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Cardiologia21 outubro 2025

Controle não ótimo dos fatores de risco e eventos cardiovasculares

Estudo avaliou níveis não ideais de quatro fatores de risco cardiovasculares tradicionais antes da primeira doença coronariana, IC ou AVC
Por Juliana Avelar

Fatores de risco tradicionais para doenças cardiovasculares (DCV), incluindo hipertensão, hipercolesterolemia, diabetes e tabagismo, têm sido foco central de pesquisas, bem como de práticas clínicas e de saúde pública voltadas à prevenção há décadas. No entanto, bancos de dados nacionais destacam que o nível de conscientização é baixo e que o diagnóstico desses fatores de risco frequentemente é perdido na prática clínica.  

Apesar da ampla base de evidências sobre a importância de fatores de risco tradicionais antecedentes aos eventos cardiovasculares, estudos recentes relataram que a proporção de pacientes com doença arterial coronariana que se apresentam sem nenhum fator de risco cardiovascular tradicional é substancial e está aumentando. Uma revisão e meta-análise recentes relataram que mais de 11% e até 27% dos pacientes que se apresentam com síndromes coronarianas agudas não apresentavam evidências de nenhum dos quatro fatores de risco cardiovasculares modificáveis padrão (standard modifiable risk factors, SMuRFs). No entanto, na maioria dos estudos citados, a presença ou ausência de fatores de risco antecedentes foi baseada em diagnóstico clínico prévio de hipertensão, hipercolesterolemia, diabetes e tabagismo atual — o que depende de contato com o sistema de saúde, triagem adequada e conhecimento dos limiares diagnósticos — podendo, assim, gerar erros significativos de classificação. 

Nesse contexto, foi publicado recentemente no JACC dados de dois estudos de coorte prospectivos, binacionais nos quais os níveis de fatores de risco foram avaliados repetidamente ao longo do tempo. Entre os subgrupos que apresentaram eventos cardiovasculares, foi determinada a prevalência de qualquer exposição antecedente a fatores de risco não ideais antes do desenvolvimento do primeiro evento de doença arterial coronariana (DAC), IC ou AVC. 

Métodos 

Os dois estudos de coorte analisados foram o KNHIS (Korean National Health Insurance Service) e o MESA (Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis). Esses estudos incluíram dados sobre eventos cardiovasculares e medições repetidas de fatores de risco antecedentes, com acompanhamento extensivo e completo. 

KNHIS Database 

O KNHIS é o único provedor de seguro de saúde universal na Coreia do Sul. O banco de dados do KNHIS contém informações não identificadas sobre dados sociodemográficos, solicitações de reembolso de seguros de saúde e estado vital de toda a população sul-coreana. Além disso, incorpora os resultados dos exames de saúde bienais de rotina oferecidos pelo KNHIS a todos os adultos coreanos. 

Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis (MESA) 

O MESA, iniciado em julho de 2000, investiga a prevalência, correlações e progressão de DCV subclínica em 6.814 adultos com idades entre 45 e 84 anos. Os participantes, sem histórico clínico de DCV, foram recrutados em seis centros nos Estados Unidos.  

Definições de desfechos 

Foram analisados separadamente cinco desfechos: DAC, infarto agudo do miocárdio (IAM), IC, AVC e eventos cardiovasculares totais. Um evento de DAC foi definido como ocorrência de IAM incidente ou morte por DAC. Um evento cardiovascular total foi definido como IAM, IC, AVC ou morte por DCV. 

Definições de fatores de risco 

A exposição a fatores de risco foi determinada com base em todas as medições repetidas disponíveis na linha de base e ao longo do acompanhamento, antes de um evento cardiovascular. As definições de fatores de risco não ideais basearam-se no arcabouço de saúde cardiovascular ideal da AHA. 

Assim, foram definidos como fatores de risco não ideais: pressão arterial sistólica ≥ 120 mmHg ou diastólica ≥ 80 mmHg ou uso de tratamento anti-hipertensivo; colesterol total ≥ 200 mg/dL ou uso de tratamento hipolipemiante; glicemia de jejum ≥ 100 mg/dL ou diagnóstico de diabetes ou uso de tratamento hipoglicemiante; ou histórico de tabagismo passado ou atual em qualquer momento das visitas disponíveis antes do evento. 

Como análise secundária, a exposição a fatores de risco clinicamente elevados foi definida com pontos de corte mais altos, frequentemente utilizados para diagnóstico clínico: pressão arterial sistólica ≥ 140 mmHg ou diastólica ≥ 90 mmHg ou tratamento anti-hipertensivo; colesterol total ≥ 240 mg/dL ou uso de tratamento hipolipemiante; glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL ou diagnóstico de diabetes ou tratamento hipoglicemiante em qualquer momento antes do evento; ou tabagismo atual na última visita antes do evento. 

Controle não ótimo dos fatores de risco e eventos cardiovasculares

Resultados: fatores de risco e eventos cardiovasculares

As análises da coorte KNHIS foram conduzidas em 96.097 eventos de DAC, 76.558 eventos de IAM, 294.220 eventos de IC, 259.348 eventos de AVC e 601.025 eventos cardiovasculares totais, ocorridos ao longo de um período mediano de acompanhamento de 13,3 anos. 

As análises da coorte MESA foram realizadas em 537 eventos de DAC, 374 de IAM, 433 de IC, 377 de AVC e 1.188 eventos cardiovasculares totais, com acompanhamento mediano de 17,7 anos. 

A idade média no momento dos eventos variou de 64,6 a 70,5 anos no KNHIS e de 74,5 a 76,9 anos no MESA. A proporção de mulheres variou de 22,0% a 45,4% no KNHIS e de 39,3% a 50,7% no MESA, dependendo do subtipo de evento cardiovascular.  

Exposição a pelo menos 1 fator de risco não ideal antes de eventos cardiovasculares 

Para todos os subtipos de eventos cardiovasculares, a proporção de participantes expostos a fatores de risco não ideais antecedentes ultrapassou 99%.
Ao considerar fatores individualmente: 

  • Pressão arterial não ideal: 95,6% a 96,1% no KNHIS e 93,0% a 96,8% no MESA 
  • Colesterol não ideal: 75,8% a 84,7% no KNHIS e 70,7% a 77,8% no MESA 
  • Glicose não ideal: 72,8% a 77,7% no KNHIS e 53,8% a 60,3% no MESA 
  • Tabagismo atual ou passado: 47,9% a 68,1% no KNHIS e 54,1% a 63,3% no MESA (Figura 1) 

A exposição a dois ou mais fatores de risco não ideais também foi extremamente comum: 93,4% a 97,2% no KNHIS e 93,2% a 94,9% no MESA. 

Exposição a pelo menos 1 fator de risco clinicamente elevado antes de eventos cardiovasculares 

A exposição a fatores de risco antecedentes continuou sendo a regra (90% a 95%) quando foram utilizados pontos de corte mais elevados para definir níveis clinicamente elevados dos fatores de risco. 

Análises de sensibilidade 

1. Colesterol não-HDL ≥ 130 mg/dL: 

Quando este valor foi usado no lugar de colesterol total elevado como um dos fatores de risco não ideais, a prevalência de pelo menos um fator de risco não ideal antecedente foi ainda maior, variando de 99,5% a 99,9%. 

2. Pontos de corte lipídicos mais baixos (colesterol não-HDL ≥ 100 mg/dL ou LDL ≥ 70 mg/dL): 

A prevalência atingiu 100%. 

Análise pós-hoc de indivíduos sem eventos cardiovasculares 

Havia 8.740.075 indivíduos no KNHIS e 5.615 no MESA que não apresentaram eventos cardiovasculares durante o período de acompanhamento.
Entre eles: 

  • A exposição a pelo menos 1 fator de risco não ideal foi de 98,4% no KNHIS e 97,6% no MESA. 
  • A exposição a pelo menos 1 fator de risco clinicamente elevado foi de 78,6% no KNHIS e 84,0% no MESA. 

Ou seja, este estudo binacional demonstrou que praticamente todos os indivíduos (> 99%) apresentavam pelo menos 1 fator de risco tradicional em nível não ideal antes do primeiro evento cardiovascular 

Quando definidas segundo critérios clínicos usuais para hipertensão, hipercolesterolemia, diabetes e tabagismo atual, a prevalência antecedente de qualquer fator de risco cardiovascular tradicional manteve-se quase onipresente (~95%). A pequena proporção de eventos cardiovasculares que pareceram ocorrer na ausência de fatores de risco clinicamente elevados frequentemente envolvia múltiplos fatores de risco tradicionais em níveis acima do ideal, mas ainda abaixo dos limiares diagnósticos. 

Na análise pós-hoc, também observamos que a prevalência de pelo menos 1 fator de risco tradicional foi alta mesmo entre participantes que não tiveram eventos cardiovasculares clínicos durante o acompanhamento, em concordância com achados prévios. Isso não surpreende, dado que a alta prevalência desses fatores de risco é bem documentada na população geral, e que a exposição a pelo menos 1 fator de risco tradicional pode ser necessária, embora não suficiente, para que eventos cardiovasculares ocorram. Diante de tal exposição de base elevada, é ainda menos provável que pacientes com DAC não apresentem nenhum fator de risco tradicional. 

Tomados em conjunto, os resultados desafiam relatos recentes na literatura médica que sugerem aumento da ocorrência de IAM e DAC na ausência de fatores de risco maiores antecedentes (fenótipo “SMuRF-less”). Como nesses relatos a exposição a fatores de risco foi frequentemente definida por diagnóstico clínico único, e não por triagens repetidas, seus achados provavelmente refletem não ausência de exposição, mas sim de diagnósticos perdidos da exposição a níveis de fatores de risco abaixo dos limiares clínicos, porém suficientemente elevados para aumentar o risco cardiovascular de forma contínua e cumulativa. 

A hipertensão clínica, o fator de risco modificável mais comum que precede eventos cardiovasculares, é diagnosticada em apenas metade dos indivíduos afetados globalmente. Baixas taxas de diagnóstico também são documentadas para hipercolesterolemia e diabetes. A presença de fatores de risco não diagnosticados e não controlados pode contribuir para pior prognóstico.  

Cada fator de risco — particularmente pressão arterial, colesterol e tabagismo — apresenta um efeito contínuo, dose-dependente e cumulativo sobre o risco cardiovascular, mesmo abaixo dos limiares diagnósticos clínicos. De forma semelhante, a pré-diabetes, não apenas o diabetes, está associada a maior risco cardiovascular em comparação com normoglicemia. Assim, níveis considerados “ótimos” para prevenção de DCV são mais baixos do que os limiares diagnósticos utilizados na prática clínica, o que levou ao desenvolvimento do conceito de saúde cardiovascular “ideal” da AHA. 

No modelo original Life’s Simple 7, saúde cardiovascular ideal referia-se a pressão arterial sistólica < 120 mmHg e diastólica < 80 mmHg sem tratamento, colesterol total < 200 mg/dL sem tratamento, glicemia de jejum < 100 mg/dL sem tratamento e nunca ter fumado — além de três fatores de estilo de vida (dieta saudável, atividade física regular e peso corporal adequado). O modelo atualizado Life’s Essential 8 expandiu esse arcabouço ao incluir um componente de sono e maior detalhamento, mantendo metas semelhantes para alcançar os escores mais altos de saúde cardiovascular.  

É importante ressaltar que nenhum ponto de corte único pode separar de forma absoluta níveis “ótimos” de “não ideais” em fatores de risco contínuos, e que metas ainda mais rigorosas podem ser consideradas. Por exemplo, colesterol total < 200 mg/dL pode não representar um nível suficientemente ótimo à luz das evidências modernas, e abordagens baseadas em LDL < 70 mg/dL ou “quanto mais baixo, melhor” são frequentemente adotadas, especialmente na prevenção secundária. 

Limitações do estudo 

  1. Frequência de acompanhamento: Apesar das medições repetidas, exposições podem ter sido perdidas em indivíduos com menor frequência de visitas, levando à subestimação da prevalência verdadeira. 
  2. Erros de mensuração: Possíveis erros de medição dos fatores de risco podem ter levado a classificações incorretas. Como os efeitos dos fatores de risco são contínuos, a carga real provavelmente é ainda maior. 
  3. Outros fatores de CVH não avaliados: Fatores como peso corporal, dieta, atividade física ou sono não foram incluídos. Como a exposição antecedente aos 4 fatores fisiológicos tradicionais já foi praticamente universal, a inclusão desses fatores não alteraria as conclusões. 
  4. Classificação de desfechos: No KNHIS, a identificação de eventos baseou-se em códigos da CID-10 de dados administrativos, sujeitos a erros de classificação.  

Conclusões 

O estudo mostrou que qualquer evento cardiovascular — incluindo DAC, IAM, IC ou AVC — foi precedido de forma quase universal pela exposição a pelo menos um nível não ideal ou clinicamente elevado de quatro fatores de risco tradicionais: pressão arterial elevada, colesterol elevado, glicemia elevada e tabagismo atual ou prévio. Ou seja, eventos cardiovasculares raramente ocorrem na ausência desses fatores de risco antecedentes. Sinal de alerta para que a gente seja mais ativo na busca de fatores de risco e, possivelmente, mais rígido quanto às metas de tratamento.

Autoria

Foto de Juliana Avelar

Juliana Avelar

Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia

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