No atual mundo conectado e com a inteligência artificial (IA) tomando cada vez mais o cenário no nosso dia a dia, muito se discute como que tais tecnologias serão implementadas na prática médica e se serão capazes de substituir o papel do médico na assistência ao paciente.
Quando trazemos o cenário descrito acima para a área cardiovascular, a esperança da mudança é ainda maior devido à grande quantidade de pacientes acometidos por essa classe de doenças e o potencial remodelador de forças coletivas sobre elas.
Os impactos futuros ocorrem principalmente devido a três mudanças disruptivas descritas por Virimchi et al. (2024) em estudo publicado pelo The Lancet:
- Envelhecimento da população, que já está sendo observado, o que aumenta a necessidade de gerenciamento e acompanhamento de doenças crônicas, com destaque para as cardiovasculares.
- O avanço da IA democratizará a tomada de decisões clínicas devido à transição para modelos contínuos de assistência, possibilitando maior envolvimento do paciente e a autogestão de sua saúde.
- Surgimento de importante questionamento: o intermédio entre paciente e médico especialista ocorrerá pela própria inteligência artificial, estreitando o ciclo de relação tradicional entre estado de saúde do paciente e a definição de intervenção pelo médico?
Mudança do papel do médico
Diante do descrito, a convergência de todos os fatores supracitados orientarão a assistência médica para uma transição ainda mais evidente e rápida do modelo Hospitalista para o modelo Ambulatorial, algo que já buscado há tempos.
Os cuidados ambulatoriais serão motivados e terão como foco encorajar a prevenção e o autogerenciamento de doenças crônicas pelos próprios pacientes.
O médico será, em primeiro momento, um coadjuvante, que terá acesso aos dados por ferramentas digitais de saúde e plataformas digitais. Dessa forma, progressivamente ocorrerá o manejo de problemas cada vez mais complexos por Clínicos Gerais com o auxílio de algoritmos e IA generativa, ou o afastamento desses profissionais por alguns pacientes, os quais irão decidir se os utilizarão como responsável por seu cuidado ou irão retirá-lo do papel de intermediário para chegar ao especialista.
Nova realidade dentro da cardiologia?
No que tange à cardiologia, o questionamento aventado pela terceira mudança deve ser avaliado à parte do restante da medicina.
A possibilidade de ganho no diagnóstico e gerenciamento de doenças cardiovasculares está no epicentro da questão devido à importância de sinais e sintomas que podemos monitorizar de forma ambulatorial.
A avaliação contínua de frequência e ritmo cardíaco, peso, pressão arterial, volume de diurese e até mesmo fatores secundários que aumentam o risco cardiovascular, como a glicemia, será componente-chave para a transformação digital.
Os protocolos bem estabelecidos, com diversos scores e tratamentos fundamentados da Medicina Baseada em Evidência permitem que o tratamento siga abordagens algorítmicas com a sobreposição de ferramentas que irão aprender com o próprio paciente, tornando a tomada de decisão clínica cada vez mais democrática e com menor necessidade do especialista.
A realocação do cardiologista ocorrerá para a assistência de questões realmente complexas, com interdependência de demais conhecimentos e com necessidade de experiência específica de subespecialidades.
Caminho para chegar até lá
O caminho para o cenário imaginado está avançando de forma rápida, porém ainda há diversas questões a serem resolvidas. A segurança dos dados, a eficácia clínica de interpretá-los e a interoperabilidade devem ser comprovadas. Por fim, e o tema mais difícil de ser definido, caso ocorram falhas é sobre quem será o responsável.
É de conhecimento geral de que na medicina muitos casos não seguem os livros, os estudos e as diretrizes e que taxas de erros e falhas ocorrem, porém, por mais que essa porcentagem reduza com a IA no aspecto geral, no individual não se aceitam falhas sem um responsável.
Apesar dessas incertezas, a mudança é inevitável, e inclusive já está ocorrendo, cabendo a nós sermos ativos e assumirmos a nossa responsabilidade dentro dessa transição.
Cenário brasileiro
Toda perspectiva narrada acima encontra-se um pouco mais distante da nossa realidade atual. Com o sistema de saúde recebendo cortes de investimentos e o acesso desigual da população à saúde de modo digital e aos dispositivos de IA geram uma incerteza ainda maior sobre o cenário.
No entanto, podemos implementar as ferramentas no nosso dia a dia individualizando a capacidade de uso dos nos pacientes e principalmente sua facilidade ao acesso, entretanto, deveremos manter o método tradicional quando pensarmos na população em geral e na realidade do SUS.
A evolução digital que, como principal benefício traria maior acesso à saúde, poderá ser mais um mecanismo de desigualdade em nosso país.
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