A hiperglicemia é uma alteração comum em pacientes críticos devido à resistência insulínica induzida pelo estresse, estando associada à gravidade da doença e à maior mortalidade. Entretanto, permanece a dúvida se a hiperglicemia é a causa de desfechos adversos ou um marcador de gravidade de doença. Esse tema motivou diversos estudos clínicos nas últimas décadas, para avaliar o impacto do controle glicêmico nesses pacientes.
O que sabemos sobre o assunto
- Leuven Trials (2001-2009):
Em 2001, o estudo com 1.548 pacientes de UTI cirúrgica demonstrou que o controle glicêmico rigoroso (80-110 mg/dL) reduziu a mortalidade em comparação à abordagem convencional (alvo 180-200 mg/dL) de forma significativa (controle intensivo 4.6% versus controle convencional 8%; p=0,04). É importante ressaltar que o trabalho apresentava um índice de fragilidade de 2. Neste trabalho ocorreu hipoglicemia grave em 39 pacientes do grupo controle intensivo e 6 pacientes no grupo controle convencional.
Em 2006 foi publicado o estudo Leuven em UTIs clínicas, com 1.200 pacientes. Não foi encontrada diferença significativa na mortalidade entre os grupos (controle intensivo 37,3% versus controle convencional 40%; p=0,33). Neste trabalho foi observada incidência de hipoglicemia de 18,7% no grupo controle intensivo e 3,1% no grupo controle convencional (p<0,001). No entanto, no subgrupo de pacientes com internação em UTI > 3 dias, foi observada redução na mortalidade hospitalar (43% x 52,5%; p=0,009).
Em 2009 foi publicado o estudo Leuven em pacientes pediátricos. Foi observado uma redução no tempo de internação em UTI no grupo com controle glicêmico intensivo (5,51 dias) em comparação com o controle convencional (6,15 dias), de forma significativa (p=0,017). Novamente, foi observada maior incidência de hipoglicemia no grupo com controle intensivo (25%) em comparação com o controle convencional (1%), de forma significativa (p<0,0001). Os estudos Leuven incluíram suplementação precoce com nutrição parenteral, exacerbando o risco de hiperglicemia nos grupos controle.
- NICE-SUGAR (2009):
Este trabalho buscou comparar o risco x benefício do controle glicêmico intensivo, diante das controvérsias observadas nas estudos anteriores. Foi um grande estudo multicêntrico, incluindo 6.104 pacientes, que comparou o controle glicêmico intensivo (alvo de glicemia: 81-106 mg/dL) versus controle convencional (alvo de glicemia: < 180 mg/dL). Foram incluídos apenas pacientes com duração esperada de internação ≥ 3 dias.
O trabalho mostrou um aumento de mortalidade com o controle glicêmico intensivo (27,5%) em comparação com o grupo de controle glicêmico convencional (24,9%) de forma significativa (aumento absoluto do risco 1,14; IC 95% 1,02 a 1,28; p=0,02). Esse aumento ocorreu principalmente devido à alta incidência de hipoglicemia grave (14 vezes maior). Note que o protocolo permitia utilização de medições menos precisas (glicemia capilar e amostras capilares/venosas), aumentando o risco de erros, porém refletindo a prática clínica habitual. No NICE-SUGAR, a nutrição parenteral foi minimizada, talvez aumentando o risco de hipoglicemia no grupo com controle glicêmico rigoroso.
- LUCID (2022)
Ainda existia dúvida se o controle glicêmico poderia ser mais permissivo em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Assim, foi comparado um alvo de glicemia “liberal” (180–252 mg/dL) versus controle habitual (< 180 mg/dL), em 419 pacientes críticos com DM2, com duração esperada da internação > 3 dias. O controle liberal reduziu a incidência de hipoglicemias (5%), em comparação com o grupo com alvo habitual (18%). No entanto, os pacientes do grupo com controle liberal tiveram um aumento absoluto na mortalidade (29,5%), em comparação com paciente com controle habitual (24,9%), de forma não significativa (IC95% −3,9% a 13,2%; p = 0,29), porém com magnitude de efeito preocupante. Desde então, o alvo glicêmico de pacientes com DM2 permanece o mesmo dos pacientes críticos em geral.
- TGC-Fast (2023):
O trabalho buscou comparar o controle glicêmico intensivo (alvo 80-110 mg/dL), versus controle “liberal” (alvo < 215 mg/dL), com inclusão de 9.230 pacientes. No entanto, ele tentou minimizar alguns dos fatores de confusão nos trabalhos anteriores. Assim, foi utilizado um algoritmo de controle glicêmico (LOGIC-Insulin) para reduzir a incidência de hipoglicemias e não era permitido o início de nutrição parenteral na primeira semana de internação (refletindo práticas atuais baseadas em guidelines). O estudo incluiu 9.230 pacientes
Não foi observada diferença de mortalidade em 90 dias entre o grupo com controle intensivo (10,5%) e o grupo com controle liberal (10.1%). Também não houve diferença em outros desfechos secundários analisados, como: incidência de infecções, duração de suporte ventilatório e hemodinâmico, duração da internação hospitalar e mortalidade na UTI. Houve menor incidência de lesão renal e colestase, no grupo com controle intensivo. Digno de nota, a incidência de hipoglicemia grave foi muito baixa em ambos os grupos (0,7 grupo liberal x 1,0% grupo controle intensivo). Isso ressalta o impacto positivo na prevenção de hipoglicemias com o uso de algoritmos de controle glicêmico, em detrimento de “protocolos institucionais fixos”.
Aplicações práticas:
Os dados sugerem que o controle glicêmico ideal varia com o contexto clínico, devendo ser individualizado para cada paciente.
- Controle glicêmico convencional (alvo 140-200 mg/dL): Recomendado por guideline para pacientes críticos em geral, buscando balancear o risco de hipoglicemias e o benefício do controle glicêmico;
- Controle glicêmico mais rigoroso (ex: alvo 110-180 mg/dL): Pode ser considerado em pacientes mais graves, em UTIs com acesso a ferramentas precisas e equipe treinada para monitoramento frequente;
- O uso de algoritmos de controle glicêmico personalizado, em detrimento de protocolos institucionais fixos, é formalmente recomendado por reduzir a incidência de hipoglicemia;
- O uso de insulina endovenosa, em comparação com insulina subcutânea, aumenta o tempo com glicemia dentro da faixa esperada, com o “custo” de aumento da incidência de hipoglicemias, mas não apresenta evidência de melhora dos desfechos clínicos.
Conclusão: controle glicêmico em pacientes críticos
A abordagem do controle glicêmico deve ser individualizada, considerando-se o contexto do paciente crítico, a infraestrutura disponível e os riscos de hipoglicemia versus hiperglicemia. Estratégias seguras e personalizadas são fundamentais para melhorar os desfechos clínicos.
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