Eventos cardíacos adversos ocorrem em cerca de 4% dos pacientes após cirurgias não cardíacas (CNC) e estão associados a uma probabilidade significativa de morte dentro de 30 dias. Com um aumento de cinco vezes na mortalidade entre os indivíduos afetados, os eventos cardíacos perioperatórios, incluindo o infarto do miocárdio, têm sido objeto de intensa investigação.
A utilização crescente de exames pré-operatórios aliado ao envelhecimento da população dos EUA resultaram em um número substancial de indivíduos submetidos a procedimentos cardíacos pré-operatórios antes da CNC. No entanto, o momento ideal da CNC após intervenções cardíacas permanece indefinido.
Em um estudo com quase 42.000 veteranos, Hawn et al. observaram um risco aumentado de mortalidade relacionada à CNC dentro de 6 meses após intervenções coronarianas percutâneas. No entanto, dados sobre CNC após cirurgias cardíacas, incluindo CABG e procedimentos valvares, ainda são escassos. Essas informações são particularmente relevantes considerando o tempo de recuperação geralmente mais prolongado necessário após cirurgias cardíacas.
O estudo de hoje, publicado recentemente no JACC, avaliou a associação entre o intervalo de tempo após cirurgia cardíaca e os desfechos de CNC eletiva.
Métodos
Estudo de coorte retrospectivo com dados do Nationwide Readmissions Database (NRD) de 2016 a 2020. Foram incluídos adultos (≥ 18 anos) submetidos a CABG eletiva, reparo ou substituição valvar, ou uma combinação desses.
O desfecho primário de interesse foi a ocorrência de pelo menos um grande evento adverso após a CNC, definido como um composto de mortalidade intra-hospitalar, eventos cardíacos agudos (taquicardia ventricular, fibrilação ventricular ou parada cardíaca), eventos cerebrovasculares agudos, eventos tromboembólicos, complicações respiratórias, lesão renal aguda (IRA), sangramento perioperatório, complicações infecciosas.
Tendências temporais de CNC após cirurgia cardíaca, assim como tempo de internação pós-operatória (pLOS), custos de hospitalização e readmissões não eletivas em 30 dias, foram avaliados secundariamente.
Resultados
De um total de 1.335.175 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca durante o período do estudo, 20.253 (1,5%) necessitaram de cirurgia não cardíaca (CNC) em uma mediana de 90 dias após o procedimento inicial.
Na análise ajustada por risco das taxas de eventos adversos maiores (MAE) em função do tempo decorrido após a cirurgia cardíaca, foi identificado um ponto de inflexão aos 100 dias de pós-operatório. Com base nesse limiar, 47,9% dos pacientes que realizaram CNC dentro de 100 dias foram considerados como “precoces”, enquanto os demais foram classificados como “tardios”. Das 13.009 CNCs realizadas eletivamente, 6.963 (53,5%) ocorreram ≥ 100 dias após a cirurgia inicial. Da mesma forma, das 7.244 CNCs não eletivas, 2.898 (40,0%) foram consideradas tardias.
A endarterectomia carotídea foi a CNC mais comum em ambos os grupos, seguida por colecistectomia (13,9%) e colectomia (13,8%) no grupo precoce, e artroplastia de quadril (13,5%) e revascularização de membros aberta (10,5%) no grupo tardio.
Entre os pacientes submetidos à CNC, 6.012 (29,7%) apresentaram MAE, incluindo mortalidade intra-hospitalar (1,5%), eventos cardíacos agudos (6,9%), eventos cerebrovasculares (2,3%), lesão renal aguda (10,8%), sangramento perioperatório (1,1%), bem como complicações respiratórias (9,1%), tromboembólicas (1,8%), gastrointestinais (8,2%) e infecciosas (10,8%).
Na análise não ajustada, os pacientes do grupo tardio apresentaram menores taxas de MAE (23,3% vs 35,6%, P < 0,001), bem como de todas as outras complicações estudadas, exceto sangramento perioperatório. Após ajuste por risco, a CNC tardia esteve associada a menor chance de MAE (OR ajustada: 0,69; IC 95%: 0,62-0,76; P < 0,001) e de mortalidade intra-hospitalar (OR ajustada: 0,66; IC 95%: 0,46-0,96; P = 0,03). Da mesma forma, a CNC tardia esteve associada a menor chance de ocorrência de eventos cardíacos agudos, eventos cerebrovasculares, eventos tromboembólicos, complicações respiratórias, gastrointestinais e infecciosas (todos P < 0,01).
Tanto a CNC precoce quanto a tardia apresentaram chances semelhantes de lesão renal aguda e sangramento perioperatório.
Entre os subtipos de cirurgia cardíaca, a CNC tardia permaneceu associada a menor chance de MAE após CRM isolada, cirurgia valvar isolada e CRM + valva, mas não após operações multivalvares (OR: 0,70; IC 95%: 0,31-1,55; P = 0,37).
O estudo identificou, então, uma relação inversa e não linear entre o tempo até a realização da cirurgia não cardíaca após a cirurgia cardíaca e o risco de eventos adversos maiores (MAEs). Embora o atraso progressivo estivesse geralmente associado à redução nas taxas de MAEs, foi observado um ponto de inflexão por volta de 100 dias, a partir do qual o risco pareceu se estabilizar.
Os achados corroboram estudos anteriores, como o de Sung et al., que relataram redução nos eventos adversos entre pacientes submetidos à revascularização miocárdica cirúrgica (CRM) após 30 dias, com queda progressiva das chances de eventos conforme aumentava o intervalo até a CNC.
A redução dos MAEs pode estar relacionada à recuperação tardia da função contrátil após a revascularização. Trabalhos fundamentais, como o de Vanoverschelde et al., demonstraram que a recuperação da função ventricular esquerda — regional e global — ocorre de forma progressiva e segue uma curva exponencial, influenciada pelo grau de alterações estruturais nos cardiomiócitos. Além disso, a função pulmonar após a CRM permanece comprometida por até um ano, devido à redução da expansão torácica, movimentos descoordenados da parede torácica, atelectasia basal e disfunção da musculatura respiratória.
Os dados indicam que os desfechos adversos relacionados à realização precoce de CNC não são explicados apenas por complicações cardíacas, mas por um espectro mais amplo de complicações perioperatórias que afetam a evolução hospitalar. Por outro lado, adiar tratamentos pode também elevar o risco de MAEs devido à progressão das doenças subjacentes. Há uma vasta literatura que associa o atraso cirúrgico a piores desfechos, especialmente em cirurgias vasculares, ortopédicas e oncológicas.
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Este estudo apresenta limitações importantes relacionadas com sua natureza retrospectiva. Os autores não tinham acesso a exames laboratoriais, imagens, discussões entre médicos e pacientes, bem como informações sobre a complexidade da doença ou da cirurgia, que poderiam influenciar o momento da CNC. Também não foi possível identificar quais pacientes foram revascularizados com a intenção de realizar CNC. fim, o caráter retrospectivo do estudo impede a inferência de relações causais.
Conclusão: Cirurgias não cardíacas após cirurgia cardíaca
A realização de CNC de forma tardia após cirurgia cardíaca está associada à redução de eventos clínicos adversos. Os dados sugerem que o intervalo ideal é de aproximadamente 100 dias, mantendo-se consistente entre diferentes categorias de risco cirúrgico, independentemente da urgência. Considerando o número expressivo de pacientes submetidos a intervenções cardíacas, estudos futuros que ajudem a identificar quem pode se beneficiar com segurança de um atraso na CNC podem apoiar melhores decisões clínicas sobre o momento ideal da cirurgia.
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