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Terapia Intensiva19 maio 2025

Mitos sobre nutrição enteral nos pacientes graves em UTI

Artigo de revisão e opinião revisou nove tópicos que se assemelham a mitos da nutrição enteral
Por André Japiassú

A desnutrição é muito comum nos pacientes graves na UTI. A doença aguda grave, comorbidades e dificuldade de iniciar e manter a dieta enteral são as principais razões. A prevalência de desnutrição é variável, em torno de 38% a 78%, dependendo do tipo da população predominante em cada UTI (pacientes com trauma com menor e clínicos com maior taxa). 

Avaliar o status nutricional de um paciente de UTI também é desafiador, porque há frequentemente edema, falta de cooperação para o exame físico, estimativa variável do balanço hídrico e da massa muscular. Mesmo em pacientes com índice de massa corporal acima de 25 kg/m2 (ou seja, sobrepeso ou obeso), a taxa de desnutrição de qualquer grau é maior que 50%! 

Por fim, a administração efetiva de nutrição enteral é abaixo do que se espera: somente 60% de calorias e proteínas prescritas entram efetivamente pelo cateter enteral. E há atraso médio de 46 horas entre a admissão do paciente na UTI e o início da nutrição enteral. 

Resumindo: nutrir dentro da UTI é complicado porque não se consegue avaliar clinicamente o paciente, que pode até ter peso aceitável, mas tem sinais de perda calórico-protéica, recebe atrasadamente só parcialmente aquilo que se programou. 

E quais são as consequências disso tudo? Prolongamento do tempo de internação, dificuldade de reabilitação motora e respiratória, infecções hospitalares, lesões de úlcera por pressão, quedas do leito, aumento da mortalidade e da reinternação hospitalar. 

Neste artigo de revisão e opinião, os autores revisam nove tópicos que se assemelham a mitos da nutrição enteral, ou seja, muitos colegas relatam, mas não se constituem verdades, baseado em literatura científica. 

Leia mais: Nutrição Enteral na UTI: 10 dicas para a prática clínica

  1. Início precoce de dieta enteral não é necessário 
  • O atraso no início de dieta enteral é significativo, geralmente após 2 dias da internação; as primeiras 6-12 horas geralmente são suficientes para saber se o paciente está estável ou precisa de intervenções, e por isso a avaliação de início mais precoce é recomendável; 
  • Não há necessidade de começar a oferta buscando equivaler o total do gasto calórico, já que 400-500 calorias nos primeiros 3-4 dias são suficientes; 
  • O início precoce, se comparado ao tardio (> 72 horas), está associado a menor incidência de sintomas gastrointestinais e de atrofia intestinal e consequentemente a menor tempo de UTI; 
  • A oferta de proteínas não precisa ser grande, já que os trabalhos com dietas hiperproteicas não ofereceram benefícios em relação às dietas comuns. 

      2. Administração de dieta pós-pilórica é melhor que gástrica 

  • A administração gástrica é mais prática e rápida de se obter, e tem a mesma incidência de efeitos colaterais e total de calorias ofertadas que a administração pós-pilórica; 
  • Considere pós-piloro se houver alteração anatômica como gastrectomia ou bypass gastrojejunal ou se há gastroparesia prolongada. 

      3. Dieta contínua é preferível ao bolus para prevenir aspiração e intolerância 

  • Aqui pode haver “surpresa”: fazer bolus tem a mesma chance de aspiração ou morte que fazer dieta contínua; 
  • Bolus é mais fisiológico, cursa com menos constipação, permite interrupções e mobilizações, e é até mais custo-efetiva; 
  • A decisão vai ficar pelo momento do paciente: se é mais agudo e/ou intolerante, com distensão abdominal, fazer continua é mais segura (?), mas fazer bolus em outros casos de pacientes estáveis é eficaz. 

      4. Volume residual gástrico prediz aspiração 

  • Tem uma decepção para vários de nós aqui: medir volume gástrico residual não é útil – exceto por volumes excessivos, maiores que 500 ml (que cursam com sinais e sintomas muito aparentes no exame físico), volumes de 100, 200, ou mesmo 500 ml de resíduo gástrico não se associam com aspiração ou mortalidade; 
  • Estudo randomizado (JAMA 2013) mostrou que não há diferença em desfechos e as sociedades de nutrição enteral/parenteral não recomendam medir resíduo gástrico de rotina. 

      5. Vamos suspender a dieta enteral para jejum antes de procedimentos 

  • “Jejum após meia-noite para procedimento”? Esqueça isso. Ou convença o cirurgião! Não há evidência de literatura que ratifique esta conduta, que só atrasa ou reduz a quantidade de nutrição que o paciente poderia receber; 
  • Só há justificativa se o procedimento for: cirurgias abdominais, torácicas, ou que o paciente fique em posição prona para a cirurgia. 

      6. Nutrir após cirurgia abdominal? Só depois de 2-3 dias 

  • Quando mais rápido o paciente puder nutrir após cirurgia abdominal, menor o íleo paralítico, edema de alças e mortalidade – lembrar do protocolo ERAS! 
  • Exceções ficam pelas fístulas intestinais ou obstruções não resolvidas. 

       7. No paciente com SARA e posição prona, suspender dieta gástrica 

  • Não precisa suspender dieta no paciente pronado: a taxa de aspiração não é maior que no paciente supinado; 
  • É claro que o volume ofertado não precisa ser grande e o paciente mais grave pode ser “hipo” nutrido nos primeiros dias de UTI (~400-500 cal/dia); 
  • A musculatura lisa também não é afetada pelo uso de bloqueadores neuromusculares, que são usados em pacientes com SARA grave e prona. 

      8. Se o paciente tiver choque usando vasopressor, a dieta enteral está contraindicada 

  • A ordem para subverter este mito é não exagerar: se o paciente estiver com doses de noradrenalina até 0,25-0,30 mcg/kg/min, pode iniciar dieta enteral em volumes menores, mesmo gástrica, e evoluir de acordo com aceitação clínica e avaliação seriada de perfusão periférica (ex. lactato arterial); 
  • A incidência de isquemia mesentérica foi de 2% em estudo no qual a oferta de dieta era total e os paciente usavam doses moderadas a altas de noradrenalina (NUTRIREA-2, Lancet 2018); portanto, sem exageros aqui, lembrando que “o ótimo é inimigo do “bom”. 

      9. Suspender a dieta enteral antes de desmame de ventilação e extubação 

  • No único estudo que avaliou este mito (Landais et al, Lancet Resp Med 2023), mais de mil pacientes foram divididos entre suspender ou não dieta enteral 6 horas antes de extubação – resultado igual para pacientes que ficaram ou não com dieta até extubar (desfechos foram sucesso na extubação e pneumonia); 
  • Não há necessidade de suspender a dieta com antecedência nos pacientes a serem extubados. 

Veja também: Nutrição enteral contínua (NEC) e intermitente (NEI) em pacientes críticos

Mensagens para o dia-a-dia: 

  • Pense sempre em alimentar o paciente grave o mais precoce possível, desde que esteja estável hemodinamicamente e com tubo digestivo pérvio; 
  • Ao se deparar com alguém citando os mitos acima, tente convencer pelas evidências: o paciente vai se beneficiar. 

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Referências bibliográficas

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