A doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite aguda que afeta predominantemente vasos de médio calibre e resulta em lesões das coronárias (LAC) — aneurismas, dilatações e fístulas das coronárias. O tratamento inicial geralmente inclui imunoglobulina intravenosa (IVIG) e aspirina em dose alta (ácido acetilsalicílico; 80-100 mg/kg por dia). Embora a aspirina demonstre efeitos anti-inflamatórios notáveis em doses elevadas, até o momento, não havia estudos prospectivos que validassem seu papel na redução da formação de LACs. Diversos estudos propõem uma forte correlação entre a incidência de LACs e a dosagem de IVIG, indicando que a dose de aspirina pode não exercer influência significativa.
Atualmente, há escassez de ensaios clínicos randomizados bem conduzidos que possam determinar se a aspirina em dose alta deve continuar sendo um componente fundamental do protocolo de tratamento para crianças diagnosticadas com DK. Nesse contexto, foi publicado recentemente no JAMA um ensaio clínico randomizado para investigar se a aspirina em dose alta, administrada durante a fase aguda da DK, é não inferior à IVIG isoladamente na prevenção da formação de LACs.
Métodos
Ensaio clínico randomizado, multicêntrico, prospectivo, cego para os avaliadores, de não inferioridade, com dois grupos paralelos. O objetivo foi avaliar a eficácia da IVIG isoladamente em comparação com a IVIG combinada com aspirina em dose alta (80-100 mg/kg por dia) como tratamento principal da DK na fase aguda.
Crianças (<6 anos) diagnosticadas com DK, segundo os critérios da AHA, foram incluídas e recrutadas em 5 centros médicos em Taiwan, entre 1º de setembro de 2016 e 31 de agosto de 2018.
Foram excluídos indivíduos com febre por mais de 10 dias ou com histórico de tratamento prévio com corticosteroides ou agentes biológicos. Todos os pacientes receberam IVIG na dose de 2 g/kg ao longo de 12 horas, com ou sem aspirina em dose alta (grupo IVIG + aspirina ou grupo apenas IVIG). Após resolução da febre, todos os pacientes com DK receberam aspirina em baixa dose (3-5 mg/kg por dia) por 6 semanas ou até normalização do ecocardiograma e dos exames laboratoriais inflamatórios, conforme as diretrizes da AHA.
Avaliação dos Desfechos
O desfecho primário foi a formação de LACs 6 semanas após a inclusão. LAC foi definida como diâmetro luminal > 3,0 mm em crianças < 5 anos ou > 4,0 mm em crianças ≥ 5 anos, quando o diâmetro interno de um segmento era ≥ 1,5 vezes o de um segmento adjacente ou quando o contorno luminal era irregular, com escore z > 2,5 desvios-padrão.
Resultados
No total, 152 pacientes diagnosticados com Doença de Kawasaki (DK) foram incluídos. Destes, 78 pacientes foram designados para o grupo IVIG mais aspirina (padrão) e 74 para o grupo apenas com IVIG (intervenção). Após excluir 18 pacientes, 134 pacientes com DK (idade média 1,8 anos) foram incluídos na coorte final e randomizados para o grupo imunoglobulina intravenosa (IVIG) mais aspirina (n = 69) e o grupo apenas IVIG (n = 65) para análise posterior.
13,0% dos pacientes no grupo IVIG mais aspirina e 10,8% no grupo apenas IVIG apresentaram diâmetro anormal da coronária em pelo menos uma das três coronárias. Entre os 69 pacientes do grupo IVIG mais aspirina, esses percentuais diminuíram para 2,9% (n = 2 pacientes) em 6 semanas e 1,4% (n = 1 paciente) em 6 meses. Entre os 65 pacientes do grupo apenas IVIG, esses percentuais diminuíram para 1,5% (n = 1 paciente) em 6 semanas e 3,1% (n = 2 pacientes) em 6 meses. Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos quanto à frequência de anormalidades das artérias coronárias durante o período do estudo. A frequência de lesões das artérias coronárias (CALs) apresentou uma redução significativa em comparação com o início, a partir da semana 6 até o final do período do estudo em 6 meses. Da mesma forma, não foram observadas diferenças significativas entre os dois grupos nas artérias coronária esquerda principal (LCA) ou coronária direita (RCA).
A taxa geral de CAL em 6 semanas foi de 15,9% no grupo IVIG mais aspirina e 12,3% no grupo apenas IVIG.
Para o valor absoluto dos diâmetros das artérias, a LCA diminuiu significativamente ao longo do estudo em ambos os grupos, iniciando com média de 2,20mm e reduzindo para 2,02 mm em 6 meses (P < 0,001). A taxa média (DP) de redução foi semelhante entre os grupos IVIG mais aspirina e apenas IVIG em cada ponto do tempo.
Efeitos profiláticos nas alterações das artérias coronárias e frequência de CALs
Durante a duração do estudo, observou-se que a maioria dos casos de pacientes com CALs foi detectada durante a fase aguda. No entanto, alguns pacientes inicialmente apresentavam diâmetro normal das coronárias durante a fase aguda, mas desenvolveram CALs posteriormente, em 6 semanas ou 6 meses, mesmo após tratamento com IVIG isolado ou IVIG mais aspirina.
Na linha de base, 13,0% (9 de 69 pacientes) no grupo IVIG mais aspirina e 10,8% (7 de 65 pacientes) no grupo apenas IVIG apresentavam CALs em pelo menos uma das três artérias coronárias com diâmetro anormal. Aos 6 meses, todos os pacientes haviam se recuperado, e não foram observadas diferenças significativas entre os grupos quanto às anormalidades coronarianas recuperadas durante o período do estudo. A porcentagem de CALs diminuiu significativamente em comparação com a linha de base, a partir de 6 semanas no grupo IVIG mais aspirina; P = 0,001) até o final do período do estudo em 6 meses (0 para ambos os grupos; P < 0,001). Da mesma forma, não foram observadas diferenças significativas no efeito do tratamento entre os dois grupos nem na LCA nem na RCA.
Avaliou-se também o efeito profilático sobre a frequência de CALs em pacientes que desenvolveram CALs mais tarde. Nenhuma diferença estatística foi identificada entre o grupo IVIG mais aspirina e o grupo apenas IVIG.
Discussão: Imunoglobulina intravenosa isolada no tratamento de lesões coronarianas
Esse estudo representa o primeiro ensaio clínico randomizado multicêntrico que investigou a eficácia da aspirina em alta dose e da imunoglobulina intravenosa (IVIG) durante a fase aguda da doença de Kawasaki (DK). Os achados revelaram que a eliminação da aspirina em alta dose não teve efeito significativo sobre a incidência de CALs. Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos quanto à frequência de anormalidades coronarianas durante o período do estudo.
O principal objetivo da administração de aspirina em alta dose era promover efeitos anti-inflamatórios. Por isso, comparou-se a eficácia em subgrupos classificados com base nos níveis de dois biomarcadores inflamatórios durante a fase aguda: proteína C reativa e contagem de plaquetas. De forma consistente com os achados nos outros subgrupos, não foram identificas distinções significativas entre o grupo IVIG + aspirina e o grupo apenas com IVIG em nenhum dos subgrupos, tanto na faixa baixa (normal) quanto na faixa alta (anormal) para proteína C reativa ou contagem de plaquetas. A análise desses subgrupos indica que a administração de tratamento com IVIG isoladamente, sem a adição de aspirina em alta dose, não aumentou o risco de formação de CALs 6 semanas ou mais após o tratamento inicial.
Limitações
Primeiramente, os participantes eram apenas do Leste Asiático. Além disse, a amostra era relativamente pequena e o número de pacientes com CALs foi limitado, tanto no grupo IVIG + aspirina quanto no grupo apenas com imunoglobulina intravenosa (IVIG). Ademais, foram incluídos exclusivamente pacientes com DK típica. Estudos futuros focando pacientes com DK atípica seriam valiosos para determinar se a conclusão sobre a eficácia equivalente da IVIG isolada na prevenção de CALs permanece válida.
Conclusões
A aspirina em alta dose não desempenhou papel significativo no manejo das CALs em pacientes com DK. A administração da dose padrão de IVIG (2 g/kg por dia) sem aspirina em alta dose (80–100 mg/kg por dia) durante a terapia da fase aguda da DK não aumentou o risco de CALs. Os resultados indicaram a não inferioridade entre o grupo tratado apenas com IVIG e o grupo IVIG + aspirina. Estudos futuros ou ensaios clínicos com desenho semelhante em outras populações raciais, étnicas ou geográficas podem ser necessários para confirmar a aplicabilidade ampla dos nossos achados.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.