A mais recente edição da Demografia Médica, estudo elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Universidade de São Paulo (USP), escancara um cenário que há muito tempo é sentido no dia a dia da categoria: múltiplos empregos, vínculos informais e desigualdade nas condições de trabalho. Para os cirurgiões gerais, esse retrato é ainda mais evidente.
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Segundo o levantamento, a maioria dos cirurgiões atua em três ou mais locais de trabalho, enquanto apenas 1% possui vínculo único. A lógica, como explica o cirurgião oncológico Dr. Jader Ricco, membro do corpo clínico do Oncoclínicas Cancer Center, vai além da busca por maior remuneração. “Vários fatores justificam o trabalho em vários lugares: a necessidade ou opção de obter maiores ganhos, não ficar ‘refém’ de apenas uma instituição e o fato de a maioria dos locais não oferecer carga horária suficiente para absorver um único profissional”, aponta.
Essa realidade se soma a outro dado preocupante: quase 92% dos cirurgiões têm vínculos informais, sobretudo via pessoa jurídica (PJ). Para Ricco, esse modelo fragiliza a segurança profissional e previdenciária. “Seguramente a ausência de vínculos impacta muito na previdência. Não é incomum encontrar cirurgiões trabalhando com 70 anos ou mais por não terem planos seguros ou não conseguirem manter a renda”, relata.

SUS x setor privado: a dupla prática como regra
Outro ponto que chama a atenção na Demografia Médica é a baixa proporção de cirurgiões atuando exclusivamente no SUS: menos de 8%. A predominância é da dupla prática entre público e privado, reflexo da discrepância de remuneração. “Isso revela a imensa precariedade e desvalorização do médico pelo SUS. O valor das consultas representa, no máximo, 10% a 20% do que pagam os convênios, e muito menos quando comparado às consultas particulares”, critica Ricco.
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Ele chama atenção para a defasagem da tabela SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS), que norteia os valores mínimos pagos pelo SUS: “A desatualização dessa tabela gira em torno de 17.000%. É isso mesmo: 17.000%”.
Carga de trabalho e impacto no cuidado ao paciente
A sobrecarga também se expressa no ritmo de trabalho. Metade dos cirurgiões realiza até 20 cirurgias por mês, mas 73% relataram cancelamentos recentes, segundo a pesquisa. Para Ricco, os efeitos sobre a continuidade do cuidado variam conforme o setor. “Nos serviços particulares, normalmente o cirurgião é responsável pelo acompanhamento do paciente, mesmo que mude de local de trabalho. Já no SUS, a responsabilidade é da instituição, e a alta rotatividade impacta profundamente no cuidado continuado”, afirma.
Formação, atratividade e futuro da especialidade
O excesso de vínculos e a informalidade, na visão do especialista, não surpreendem os jovens médicos que ingressam na residência. “Normalmente o residente já entra sabendo dessas questões. Entretanto, empenho em massa pode mudar isso”, considera.
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A consequência, porém, pode ser uma redução da atratividade da especialidade. “Na minha opinião, a cirurgia é uma das áreas mais desvalorizadas do mercado. Por outro lado, é uma das que têm maior número de profissionais por habitante. Hoje o número de cirurgiões é maior do que o necessário, e aí caímos na lei da oferta e da procura”, avalia Ricco.
Perspectivas e desafios
Diante desse cenário, Ricco vê um caminho inevitável: qualificação contínua e diversificação de especialidades. “Infelizmente, o cirurgião geral que não tem uma segunda especialidade fica cada vez mais vítima do mercado e sujeito a plantões e cargas horárias desumanas”, conclui.
O diagnóstico trazido pela Demografia Médica reforça um ponto de alerta para o futuro da profissão: a necessidade de repensar modelos de contratação, remuneração e valorização. Sem isso, a multiplicidade de vínculos seguirá como regra, e não como opção, para milhares de cirurgiões em todo o país.
Autoria

Redação Afya
Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.
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