No universo da medicina, a jornada profissional é marcada por longas horas de trabalho, plantões exaustivos, muita responsabilidade e dedicação quase sempre integral. Para as médicas que também são mães, conciliar a amamentação com a rotina hospitalar pode se tornar um desafio ainda maior.
A realidade nos hospitais
A amamentação é um direito fundamental das mulheres e dos bebês, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) até os 2 anos de idade. No entanto, a realidade dentro do ambiente hospitalar nem sempre é a mais adequada para que as profissionais de saúde possam amamentar seus filhos com a calma, segurança e higiene de que necessitam.
Conversamos com duas médicas colaboradoras do Portal Afya, que tiveram há pouco seus bebês, para entender melhor essa realidade.
Raíssa Moraes, mãe de um menino hoje com 3 anos, relata: “Voltei a trabalhar quando meu filho completou 5 meses de vida. Ele não chegava a ir me visitar para mamar, mas optei por não introduzir fórmula, então, precisava tirar meu leite e armazená-lo até a noite. Não havia, em todo o hospital, um só local para que eu pudesse fazer isso com tranquilidade”.
A infectologista comenta ainda que dependia, muitas vezes, da boa vontade de pessoas ao redor. “Alguém sempre tinha que me emprestar uma salinha… Daí eu tinha que conversar com o pessoal da Nutrição para que pudesse usar a geladeira durante o dia, e assim foi”, acrescenta a médica, que nessa época trabalhava em dois hospitais, um público e um privado, no estado do Rio de Janeiro.
Já para a Dra. Ester Ribeiro, essa é mesmo uma conta matemática que não fecha. A médica, mãe de 4 crianças e à espera do quinto filho, ressalta o quanto mulheres, de uma forma geral, são cobradas quando decidem ser mães.
“Um bebê precisa ser amamentado, precisa de contato materno. Mas se essa mãe é também médica, sua ausência pode acabar prejudicando ou seus pacientes, que ficam sem o atendimento necessário, ou sobrecarregando seus colegas de equipe”, pondera.
E é por isso que, na visão da nefrologista, está mais do que na hora de um debate amplo e franco sobre a conciliação da vida profissional com a maternidade, com a participação em peso de profissionais da saúde, gestores hospitalares, sindicatos e órgãos públicos.
Leia mais: Conselhos práticos para melhorar a adesão do paciente ao tratamento
Direito
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, e com comprovações de cada vez mais estudos ao redor do mundo, são inúmeros os benefícios que a amamentação traz tanto para a mãe quanto para o bebê.
Nos pequenos, ela ajuda a fortalecer o sistema imunológico, reduz o risco de desenvolvimento de diabetes, hipertensão, hipercolesterolemia e obesidade na vida adulta, além de favorecer o desenvolvimento cognitivo.
Já para as mães, o aleitamento colabora na redução da incidência de cânceres de mama, ovário e endométrio, protege contra doenças cardiovasculares e contra a osteoporose, além de favorecer o vínculo afetivo.
“Meu filho nasceu com a língua presa, e amamentá-lo no peito foi uma conquista. Quando saí da licença maternidade, cheguei a pensar que toda aquela luta que havíamos passado juntos pudesse ter sido em vão”, diz Dra. Raíssa, que depois de perder muito do leite retirado por falta de condições de acondicionamento, tomou uma decisão revolucionária: comprou um frigobar.
O equipamento permanece ainda hoje em sua sala, que se tornou o ambiente seguro para que outras mães possam amamentar seus bebês ou bombear e armazenar o leite.
Mudanças
Quem nunca ouviu a frase que diz “trabalhe como se não tivesse filhos e crie filhos como se não trabalhasse”? Pois essa é uma cobrança que não raramente recai sobre a mulher. A gestação dura, em média, 40 semanas, no entanto, os cuidados parentais necessários para a sobrevivência das crianças duram muitos e muitos anos.
“Acho que falta, à sociedade em geral, um olhar mais cuidadoso sobre as profissionais mães. Porque a gente volta a trabalhar, mas a vida nunca mais volta a ser como era antes”, completa Raíssa, reiterando que a amamentação é apenas uma das contingências da maternidade.
E disso, Dra. Ester entende bem: “No primeiro filho, é fácil, todos recebem a notícia com otimismo. No segundo, já é mais ou menos. A partir do terceiro, as pessoas em volta começam a questionar suas escolhas. Muitos se esquecem que crianças não são algo apartados de nós, elas fazem parte da sociedade”.
Leia também: Como a maternidade humanizou minha relação com a medicina?
Investimento
Por isso, além de dar dignidade às mães e seus bebês, a criação de espaços específicos para a amamentação ou ordenha pode resultar em médicas mais desoneradas, realizadas e, consequentemente, produtivas. Implantar salas de amamentação e adotar horários flexíveis não deve ser visto como um custo a mais para os hospitais, mas sim como um investimento no bem-estar das profissionais de saúde e na qualidade do atendimento prestado ao seu público.
Abordagem individualizada
Outro ponto relevante levantado pela Dra. Ester, mãe de cinco, é o fato de gravidez e amamentação ainda serem vistas como etapas impeditivas ou de retroação na vida da mulher. Para a médica, questões como afastamento compulsório, licença maternidade e flexibilidade de carga horária deveriam ser abordadas individualmente pela gestão de cada hospital diretamente com suas colaboradoras.
“Eu amo o que faço e me sinto muito bem fisicamente estando grávida. Mas sei que cada caso é um caso, e eu, por exemplo, posso e gostaria de continuar trabalhando nesse período. Talvez em uma atividade em que corra menor risco de contaminação, ou que precise ficar em pé por menos tempo”, sugere ela. “Por isso a importância de avaliar individualmente cada profissional”, reitera.
Com uma família numerosa e bastante atuante tanto no hospital, em que atende pelo SUS, quanto numa clínica particular, a nefrologista encontrou na escrita e na produção de conteúdo médico uma alternativa de conciliar sua atuação na área com as urgências da maternidade.
“Gravidez não é doença e a mulher grávida ou lactante não precisa ser vista como um peso para a equipe e para a sociedade”, completa.
Mudanças necessárias
Para garantir que as médicas possam amamentar seus filhos com segurança e dignidade, é fundamental que os hospitais adotem algumas medidas, dentre elas:
- Criar salas de amamentação adequadas com privacidade, conforto, higiene e acesso à água potável e à energia elétrica;
- Oferecer treinamento para a equipe hospitalar sobre a importância da amamentação e os direitos das mães que amamentam;
- Implementar políticas de apoio à amamentação, como flexibilização da jornada de trabalho para ordenha do leite materno e campanhas de conscientização sobre a importância da amamentação;
- Combater o preconceito e a discriminação, promovendo um ambiente acolhedor e respeitoso para as mães que amamentam.
Leia ainda: Agosto Dourado: a importância do aleitamento materno
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.