A desnutrição é muito comum nos pacientes graves na UTI. A doença aguda grave, comorbidades e dificuldade de iniciar e manter a dieta enteral são as principais razões. A prevalência de desnutrição é variável, em torno de 38% a 78%, dependendo do tipo da população predominante em cada UTI (pacientes com trauma com menor e clínicos com maior taxa).
Avaliar o status nutricional de um paciente de UTI também é desafiador, porque há frequentemente edema, falta de cooperação para o exame físico, estimativa variável do balanço hídrico e da massa muscular. Mesmo em pacientes com índice de massa corporal acima de 25 kg/m2 (ou seja, sobrepeso ou obeso), a taxa de desnutrição de qualquer grau é maior que 50%!
Por fim, a administração efetiva de nutrição enteral é abaixo do que se espera: somente 60% de calorias e proteínas prescritas entram efetivamente pelo cateter enteral. E há atraso médio de 46 horas entre a admissão do paciente na UTI e o início da nutrição enteral.
Resumindo: nutrir dentro da UTI é complicado porque não se consegue avaliar clinicamente o paciente, que pode até ter peso aceitável, mas tem sinais de perda calórico-protéica, recebe atrasadamente só parcialmente aquilo que se programou.
E quais são as consequências disso tudo? Prolongamento do tempo de internação, dificuldade de reabilitação motora e respiratória, infecções hospitalares, lesões de úlcera por pressão, quedas do leito, aumento da mortalidade e da reinternação hospitalar.
Neste artigo de revisão e opinião, os autores revisam nove tópicos que se assemelham a mitos da nutrição enteral, ou seja, muitos colegas relatam, mas não se constituem verdades, baseado em literatura científica.
Leia mais: Nutrição Enteral na UTI: 10 dicas para a prática clínica
- Início precoce de dieta enteral não é necessário
- O atraso no início de dieta enteral é significativo, geralmente após 2 dias da internação; as primeiras 6-12 horas geralmente são suficientes para saber se o paciente está estável ou precisa de intervenções, e por isso a avaliação de início mais precoce é recomendável;
- Não há necessidade de começar a oferta buscando equivaler o total do gasto calórico, já que 400-500 calorias nos primeiros 3-4 dias são suficientes;
- O início precoce, se comparado ao tardio (> 72 horas), está associado a menor incidência de sintomas gastrointestinais e de atrofia intestinal e consequentemente a menor tempo de UTI;
- A oferta de proteínas não precisa ser grande, já que os trabalhos com dietas hiperproteicas não ofereceram benefícios em relação às dietas comuns.
2. Administração de dieta pós-pilórica é melhor que gástrica
- A administração gástrica é mais prática e rápida de se obter, e tem a mesma incidência de efeitos colaterais e total de calorias ofertadas que a administração pós-pilórica;
- Considere pós-piloro se houver alteração anatômica como gastrectomia ou bypass gastrojejunal ou se há gastroparesia prolongada.
3. Dieta contínua é preferível ao bolus para prevenir aspiração e intolerância
- Aqui pode haver “surpresa”: fazer bolus tem a mesma chance de aspiração ou morte que fazer dieta contínua;
- Bolus é mais fisiológico, cursa com menos constipação, permite interrupções e mobilizações, e é até mais custo-efetiva;
- A decisão vai ficar pelo momento do paciente: se é mais agudo e/ou intolerante, com distensão abdominal, fazer continua é mais segura (?), mas fazer bolus em outros casos de pacientes estáveis é eficaz.
4. Volume residual gástrico prediz aspiração
- Tem uma decepção para vários de nós aqui: medir volume gástrico residual não é útil – exceto por volumes excessivos, maiores que 500 ml (que cursam com sinais e sintomas muito aparentes no exame físico), volumes de 100, 200, ou mesmo 500 ml de resíduo gástrico não se associam com aspiração ou mortalidade;
- Estudo randomizado (JAMA 2013) mostrou que não há diferença em desfechos e as sociedades de nutrição enteral/parenteral não recomendam medir resíduo gástrico de rotina.
5. Vamos suspender a dieta enteral para jejum antes de procedimentos
- “Jejum após meia-noite para procedimento”? Esqueça isso. Ou convença o cirurgião! Não há evidência de literatura que ratifique esta conduta, que só atrasa ou reduz a quantidade de nutrição que o paciente poderia receber;
- Só há justificativa se o procedimento for: cirurgias abdominais, torácicas, ou que o paciente fique em posição prona para a cirurgia.
6. Nutrir após cirurgia abdominal? Só depois de 2-3 dias
- Quando mais rápido o paciente puder nutrir após cirurgia abdominal, menor o íleo paralítico, edema de alças e mortalidade – lembrar do protocolo ERAS!
- Exceções ficam pelas fístulas intestinais ou obstruções não resolvidas.
7. No paciente com SARA e posição prona, suspender dieta gástrica
- Não precisa suspender dieta no paciente pronado: a taxa de aspiração não é maior que no paciente supinado;
- É claro que o volume ofertado não precisa ser grande e o paciente mais grave pode ser “hipo” nutrido nos primeiros dias de UTI (~400-500 cal/dia);
- A musculatura lisa também não é afetada pelo uso de bloqueadores neuromusculares, que são usados em pacientes com SARA grave e prona.
8. Se o paciente tiver choque usando vasopressor, a dieta enteral está contraindicada
- A ordem para subverter este mito é não exagerar: se o paciente estiver com doses de noradrenalina até 0,25-0,30 mcg/kg/min, pode iniciar dieta enteral em volumes menores, mesmo gástrica, e evoluir de acordo com aceitação clínica e avaliação seriada de perfusão periférica (ex. lactato arterial);
- A incidência de isquemia mesentérica foi de 2% em estudo no qual a oferta de dieta era total e os paciente usavam doses moderadas a altas de noradrenalina (NUTRIREA-2, Lancet 2018); portanto, sem exageros aqui, lembrando que “o ótimo é inimigo do “bom”.
9. Suspender a dieta enteral antes de desmame de ventilação e extubação
- No único estudo que avaliou este mito (Landais et al, Lancet Resp Med 2023), mais de mil pacientes foram divididos entre suspender ou não dieta enteral 6 horas antes de extubação – resultado igual para pacientes que ficaram ou não com dieta até extubar (desfechos foram sucesso na extubação e pneumonia);
- Não há necessidade de suspender a dieta com antecedência nos pacientes a serem extubados.
Veja também: Nutrição enteral contínua (NEC) e intermitente (NEI) em pacientes críticos
Mensagens para o dia-a-dia:
- Pense sempre em alimentar o paciente grave o mais precoce possível, desde que esteja estável hemodinamicamente e com tubo digestivo pérvio;
- Ao se deparar com alguém citando os mitos acima, tente convencer pelas evidências: o paciente vai se beneficiar.
Autoria

André Japiassú
Doutor em Ciências pela Fiocruz. Mestre em Clínica Médica pela UFRJ. Especialista em Medicina Intensiva pela AMIB. Residência Médica em Medicina Intensiva pela UFRJ. Médico graduado pela UFRJ.
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