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Cardiologia22 março 2024

ACC: nova diretriz para insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida

A American College of Cardiology atualizou suas diretrizes com base nas últimas descobertas sobre o manejo de insuficiência cardíaca (IC)
A prevalência da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) vem aumentando nos últimos anos. É uma doença de alta morbimortalidade, com grande interferência na qualidade de vida e que necessita de diversos recursos da assistência à saúde. Nos últimos anos houve grande avanço em seu tratamento e, recentemente, foi publicada a atualização da diretriz do American College of Cardiology (ACC) com foco nas novas evidências. A diretriz aborda os pacientes ambulatoriais, ou seja, compensados, com ICFER. Abaixo seguem os principais pontos dessa atualização.

Definições

  • Estágios da IC: o estágio A se refere ao paciente com fatores de risco para insuficiência cardíaca (IC) e sem sintomas, sem doença estrutural e sem alterações de biomarcadores. O estágio B se refere ao paciente com doença cardíaca estrutural ou com aumento de biomarcadores, porém sem sintomas. Já os estágios C e D se referem ao paciente sintomático, sendo o estágio C presença de sintomas atuais ou prévios e o D sintomas que interferem na vida diária ou há internações recorrentes.
  • Classificação da New York Heart Association (NYHA): Classe funcional (CF) I a IV, sendo I ausência de limitação; II limitação leve para atividade física e sintomas às atividades habituais; III limitação importante para atividade física, com sintomas às atividades menores que habituais; e IV com sintomas ao repouso ou muita limitação para qualquer atividade física.
Leia também: Novos horizontes da cardiologia — diabetes e obesidade

Tratamento medicamentoso

Existem quatro grupos de medicações que reduzem morbidade e mortalidade e sempre devem ser prescritas:
  • Inibidor da neprilisina e do receptor de angiotensina II (INRA), representada pelo sacubitril/valsartana, inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA). Em relação a IECA e BRA podem ser utilizados qualquer uma dessas classes.
  • Betabloqueadores (BB): metoprolol, carvedilol e bisoprolol
  • Inibidores do SGLT2 (iSGLT2), representados por dapagliflozina, empagliflozina e sotagliflozina
  • Antagonistas mineralocorticoides (ARM), representados por espironolactona e eplerenone.
Ao se utilizar a terapia combinada de INRA, BB, iSGLT2 e ARM há efeito agregado do tratamento e aumento dos anos de sobrevida e anos livre de morte cardiovascular ou internações por insuficiência cardíaca (IC). Outras medicações que podem ser utilizadas são os diuréticos de alça, hidralazina e dinitrato de isossorbida, ivabradina e vericiguat.

Pontos importantes em relação a INRA

Sacubitril/valsartana reduz internação por IC e mortalidade cardiovascular e tem indicação IA. Caso o paciente ainda não esteja sendo tratado, essa deve ser a primeira escolha, iniciada na dose de 24/26 mg (50 mg) 2x ao dia, até a dose alvo de 97/103 (200 mg) 2x ao dia. Caso o paciente esteja em uso de IECA ou BRA e mantenha CF II ou III, esse deve mudar para sacubitril/valsartana. Quando em uso de IECA, deve ficar 36 horas sem esse para então iniciar a nova medicação, devido ao risco de angioedema. No caso do BRA isso não é necessário. ARNI pode levar a maior queda de pressão arterial (PA) que IECA e BRA, assim, o cuidado deve ser maior quando PA sistólica < 100 mmHg e, nos casos em que não há congestão, uma estratégia é reduzir ou suspender diuréticos de alça.

Pontos importantes em relação a iSLGT2

Essa classe de medicações também tem indicação IA e reduz internações e mortalidade cardiovascular independente da presença de diabetes. O mecanismo de ação ainda é incerto, porém existe um efeito de natriurese osmótica, redução da PA e do enrijecimento arterial, além de alterações no metabolismo no miocárdio. Seu efeito na PA é mínimo e eles também parecem reduzir hipercalemia nos pacientes em uso de ARM, diminuindo a chance de ter que suspender alguma das medicações por esse motivo. Disfunção renal pode ser um limitante e geralmente essa classe não é iniciada em pacientes com doença renal mais avançada. Após o início da medicação, uma queda na TFG é esperada e, caso o paciente já tenha função renal limítrofe, deve ser monitorizado mais de perto.

Ivabradina

Essa medicação, que age inibindo a corrente If do nó sinusal, é indicada em casos específicos, já que consegue reduzir a frequência cardíaca (FC) sem interferir na PA e sabemos que pacientes com menores FC em ritmo sinusal têm melhores desfechos. Assim, é indicada com recomendação IIa, nível de evidência B, para pacientes com FE ≤ 35%, com terapia médica otimizada, em ritmo sinusal e com FC > 70 bpm. O benefício parece maior para pacientes com contraindicação a BB, para os que estão com doses < 50% da dose alvo e nos com FC ≥ 77 bpm.

Vericiguat

Essa medicação é um estimulante da guanilil ciclase solúvel e atual aumentando a produção de GMP cíclico, que por sua vez leva a vasodilatação, melhora da função endotelial, redução de fibrose e remodelamento. Essa medicação reduz internação e necessidade de diurético endovenoso em pacientes com terapia otimizada, porém em piora clínica. A indicação 2b, nível de evidência B é para os pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) de alto risco e insuficiência cardíaca (IC) em piora, com objetivo de reduzir internações e morte cardiovascular.

Hidralazina e nitrato

Essas medicações têm benefício em pacientes afro-americanos que permanecem com sintomas mesmo com a medicação preconizada na dose alvo, principalmente quando em CF III ou IV.

Outros tipos de tratamento

Além das medicações, existe a possibilidade de outros tipos de tratamento, como o tratamento percutâneo da valva mitral nos casos de insuficiência valvar importante, que tem benefício e pode ser considerado após a otimização do tratamento medicamentoso. Saiba mais: ESC 2023: Acompanhe o congresso que traz as maiores novidades para a cardiologia

Como iniciar o tratamento?

Dúvidas práticas comuns são qual medicação começar primeiro e como ajustar as doses ao longo do tratamento. Não há uma ordem definida para início e ajuste de dose e o paciente deve ser avaliado de forma individual. Porém, recomenda-se que o início deve ser precoce e o ajuste deve ser realizado o mais rápido possível. Para pacientes recém-diagnosticados, a meta é estar com todas as medicações otimizadas em até três meses. As quatro classes de medicações indicadas podem ser iniciadas concomitantemente, em doses baixas e o ajuste pode ser feito em mais de uma medicação de uma vez. Em casos específicos pode ser necessário ajustar uma medicação por vez e algumas dicas podem ser úteis: pacientes com algum grau de congestão geralmente toleram mais vasodilatadores, como INRA, IECA ou BRA e os pacientes mais “secos” e com frequência cardíaca mais baixa toleram melhor os BB. Outras informações importantes são que BB não devem ser iniciados em pacientes com sinais de descompensação e os ARM e iSGLT2 praticamente não afetam a pressão arterial.

Como otimizar o tratamento

A dose de BB deve ser ajustada a cada uma a duas semanas em pacientes sem contraindicação e sem sinais de IC descompensada. Após o ajuste pode haver um período transitório de piora de sintomas de dispneia, fadiga, disfunção erétil ou tontura. Pacientes com PA limítrofe ou pacientes frágeis podem necessitar de intervalos maiores para ajustes. INRA, IECA e BB podem ser otimizados como os BB, sendo a dose dobrada a cada 1 a 2 semanas. Porém necessitam de monitorização da função renal, potássio e PA, podendo ser necessário reduzir os diuréticos. ARM deve ser adicionado aos BB e ARNI quando não há contraindicação, independente de as outras medicações estarem na dose alvo. O iSGLT2, que também pode ser iniciado no mesmo momento que as outras, reduz a hipercalemia, facilitando seu uso.

Dificuldades no ajuste de dose

Na prática, os pacientes são diferentes dos pacientes dos estudos, sendo muitas vezes mais velhos, com mais comorbidades e maior tendência à hipotensão. Devemos lembrar que utilizar múltiplas classes de medicação é melhor que utilizar apenas 1 ou 2 e utilização em doses baixas é melhor que não utilizar. Uma dificuldade é a presença de disfunção renal e/ou hipercalemia. Uma dieta pobre em potássio pode ajudar, assim como o uso de iSGLT2 e quelantes de potássio, porém é importante ter alguns cuidados:
  • Pacientes com TFG menor que 30 mL/kg/min/1,73 devem iniciar INRA em dose mais baixa (24/26 mg) e IECA e BRA são considerados um pouco mais seguros.
  • A cada aumento da dose de INRA/IECA ou BRA deve-se avaliar a função renal em uma a duas semanas.
  • ARM são contraindicados quando TFG < 30 mL/kg/min/1,73 ou creatinina > 2,5 mg/dL em homens ou 2 mg/dL em mulheres e nos casos de K > 5. Após o início da medicação deve-se dosar a função renal e potássio em uma a duas semanas.
  • iSGLT2 podem ser iniciados até TFG de 20 mL/kg/min/1,73 (empagliflozina), 30 mL/kg/min/1,73 (dapagliflozina) ou 25 mL/kg/min/1,73 (sotagliflozina) e caso caia após início da medicação não é obrigatório suspender. Função renal e potássio devem ser monitorados pelo menos a cada três meses, ou antes, se necessário.
Caso ocorra aumento da TFG em 30% ou hipercalemia, a dose das medicações deve ser reduzida, porém alterações transitórias podem ocorrer e não têm relação com pior prognóstico.

Quando fazer as reavaliações

Pacientes em ajustes de doses devem ser avaliados frequentemente e, quando em doses otimizadas, devem ser revistos em intervalos de três a seis meses. O ecocardiograma deve ser realizado em todos os pacientes com insuficiência cardíaca (IC) e deve ser repetido após três a seis meses de tratamento médico otimizado. O ecocardiograma também deve ser repetido quando há possibilidade de terapias com dispositivos (CDI, ressincronizador ou tratamento mitral percutâneo), ou tratamentos mais avançados como dispositivos de assistência ventricular ou transplante. Além disso, deve ser repetido quando houver mudança de status funcional. É importante ressaltar que o remodelamento pode ocorrer mais tardiamente, até um ano e para os tratamentos mais avançados vale a pena esperar essa reavaliação. Quando o paciente está estável não se recomenda ecocardiograma de rotina e se houver melhora da FE para valores maiores que 40% a medicação deve ser mantida e otimizada da mesma forma.

Quando dosar biomarcadores (peptídeos natriuréticos)

BNP e NT-proBNP são os mais estudados e têm papel diagnóstico e prognóstico. Maiores concentrações têm associação com maior risco, principalmente quando estão em aumento progressivo. Pacientes que não têm queda desses marcadores com o tratamento têm pior prognóstico, mais congestão e remodelamento e sua redução tem associação com remodelamento reverso e melhores desfechos. Quando há piora dos sintomas, seus valores também podem auxiliar, ou seja, auxiliam na monitorização do risco. Importante ressaltar que sacubitril/valsartana aumenta as concentrações de BNP, mas não de NT-proBNP, que deve ser a preferência nesses casos.

Avaliação das pressões de enchimento – quando e como medir

As medidas das pressões de enchimento de forma invasiva podem ser úteis em pacientes com sintomas refratários apesar do uso de diuréticos, nos que tem piora de função renal com tentativas de aumento de diurético ou com internações recorrentes por congestão. Além disso, a cateterização da artéria pulmonar ajuda a selecionar pacientes para o transplante ou suporte circulatório. Nos últimos anos surgiram alguns sensores implantáveis que monitorizam a pressão da artéria pulmonar e auxiliam no manejo de pacientes ambulatoriais, com redução de internações. Outra forma de avaliar a congestão é por impedância torácica via marcapasso. Os valores da impedância se correlacionam com a pressão capilar pulmonar e ajudam a identificar hipervolemia antes da internação.

Quando encaminhar para o especialista

Pacientes de alto risco devem ser encaminhados para especialistas em insuficiência cardíaca (IC), assim como os que tem FE ≤ 35% mantida por mais de 3 meses após otimização terapêutica e os que precisam de uma segunda opinião em relação a etiologia da IC. As características de alto risco são: necessidade de inotrópicos, CF III ou IV, PAS < 90 mmHg ou hipotensão sintomática, creatinina ≥ 1,8, início de FA, arritmias ventriculares ou choque repetidos do CDI, 2 ou mais avaliações em emergência ou internações por piora de insuficiência cardíaca (IC) em um ano, intolerância a medicação, piora clínica ou de remodelamento.

Como melhorar a aderência

A aderência se refere a quanto de medicação é tomada de acordo com a prescrição. Estima-se que a não aderência esteja entre 20 e 50%, com algumas variações entre as medicações. Além disso, boa parte dos pacientes não tem a medicação otimizada até a dose alvo, mesmo na ausência de intolerância a medicação. As razões para não aderência são diversas e algumas formas de melhorar são compartilhar as informações com o paciente, abordá-lo de forma ampla, educá-lo em relação a sua doença. O cuidado multidisciplinar pode contribuir para redução da inércia terapêutica e programas governamentais podem facilitar o acesso a medicação. Outro ponto de importância é em relação aos cuidados paliativos, que se baseiam na redução do sofrimento do paciente por meio do alívio da dor e outros sintomas e do cuidado com aspectos psicológicos e espirituais, focando em qualidade de vida. Nestes casos, as decisões devem ser tomadas em conjunto com a família e o paciente e a antecipação de diretivas e vontades do paciente é importante.

Comentário e conclusão

Esta diretriz trouxe aspectos mais práticos para o médico, com maior clareza em relação a como implementar o tratamento da insuficiência cardíaca (IC) no dia a dia, o que faz com que a meta de tratamento possa ser mais facilmente atingida.
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Referências bibliográficas

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