Dada a considerável morbidade e mortalidade associadas à hipoxemia sistêmica após trauma, a administração de oxigênio suplementar é uma intervenção precoce instituída no manejo do trauma com base nas diretrizes do Advanced Trauma Life Support (ATLS). Essa estratégia visa evitar episódios de hipoxemia, especialmente na fase inicial e crítica dos cuidados, períodos em que a hipoperfusão tecidual e a possibilidade de déficit neurológico. Entretanto, a hiperóxia tem sido associada ao aumento do estresse oxidativo, disfunção mitocondrial, lesão pulmonar e aumento da mortalidade, o que leva em consideração risco x benefício da livre oxigenoterapia.
O estudo de implementação TRAUMOX2 e seus três subestudos visam registrar continuamente a hipoxemia baseada em eventos (definida como valor de oxímetro de pulso < 90% por ≥ 5 min) em pacientes com trauma tratados com estratégias de terapia de oxigênio liberal comparadas às restritivas durante as primeiras 8 horas após o trauma. Isso é essencial para uma definição mais precisa de sua frequência, duração e implicações clínicas, além de oferecer uma base de evidências robusta, que pode promover mudanças na prática clínica.
Fisiopatologia da Hipoxemia Pós-Trauma
O aumento da permeabilidade capilar, edema pulmonar e atelectasia são as principais características da resposta inflamatória sistêmica que está presente em traumas graves. A relação ventilação / perfusão alveolar são comprometidas por lesões diretas no tórax (por exemplo, contusões pulmonares, hemotórax, pneumotórax). A hipoventilação e o agravamento da deterioração da oxigenação são ainda exacerbados por hipovolemia, acidose metabólica, sedação e uso de opioides.
Por outro lado, a hiperóxia leva à formação de espécies reativas de oxigênio (ERO), radicais livres, constrição coronária e função mitocondrial alterada. Esses efeitos podem agravar o estado clínico em pacientes com lesão cerebral traumática ou disfunção cardiovascular.
Métodos e Desenho do Estudo
O braço observacional do TRAUMOX2 foi realizado em 2 centros de referência de trauma na Dinamarca — Hospital Universitário de Copenhague e Hospital Universitário de Odense. A análise foi restrita aos 60 pacientes gravemente feridos dos primeiros 225 pacientes elegíveis.
Os pacientes foram monitorados continuamente quanto à saturação de oxigênio usando oximetria de pulso (SpO₂) e os dados foram coletados em intervalos de 1 segundo (por um máximo de 8 horas). Episódios clinicamente relevantes foram definidos como episódios clinicamente relevantes de SpO₂ < 90% (≥ 5 minutos) e foram comparados entre ambos os grupos. Também incluiu episódios mais curtos (≥2 min), quedas mais severas (≤85%) e tempo acumulado gasto dessaturando.
Estratégias de oxigenoterapia
Durante as primeiras oito horas de protocolo:
– Grupo liberal: recebeu oxigênio com FiO₂ entre 0,6–1,0, via máscara não reinalante ou por via aérea avançada (intubação).
– Grupo restritivo: recebeu apenas o necessário para manter SpO₂ ≥ 94%, com ajuste conforme monitoramento contínuo.
– A escolha de dispositivos, frequência de titulação e intervenções ventilatórias adicionais ficaram a critério da equipe clínica.
Veja também: Recomendações para oxigenoterapia domiciliar prolongada
Resultados: o que o estudo nos mostra?
A hipoxemia clinicamente relevante (SpO₂ < 90% por ≥ 5 minutos) foi baixa, registrada em apenas 5% dos pacientes (n=3; IC95%: 1–14%). Não houve diferença estatística significativa entre os grupos: 7% no grupo restritivo versus 3% no grupo liberal.
Quando considerado um critério mais sensível (SpO₂ < 90% por ≥ 2 minutos), 10% dos pacientes apresentaram dessaturações. Episódios mais graves, com SpO₂ < 85% por ≥ 5 minutos, foram ainda mais raros, ocorrendo em apenas 3% da amostra.
Em relação à duração e frequência:
– O tempo total mediano com SpO₂ < 90% foi de apenas 24 segundos por paciente (IQR: 0–146).
– Cada episódio durou em média 10 segundos (IQR: 5–17).
– Alarmes de SpO₂ < 85% foram acionados 79 vezes em 21 pacientes, porém a maioria foi atribuída a artefatos, sem repercussões clínicas.
Dos três pacientes que apresentaram hipoxemia prolongada:
– Dois estavam no grupo restritivo e tinham traumas graves com lesões extensas.
– Um era do grupo liberal, com trauma toracoabdominal grave, sob transfusão maciça.
Desafios
Diferenciar episódios verdadeiros de hipoxemia representa um grande desafio. A acurácia da SpO₂ diminui com valores abaixo de 90%, especialmente em condições de má perfusão periférica, movimentações do paciente e lesões em extremidades. O estudo adotou um rigoroso critério de filtragem de distratores (variação abrupta >4% por segundo) para aumentar a precisão.
Apesar de 79 ativações de alarme por SpO₂ < 85%, não houve registros de intervenções clínicas documentadas nas horas seguintes, sugerindo baixa relevância clínica da maioria desses eventos ou possível subnotificação.
Comparação com estudos recentes
- Iten et al. – “Hyperoxaemia in acute trauma is common and associated with a longer hospital stay”
Este estudo multicêntrico retrospectivo demonstrou hiperóxia em 55% dos pacientes politraumatizados. Os autores associaram essa condição a maior tempo de internação hospitalar e mais complicações respiratórias. Os achados reforçam a importância de evitar oferta liberal de oxigênio, especialmente em fases precoces do atendimento.
- Baekgaard et al. – “A high fraction of inspired oxygen may increase mortality in intubated trauma patients”
Neste estudo retrospectivo, níveis elevados de FiO₂ nas primeiras 24 horas pós-trauma estavam associados a maior mortalidade, principalmente em pacientes intubados. O trabalho destaca os riscos da hiperóxia, corroborando a hipótese que o oxigênio, embora essencial, pode ser deletério em excesso.
Este subestudo do TRAUMOX2 lança luz sobre uma questão central no atendimento ao trauma: é realmente necessário ofertar oxigênio em alta concentração a todos os pacientes?
Os resultados indicam que a hipoxemia clinicamente relevante é rara nas primeiras horas após o trauma, mesmo em pacientes graves. A estratégia restritiva, ao contrário do que se poderia supor, não aumentou os episódios críticos de dessaturação. Com isso, emerge a possibilidade de rever protocolos que recomendam oxigenoterapia liberal como padrão.
Comparado com os estudos de Iten et al. e Baekgaard et al., a ênfase se desloca do risco de hipoxemia para os efeitos deletérios da hiperóxia. Isso sugere que, em determinados pacientes, a oxigenoterapia deve ser mais racional e individualizada, respeitando os limites fisiológicos, e não baseada apenas em rotinas assistenciais.
Ainda assim, limitações do estudo devem ser reconhecidas. O pequeno tamanho amostral, o viés de seleção por inclusão predominantemente diurna e a exclusão de pacientes com menos de quatro horas de monitoramento limitam a metodologia. Além disso, a documentação clínica das respostas terapêuticas a episódios de dessaturação foi limitada.
Mensagens para casa
– Episódios de hipoxemia clinicamente relevantes ocorreram em apenas 5% dos pacientes, mesmo com oxigenoterapia restritiva.
– A estratégia restritiva não foi inferior em segurança e pode evitar os riscos associados à hiperóxia.
– Estudos recentes apontam que o excesso de oxigênio pode prolongar a hospitalização e aumentar a mortalidade.
– A oxigenoterapia no trauma deve ser individualizada com base na monitorização contínua e baseada na história clínica do paciente.
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