A fibrilação atrial (FA) é a arritmia cardíaca mais prevalente no mundo, com uma em cada três pessoas estimadas a desenvolver FA ao longo da vida. No manejo da FA, o tratamento com anticoagulantes orais (ACO) é essencial para reduzir o risco de acidente vascular cerebral (AVC). No entanto, a adesão ao uso de anticoagulante oral permanece um desafio persistente, com estudos recentes indicando que pelo menos 20% dos pacientes permanecem sem tratamento. Isso sugere uma lacuna entre o cuidado ideal, orientado por diretrizes, e a prática clínica do mundo real, o que pode resultar em AVCs potencialmente evitáveis.
Diversos fatores clínicos, relacionados ao paciente e ao sistema de saúde, podem influenciar a prescrição e a adesão ao ACO em pacientes com FA. Para os profissionais de saúde, as decisões sobre iniciar o tratamento anticoagulante exigem um cuidadoso equilíbrio entre os riscos e os benefícios, o que pode ser especialmente desafiador em casos clínicos complexos.
Do ponto de vista dos pacientes, o tratamento com ACO pode ser considerado oneroso, e eles podem preferir não utilizar a medicação devido ao custo, efeitos adversos ou por outras preferências pessoais.
Entretanto, pouco se sabe sobre os motivos da omissão do tratamento na prática clínica cotidiana. Nesse contexto, foi publicado recentemente um estudo que teve o objetivo de avaliar os motivos pelos quais alguns pacientes com FA não recebem tratamento com ACO e estimar a prevalência relativa desses motivos. Para isso, foram exploradas as trajetórias de cuidado, as práticas de acompanhamento e os processos de tomada de decisão clínica na atenção primária.
O estudo foi conduzido baseado na revisão de prontuários na Dinamarca, onde todos os residentes têm acesso gratuito aos serviços médicos.
Foram incluídos todos os indivíduos registrados com pelo menos um diagnóstico de FA. Os pacientes foram classificados como usuários ou não usuários de ACO, dependendo se haviam resgatado uma prescrição de anticoagulantes nos 180 dias anteriores a 1º de janeiro de 2023.
Resultados
Em 1º de janeiro de 2023, foram identificados 31.167 pacientes com FA no Registro Dinamarquês de Fibrilação Atrial, distribuídos em 337 clínicas de atenção primária na Região Central da Dinamarca. Desses, 4.185 (13,4%) não estavam em uso de anticoagulantes orais.
Dos 195 pacientes inicialmente identificados como elegíveis segundo os dados do registro, 26 (13,3%) foram excluídos devido a um diagnóstico inválido de FA. Adicionalmente, um paciente foi excluído por estar em uso de anticoagulação parenteral (no contexto de doença renal terminal) e outros dois foram excluídos devido à indisponibilidade de seus prontuários eletrônicos nas clínicas.
Assim, a amostra final da auditoria foi composta por 166 pacientes.
Risco de AVC e características da arritmia segundo os dados da auditoria
Na amostra da auditoria, 49,4% dos pacientes apresentavam escore CHA₂DS₂-VASc ≥ 2, indicando risco moderado a alto de AVC, conforme informações disponíveis nos prontuários das clínicas de atenção primária.
A maioria dos pacientes apresentava baixa carga arrítmica:
- 70,5% tiveram apenas um episódio de FA;
- 7,2% apresentavam FA paroxística;
- 13,3% tinham FA persistente ou permanente;
- 7,8% tinham flutter atrial, sem episódios de FA.
Decisões sobre tratamento anticoagulante
Para 94,6% dos pacientes, uma decisão formal sobre o uso de anticoagulação oral estava documentada no prontuário ao menos uma vez desde o diagnóstico.
Em 22,3% dos casos, a decisão foi atualizada e documentada no último ano.
Fluxos Assistenciais dos Pacientes com Fibrilação Atrial (FA)
No total, 37,6% dos pacientes tiveram algum contato com o sistema de saúde no último ano em que a FA foi mencionada no prontuário, o que implica que, para os 62,4% restantes, a referência mais recente à FA ocorreu há mais de um ano.
Ao revisar retrospectivamente os prontuários a partir de 1º de janeiro de 2023, o contato mais recente relacionado à FA ocorreu no ambiente hospitalar para 64,4% dos pacientes:
- 56,0% em ambulatórios hospitalares
- 8,4% durante uma internação hospitalar
Para 30,7%, o contato mais recente relacionado à FA ocorreu na atenção primária.
Em relação ao seguimento: 41,0% tinham uma consulta de acompanhamento planejada.
Motivos para Ausência de Tratamento Anticoagulante
Os motivos para não receber tratamento com ACO, apesar do diagnóstico de FA, foram classificados em cinco categorias, com base na indicação para anticoagulação:
- Tratamento não Indicado conforme diretrizes
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- Baixo risco verdadeiro: Pacientes com CHA₂DS₂-VASc = 0 para homens e 1 para mulheres, nos quais não há indicação de anticoagulação segundo as diretrizes.
- Indicação de Anticoagulação não reconhecida no contexto clínico
Embora, segundo diretrizes, o ACO devesse ser considerado, a avaliação clínica determinou que os episódios de FA não justificavam anticoagulação nem acompanhamento.
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- FA mínima: Pacientes com episódios curtos de FA detectados por dispositivos ou FA desencadeada por eventos específicos, como:
- Episódios únicos durante cirurgia cardíaca,
- Cirurgia não cardíaca,
- Internações por doenças infecciosas graves,
- Tireotoxicose.
- Flutter atrial sem sintomas recentes: Pacientes com poucos episódios autolimitados de flutter atrial ou sem recorrência após ablação por radiofrequência (RFA), e sem episódios concomitantes de FA.
- FA mínima: Pacientes com episódios curtos de FA detectados por dispositivos ou FA desencadeada por eventos específicos, como:
- Indicação reconhecida, mas outra estratégia terapêutica ou nenhuma foi preferida
A indicação para anticoagulação estava presente, mas o tratamento foi deliberadamente omitido.
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- Oclusão do apêndice atrial esquerdo (LAAO/LAAC):
Pacientes que não receberam ACO devido à realização do procedimento de LAAC. Na maioria dos casos, a oclusão do apêndice atrial foi realizada como alternativa à anticoagulação, geralmente em razão de complicações hemorrágicas prévias ou alto risco de sangramento.
- Oclusão do apêndice atrial esquerdo (LAAO/LAAC):
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- Cuidados paliativos:
Pacientes com doença em estágio terminal, em tratamento paliativo.
- Cuidados paliativos:
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- Preferência do paciente:
Pacientes que recusaram o tratamento com anticoagulante oral (ACO), apesar das recomendações dos profissionais de saúde.
- Preferência do paciente:
- Indicação para anticoagulação considerada, mas recusada pelo risco-benefício
Neste grupo, a decisão de não utilizar ACO foi baseada na análise do equilíbrio entre os riscos e benefícios do tratamento. Esses pacientes geralmente apresentavam baixa carga arrítmica. Alguns participavam de atividades diárias que envolvem aumento do risco de sangramento, como karatê. Em um caso, o consumo excessivo de álcool foi um fator contribuinte.
A decisão quanto ao uso de ACO foi documentada no prontuário, sendo que, frequentemente, a preferência do paciente foi destacada como fator decisivo.
- Indicação para anticoagulação não atualizada, avaliada incorretamente ou nunca realizada
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- Fatores do sistema de saúde:
Este grupo incluía pacientes sem uma decisão atualizada e bem fundamentada sobre o uso de ACO.
- Fatores do sistema de saúde:
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- Escore de risco incorreto:
O risco de AVC (CHA₂DS₂-VASc) havia aumentado desde a decisão mais recente ou estava subestimado devido a dados incompletos.
- Escore de risco incorreto:
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- Cuidado fragmentado:
Alguns pacientes não completaram a investigação diagnóstica ou a avaliação da necessidade de tratamento, devido a transições entre setores do sistema de saúde (por exemplo, referência entre atenção primária e especializada).
- Cuidado fragmentado:
Prevalência dos motivos para ausência de anticoagulação:
- 34,3%: Tratamento não indicado devido ao baixo risco de AVC.
- 21,7%: A ocorrência da arritmia foi considerada insuficiente para justificar o tratamento.
- 24,7%: O tratamento estava indicado, mas foi escolhida uma alternativa ao ACO ou nenhum tratamento.
- 12,7%: O tratamento foi considerado, mas não iniciado após avaliação de risco-benefício.
- 6,6%: Não havia decisão atualizada ou adequadamente fundamentada sobre o tratamento anticoagulante.
Este estudo demonstra que a omissão do tratamento anticoagulante foi baseada em decisões clínicas explícitas no prontuário em mais de 90% dos pacientes com FA. Esses achados sugerem que uma proporção significativa da não adesão relatada em estudos populacionais recentes pode ser clinicamente justificada.
Isso reforça a importância de integrar dados contextuais específicos do paciente nas avaliações populacionais, a fim de melhorar a compreensão das implicações clínicas.
Observou-se uma taxa de erro de classificação de 13% entre os pacientes com diagnóstico de FA baseado em registros e sem ACO.
Zonas Cinzentas nas Diretrizes
Para muitos pacientes, o motivo para não receber ACO se enquadrou em áreas sem recomendações firmes nas diretrizes.
- A associação entre mesmo uma carga mínima de FA e aumento do risco de AVC é amplamente aceita.
- As diretrizes enfatizam que o padrão clínico da FA (paroxística, persistente, permanente) não deve condicionar a indicação de anticoagulação.
Uma interpretação estrita dessas recomendações implicaria que a indicação de ACO em pacientes com FA desencadeada ou mínima deveria depender exclusivamente da avaliação do risco de AVC.
No entanto, este estudo constatou que episódios únicos de FA desencadeada raramente foram considerados suficientes para justificar tratamento ou seguimento no contexto clínico
A eficácia e a segurança do tratamento anticoagulante (ACO) na fibrilação atrial (FA) desencadeada por cirurgia não cardíaca estão sendo avaliadas em um estudo em andamento (ASPIRE-AF, NCT03968393). Além disso, o papel da anticoagulação na FA detectada por dispositivos permanece debatido. Estudos recentes sugerem que episódios de arritmia com duração inferior a 5,5 horas ou até 24 horas podem não estar associados a um aumento clinicamente significativo no risco de AVC que justifique anticoagulação. Isso reforça uma abordagem cautelosa no tratamento de casos de FA mínima.
Vale destacar também que a FA frequentemente evolui ao longo do tempo e o risco de AVC aumenta com a idade e com o surgimento de novas comorbidades. Além disso, as preferências dos pacientes podem mudar à medida que suas circunstâncias de vida se modificam. Por isso, as necessidades de tratamento devem ser encaradas como dinâmicas e não estáticas.
Forças e Limitações do Estudo
O tamanho relativamente pequeno da amostra, assim como a realização exclusivamente na Dinamarca pode limitar a generalização dos resultados para populações maiores ou mais diversas.
Um ponto crítico é o risco de viés de seleção, pois a inclusão foi baseada em diagnósticos hospitalares registrados nacionalmente, o que pressupõe atendimento hospitalar para todos os casos.
No sistema dinamarquês, é prática padrão que pacientes com diagnóstico novo de FA na atenção primária sejam encaminhados para avaliação cardiológica hospitalar, o que assegura alta completude dos dados hospitalares.
Pacientes sem tratamento ACO foram identificados pela ausência de resgate de prescrição de anticoagulante oral nos últimos 180 dias. Esse método pode excluir indivíduos que resgataram, mas não usaram ou usaram de forma irregular a medicação, introduzindo possível viés, pois este grupo pode ter razões específicas para não adesão.
Conclusão: anticoagulante em pacientes com fibrilação atrial (FA)
A maioria dos casos de omissão de tratamento ACO em pacientes com FA foi justificada por raciocínio clínico explicitamente documentado nos registros da atenção primária.
O descompasso entre recomendações das diretrizes e a prática clínica foi explicado principalmente por: erro na classificação diagnóstica e decisões clínicas ponderadas que avaliaram cuidadosamente riscos e benefícios do tratamento.
Os achados sugerem que o subtratamento é menos prevalente do que se pensava – pelo menos na Dinamarca.
No entanto, mudanças no perfil de risco passaram despercebidas em alguns casos, reforçando a importância da reavaliação periódica. Pesquisas futuras devem focar no desenvolvimento de modelos dinâmicos e personalizados de seguimento que garantam monitoramento efetivo sem uso desnecessário dos recursos do paciente e do sistema de saúde.
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