A insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEp) representa um desafio clínico significativo, correspondendo a mais da metade de todos os casos de insuficiência cardíaca no mundo. Diferente da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFEr), a ICFEp carece de terapias modificadoras de doença com comprovação científica, o que contribui para alta morbidade, internações frequentes e mau prognóstico em longo prazo.
Um dos mecanismos fisiopatológicos centrais na ICFEp é a fibrose miocárdica, que leva ao aumento da rigidez ventricular, comprometimento do relaxamento e remodelamento cardíaco adverso. Pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2) apresentam maior carga de fibrose miocárdica devido à hiperglicemia crônica, inflamação sistêmica, estresse oxidativo e disfunção microvascular, o que agrava ainda mais os desfechos da ICFEp.
Diante dessa forte ligação fisiopatológica, o alvo terapêutico da fibrose miocárdica na ICFEp associada ao DM2 tornou-se foco de estratégias emergentes. A regressão da fibrose, frequentemente medida por redução da fração de volume extracelular (ECV), tem sido associada a melhora na estrutura e função cardíaca, sugerindo que pode servir como marcador substituto de modificação da doença.
Os inibidores do cotransportador sódio-glicose tipo 2 (iSGLT2) revolucionaram o tratamento da insuficiência cardíaca, mostrando benefícios além do controle glicêmico. Ensaios clínicos como EMPEROR-preserved e DELIVER confirmaram seu papel em reduzir hospitalizações por IC e melhorar desfechos cardiovasculares em pacientes com ICFEp.
Estudos emergentes em humanos têm revelado mecanismos moleculares e celulares mais detalhados por trás dos benefícios cardiovasculares da inibição do SGLT2. O SGLT2 é expresso em cardiomiócitos humanos, especialmente em corações transplantados, e sua modulação tem sido associada a melhora da função cardíaca, independente da glicemia. Os iSGLT2 também apresentam propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes que afetam diretamente a estabilidade da placa aterosclerótica, reduzindo a espessura da placa coronária e a infiltração de macrófagos. Em pacientes com infarto agudo do miocárdio, observou-se que o bloqueio do SGLT2 no tecido adiposo pericoronário reduz o tamanho do infarto e a inflamação sistêmica, potencialmente diminuindo o risco de eventos cardiovasculares adversos maiores (MACE).
Apesar desses dados promissores, os estudos em humanos que quantificam diretamente o impacto dos iSGLT2 sobre a fibrose miocárdica na ICFEp ainda eram limitados.
Nesse contexto, foi publicado um estudo no European Journal of Medical Research que testou a hipótese de que a dapagliflozina reduza significativamente o ECV, melhore o índice de massa ventricular esquerda (IMVE) e aumente a distância percorrida no teste de caminhada de 6 minutos (TC6), oferecendo assim uma abordagem antifibrótica inédita para essa população de alto risco.
Trata-se de um ensaio multicêntrico, duplo-cego, controlado por placebo, randomizado, conduzido em três centros terciários especializados no manejo de ICFEp e diabetes.
Critérios de inclusão
- Adultos entre 40 e 80 anos com diagnóstico clínico de ICFEp, definido como FEVE ≥ 50% e evidência de pressões de enchimento ventricular esquerdo elevadas com base em critérios ecocardiográficos e hemodinâmicos.
- Diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 com HbA1c entre 7,0% e 10,0%
- Presença de fibrose miocárdica, definida como fração de volume extracelular (ECV) ≥ 27% na ressonância magnética cardíaca.
Critérios de exclusão
- TFG < 30 mL/min/1,73 m²).
- Neoplasia ativa nos últimos 5 anos.
- Contraindicações à RMC (ex.: claustrofobia severa, implantes metálicos incompatíveis).
- Hipersensibilidade conhecida à dapagliflozina ou a seus componentes.
Todos os participantes estavam em doses estáveis da terapia padrão guiada por diretrizes — incluindo inibidores da ECA ou BRA, betabloqueadores e antagonistas do receptor mineralocorticoide — por pelo menos 3 meses antes da inclusão.
Os participantes foram randomizados em uma proporção de 1:1 para receber dapagliflozina 10 mg/dia ou placebo. A dose de 10 mg/dia foi escolhida com base em robusto histórico de evidências, perfil de segurança estabelecido em ICFEp e DM2 e amplo uso clínico.
A RMC foi realizada no baseline, 6 meses e 12 meses, com sequências de realce tardio por gadolínio e mapeamento T1 nativo e pós-contraste.
Os níveis de NT-proBNP foram medidos no início e após 12 meses como marcador de estresse hemodinâmico e prognóstico na ICFEp.
As medicações de base para IC — betabloqueadores (92%), antagonistas do receptor mineralocorticoide (78%) e diuréticos de alça (66%) — foram registradas e mantidas estáveis ao longo do estudo.
Desfecho primário
- Variação da fibrose miocárdica, medida pelo ECV (%) do baseline aos 12 meses.
Desfechos secundários
- Variação do índice de massa ventricular esquerda (IMVE) do baseline aos 12 meses.
- Variação do controle glicêmico, medida pela redução da HbA1c (%).
- Variação da capacidade funcional, medida pelo teste de caminhada de 6 minutos (TC6, em metros).
Resultados
No início do estudo, não houve diferenças significativas entre os grupos dapagliflozina e placebo quanto às características demográficas ou clínicas, incluindo idade, sexo, fração de volume extracelular (ECV), índice de massa ventricular esquerda (IMVE), hemoglobina glicada (HbA1c) ou distância no teste de caminhada de 6 minutos (TC6).
Ao longo do período de 12 meses, o tratamento com dapagliflozina resultou em redução significativa da fibrose miocárdica. A média do ECV diminuiu 3,5% no grupo dapagliflozina, em comparação com uma redução de 0,8% no grupo placebo (p < 0,001). Paralelamente, o IMVE reduziu 8,2 g/m² no grupo dapagliflozina versus 2,1 g/m² no placebo.
O controle glicêmico melhorou significativamente no grupo dapagliflozina, com redução da HbA1c de 1,2%, versus 0,4% no placebo.
A capacidade funcional também apresentou melhora significativa: o grupo dapagliflozina mostrou um aumento de 45 metros no TC6 contra 10 metros no placebo.
Os níveis de NT-proBNP diminuíram significativamente no grupo dapagliflozina, com redução mediana de 212 pg/mL comparado a uma variação não significativa de 58 pg/Ml no grupo placebo (p = 0,02).
Os efeitos adversos menores incluíram leve depleção volumétrica e sintomas do trato urinário no grupo dapagliflozina, os quais foram autolimitados.
Este estudo traz, então, novos insights sobre os efeitos antifibróticos dos inibidores de SGLT2, especialmente da dapagliflozina, em pacientes com ICFEp e DM2. A redução significativa da fibrose miocárdica, medida pelo ECV, apoia o crescente conjunto de evidências que indicam que os inibidores de SGLT2 modulam o remodelamento cardíaco adverso além de seus benefícios metabólicos tradicionais. A redução observada na fibrose miocárdica e a melhora no índice de massa ventricular esquerda (IMVE) são consistentes com estudos prévios que sugerem que os inibidores de SGLT2 influenciam a estrutura miocárdica por múltiplos mecanismos.
É importante ressaltar que os participantes já utilizavam terapia de base com inibidores da ECA ou BRA e antagonistas do receptor mineralocorticoide (MRAs), conhecidos por efeitos antifibróticos modestos. Evidências pré-clínicas e clínicas recentes sugerem que a combinação de inibidores de SGLT2 com MRAs pode apresentar efeitos sinérgicos no remodelamento miocárdico por vias antifibróticas paralelas — MRAs reduzem o depósito de colágeno via bloqueio da aldosterona, enquanto os inibidores de SGLT2 modulam o estresse oxidativo e a sinalização do TGF-β.
Além dos marcadores baseados em imagem, este estudo mostrou que os níveis de NT-proBNP declinaram significativamente no braço dapagliflozina, em concordância com as melhorias estruturais e funcionais. Como biomarcador prognóstico validado na ICFEp, a redução do NT-proBNP pode refletir melhora nas pressões de enchimento ventricular esquerdo e redução do estresse da parede miocárdica, sustentando ainda mais o benefício terapêutico da inibição de SGLT2 nessa população.
Limitações
Apesar das qualidades, o estudo apresenta limitações:
- O tamanho amostral modesto e o curto período de seguimento podem limitar a generalização e o poder estatístico para eventos raros.
- Não foram incluídos marcadores moleculares ou teciduais (ex.: TGF-β, turnover do colágeno) para confirmação dos mecanismos antifibróticos.
- A coorte foi composta majoritariamente por pacientes do Oriente Médio, limitando extrapolações para outras populações.
- Não foi avaliada a carga ou os padrões do realce tardio por gadolínio (LGE), que poderiam fornecer informações complementares sobre a caracterização da fibrose.
Conclusão
Este estudo demonstra que a dapagliflozina reduz significativamente a fibrose miocárdica e melhora a estrutura cardíaca, o controle glicêmico e a capacidade funcional em pacientes com ICFEp e DM2. Esses resultados reforçam os benefícios antifibróticos e cardiometabólicos dos inibidores de SGLT2 e reforçam sua inclusão em estratégias terapêuticas guiadas por fenótipos na ICFEp.
São necessárias validações adicionais em coortes maiores e multiétnicas para confirmar a generalização e avaliar os desfechos a longo prazo.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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