tempo urgia. Ascite, peritonite, encefalopatia. Pneumonia, depressão, recaída. Depois um pouco de sorte, acertamos os remédios, a família ajudou, tornavam a sonhar. Listado para transplante, um pouco de paz. Bateu o carro, endividado, amolou-se um bocado, mas manteve-se lá. A firmeza de um equilibrista que joga com a própria vida.

Em outubro, o último golpe. Mais uma infecção, mais uma internação, mais, mais, mais… Até quando mais? Sem vagas, foi mandado para longe. O hospital era bom, mas a distância nunca é, e da doença já sabíamos. A esposa reportava o terrível desenlace passo a passo, até aquela manhã. O velório será às 18h, doutor.

O dia correu ligeiro. E na medida em que o horário se aproximava, procurava razões para não estar lá. Falta de tempo, qualquer urgência, sei lá. Doutor está sempre tão ocupado. Ocorre que eu não estava, às 18h30 me dirigi até lá. Meu primeiro velório como médico do finado.

Cerimônia acanhada, a morte de uma pessoa normal. Vi semblantes desconhecidos com os traços dele, parentes. Reconheci o pequeno sentado junto daquela que devia ser sua avó. Deparei-me com a esposa de pé, esgotada, em vigília ao lado do caixão. Dei-lhe um abraço – quantos teria recebido? – e palavras de conforto. Reconheci seu esforço, de ambos, tentei apontar para o alto, na esperança de que também acreditasse. Não havia outro jeito, não havia. Então contemplei o féretro aberto, aquele rosto familiar, túrgido, desfigurado pela doença e pelos esforços em curá-la.

Afastei-me, roguei uma prece, deixei a cena em silêncio. Deveria ter me demorado mais? Tido com mais alguém? Não sei ao certo. Impossível desvencilhar-se do constrangimento de um paciente perdido, mesmo com todos os argumentos técnicos possíveis, mesmo sabendo que todos terminaremos ali um dia. Uma última impressão, gravada em minha retina para sempre. Mas não seria a última.

Dezembro, ensolarado, cruzo apressado a entrada do ambulatório. Uma presença me chama atenção, mais, me chama pelo nome. É a esposa, tímida, apreensiva, traz consigo uma lembrança, numa caixinha amarela. Um panetone, antes que o ano acabe, como ele fazia, obrigado pelo cuidado, doutor. Obrigado a vocês, mil vezes, obrigado a vocês.

Na medicina, ensinaram-me a salvar vidas; com ele, aprendi que também é meu dever acompanhá-las quando já não podem ser salvas. Presença, escuta e respeito pela história de cada um nunca entram em paliativo. A moral é simples: não é possível sempre salvar a todos, mas podemos evitar que alguém enfrente o fim sozinho. E, às vezes, o que fica é o vínculo que resistiu à doença — um panetone singelo, uma caixa amarela, lembrando que, para além de prontuários, cuidamos de pessoas que também cuidam de nós.

 

Autoria

Foto de Filipe Fernandes Justus

Filipe Fernandes Justus

Conteudista de Gastroenterologia do Whitebook e Portal Afya. Médico especializado em Clínica Médica, Gastroenterologia e Hepatologia pelo HC-FMUSP. Atua em ensino médico e assistência ambulatorial e hospitalar.

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