A estenose aórtica (EA) é uma doença altamente prevalente que acomete pacientes idosos e a implantação de valva aórtica transcateter (TAVI) tornou-se terapia de primeira linha para EA grave, especialmente em pacientes mais velhos. No entanto, mesmo após um procedimento bem-sucedido de TAVI, até 1 em cada 4 pacientes é readmitido por insuficiência cardíaca (IC) em algum momento.
Os inibidores do cotransportador de sódio-glicose 2 (SGLT2) demonstraram melhorar mortalidade, readmissão por IC e status de saúde em pacientes com diabetes mellitus, doença renal crônica e IC em vários ensaios clínicos randomizados. Entretanto, esses ensaios excluíram pacientes com doença valvar ou intervenções valvares recentes, e idosos — especialmente aqueles com idade > 80 anos — foram sub-representados. Consequentemente, permanece desconhecido se os benefícios sintomáticos e funcionais dos inibidores de SGLT2 se estendem a pacientes após TAVI.
O estudo DapaTAVI foi o primeiro estudo randomizado a avaliar a eficácia clínica de um inibidor de SGLT2 em pacientes idosos após TAVI, e mostrou redução significativa no desfecho composto de óbito por todas as causas ou piora de IC com dapagliflozina. No entanto, não está estabelecido se esses benefícios clínicos se traduzem em melhor estado de saúde e qualidade de vida.
Nesse contexto, foi publicado recentemente um subestudo do ensaio DapaTAVI, que teve o objetivo de determinar o impacto dapagliflozina no estado de saúde autorrelatado por pacientes idosos submetidos à TAVI.
Métodos
O estudo DapaTAVI foi um ensaio pragmático, controlado, prospectivo, randomizado, de rótulo aberto com desfechos cegos conduzido em 39 centros na Espanha e teve como objetivo avaliar a efetividade da dapagliflozina (10 mg uma vez ao dia) em pacientes com EA grave que estavam sendo submetidos à TAVI.
O ensaio incluiu pacientes com EA grave sintomática que foram submetidos à TAVI e que tinham episódio prévio de IC relacionada à EA (incluindo qualquer hospitalização por IC ou visita urgente por IC antes da TAVI) e 1 dos seguintes critérios: insuficiência renal moderada (TFG 25-75 mL/min/1,73 m²), diabetes mellitus ou fração de ejeção do ventrículo esquerdo ≤ 40%.
Os principais critérios de exclusão foram:
- qualquer contraindicação absoluta a inibidores de SGLT2;
- TFG < 25 mL/min/1,73 m²;
- pressão arterial sistólica e diastólica < 100 mmHg e 50 mmHg, respectivamente; e
- infecções urinárias crônicas ou recorrentes.
Pacientes que preenchiam os critérios de inclusão foram randomizados na proporção de 1:1 para o grupo de intervenção (dapagliflozina, 10 mg uma vez ao dia) ou para o grupo controle (tratamento padrão sem inibidor de SGLT2) dentro dos primeiros 14 dias após a TAVI.
Desfechos clínicos
O desfecho primário do estudo DapaTAVI foi um composto de óbito por todas as causas ou piora de IC.
A melhora no estado de saúde em 1 ano foi um desfecho secundário pré-especificado do estudo DapaTAVI. O estado de saúde foi avaliado utilizando uma versão abreviada (12 itens) do KCCQ. Análises adicionais com base nos 4 domínios do KCCQ (sintomas autorreferidos pelo paciente, função física, QoL e limitações sociais) e na classe funcional da New York Heart Association (NYHA) na linha de base, 3 meses e 12 meses também foram realizadas.

Resultados: dapagliflozina na qualidade de vida pós-TAVI
Do grupo total do estudo DapaTAVI, que incluiu 1.223 pacientes (605 no grupo dapagliflozina e 618 no grupo controle) incluídos entre janeiro de 2021 e dezembro de 2023, 964 (78,8%) foram incluídos na análise do KCCQ: 862 tinham dados de 12 meses e 102 morreram antes da avaliação.
As características basais dos pacientes com ambas as medidas foram bem balanceadas entre os grupos de tratamento.
O escore médio de KCCQ basal foi 39,9 ± 22,0 no grupo dapagliflozina e 39,1 ± 22,4 no braço controle. Após a TAVI, os pacientes de ambos os grupos apresentaram melhora precoce e sustentada no KCCQ em comparação com os valores basais. Não houve diferença significativa na mudança do escore KCCQ-OS em 3 ou 12 meses entre os grupos dapagliflozina e controle.
Notadamente, no seguimento de 12 meses, 70,0% dos pacientes no grupo dapagliflozina e 70,8% no grupo de tratamento padrão apresentaram aumento > 20 pontos no escore KCCQ-OS.
Os resultados foram comparáveis em todos os domínios do KCCQ, sem diferença estatisticamente significativa na probabilidade de melhora após TAVI no grupo dapagliflozina vs tratamento padrão.
Os efeitos da dapagliflozina em comparação ao tratamento padrão sobre o KCCQ foram semelhantes nos subgrupos de pacientes pré-especificados. O efeito benéfico da dapagliflozina no desfecho combinado de óbito ou piora de IC foi consistente em toda a faixa de escores basais de KCCQ-OS.
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Os pacientes no grupo dapagliflozina apresentaram maior probabilidade de melhora em relação à linha de base tanto em 3 quanto em 12 meses em comparação ao tratamento padrão, com melhora observada em 73,6% vs 70,5% dos pacientes em 3 meses e em 70,9% vs 64,8% em 12 meses.
Nesta subanálise pré-especificada do ensaio randomizado DapaTAVI, observou-se melhora substancial no estado de saúde — avaliado pelo KCCQ — em pacientes com EA grave aos 3 e 12 meses em ambos os grupos de tratamento.
No entanto, não foi observada melhora adicional no estado de saúde — avaliado pelo KCCQ — com o uso de dapagliflozina nesses pacientes. Importante ressaltar que o benefício prognóstico da dapagliflozina no desfecho composto de óbito por todas as causas ou piora de IC foi consistente em toda a faixa de escores basais de KCCQ-OS.
Vale destacar que 70% dos pacientes apresentaram aumento > 20 pontos no KCCQ aos 12 meses após a TAVI. Diante de tamanha melhora no estado de saúde após a TAVI, demonstrar um benefício incremental com a terapia com dapagliflozina é, inerentemente, desafiador.
Importante salientar que o estudo fornece evidências que apoiam a segurança e a eficácia da dapagliflozina em idosos (idade média >80 anos), um grupo marcadamente sub-representado em grandes ensaios clínicos que avaliaram essa terapia.
Nos ensaios pivotais DAPA-HF e DELIVER, o tratamento com dapagliflozina em pacientes com IC esteve associado a melhora significativa dos escores de KCCQ em comparação ao placebo. Em análise combinada de participantes de ambos os estudos, o escore mediano de KCCQ basal foi de 75 pontos (Q1-Q3: 57-90 pontos), e a melhora em 8 meses com dapagliflozina (comparada ao placebo) foi de 2,5 pontos. Acontece que esses estudos incluíram pacientes com IC crônica, que podem experimentar melhoras incrementais em QoL com a adição de terapias farmacológicas.
Além disso, os estudos DETERMINE e DETERMINE-reduced demonstraram benefício da dapagliflozina sobre escores de KCCQ em pacientes com IC com fração de ejeção reduzida, mas não em pacientes com fração de ejeção preservada, sugerindo que o benefício dessa terapia pode não ser generalizável para todos os contextos clínicos da doença.
Vários mecanismos potenciais podem explicar por que a dapagliflozina não melhorou o estado de saúde nesse contexto clínico específico, apesar de seus benefícios em pacientes com IC. Em pacientes com IC crônica, a dapagliflozina demonstrou melhorar sintomas e QoL por mecanismos como natriurese, redução das pressões de enchimento ventricular, melhora da complacência ventricular esquerda, efeitos anti-inflamatórios e perda de peso. Esses efeitos são particularmente relevantes em pacientes com congestão persistente e ativação neuro-hormonal sistêmica.
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Entretanto, em pacientes com EA grave sintomática submetidos à TAVI, o principal determinante dos sintomas e do comprometimento do estado de saúde é a obstrução mecânica fixa causada pela valva aórtica estenosada. Uma vez que essa obstrução é aliviada pela substituição valvar, ocorre melhora hemodinâmica imediata e profunda, que impulsiona importante recuperação sintomática e funcional.
Nesse contexto, o benefício sintomático incremental da inibição de SGLT2 pode ser marginal ou indetectável, especialmente na ausência de congestão residual significativa ou sobrecarga de volume.
Limitações do estudo
- O desenho aberto pode ter introduzido viés de expectativa, particularmente em medidas subjetivas como a classe funcional NYHA.
- Alguns subgrupos apresentaram tamanho amostral modesto, o que reduz o poder estatístico para análises de interação.
- Como o estudo foi conduzido em um único país, a generalização dos resultados para populações mais amplas pode ser limitada.
Conclusões
Em pacientes com EA submetidos à TAVI, embora a dapagliflozina possa reduzir óbito ou piora de IC, seu papel em promover melhora adicional do estado de saúde no pós-TAVI provavelmente é limitado e pode ser mais relevante em pacientes com carga residual de sintomas. Vale destacar a segurança da dapagliflozina demonstrada nessa população de pacientes com > 80 anos.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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