O choque cardiogênico continua sendo uma das condições mais letais e desafiadoras da medicina intensiva e cardiovascular. Mesmo com avanços significativos em terapia farmacológica, suporte circulatório mecânico e cuidados pós-ressuscitação, a mortalidade permanece elevada e o curso clínico é altamente imprevisível.
Durante muitos anos, o choque cardiogênico foi compreendido como uma síndrome relativamente homogênea, predominantemente associada ao infarto agudo do miocárdio. Hoje se reconhece que se trata de um espectro clínico muito mais amplo, marcado por diferentes etiologias, trajetórias e mecanismos fisiopatológicos. Essa heterogeneidade explica, ao menos em parte, por que intervenções que funcionam para alguns pacientes falham sistematicamente em outros. A transição da padronização rígida para uma abordagem centrada em subfenótipos representa, portanto, um ponto de inflexão na cardiointensivismo [1].

A urgência do tempo: o golden hour no choque cardiogênico
Assim como no AVC isquêmico e no infarto com supradesnivelamento do ST, o choque cardiogênico é uma emergência tempo-dependente. A primeira hora após o contato médico é determinante para a definição do prognóstico. Reconhecimento rápido, estratificação adequada e ativação de equipes multidisciplinares especializadas (shock teams) são passos essenciais de um modelo assistencial moderno.
Do estadiamento ao fenótipo: o próximo salto conceitual
A introdução do sistema de estágios da SCAI (Society for Cardiovascular Angiography and Interventions) representou um avanço na padronização da gravidade do choque cardiogênico. Entretanto, estadiamento e fenotipagem não são sinônimos. Fenótipos clínicos e biológicos, independentes do estágio de gravidade, podem refletir diferentes mecanismos subjacentes, o que é crucial para decisões terapêuticas e para o desenho de ensaios clínicos.
A distinção entre enriquecimento prognóstico (identificar pacientes de maior risco) e enriquecimento preditivo (identificar pacientes mais propensos a responder a determinado tratamento) é central para o desenvolvimento de terapias direcionadas. Inteligência artificial, aprendizado não supervisionado e análises ômicas emergem como ferramentas para revelar padrões ocultos e subfenótipos biológicos relevantes.
O uso de dispositivos de suporte circulatório mecânico continua sendo um dos aspectos mais debatidos no manejo do choque cardiogênico. Embora o fundamento fisiológico da descompressão (Unloading) ventricular seja consistente, reduzindo a pressão diastólica final, diminuindo o consumo de oxigênio pelo miocárdio e facilitando a recuperação funcional, resultados clínicos permanecem heterogêneos.
O estudo DanGer-Shock trouxe evidências relevantes ao demonstrar benefício de mortalidade com o uso de bombas de fluxo microaxial em choque associado ao infarto agudo do miocárdio [2]. Contudo, esse resultado positivo ocorreu ao custo de maior incidência de sangramento e complicações renais, reforçando que tais dispositivos operam dentro de uma “janela terapêutica estreita”, na qual a seleção adequada do paciente é determinante para evitar danos adicionais.
Por outro lado, o estudo ECLS-SHOCK, no qual a ECMO venoarterial precoce não reduziu a mortalidade oferece um contraponto importante [3]. A interpretação desse achado deve considerar características específicas da população incluída: a maioria dos pacientes havia sofrido parada cardiorrespiratória prolongada, muitos possivelmente com lesão neurológica irreversível; além disso, apenas uma minoria demonstrava critérios ecocardiográficos de falência ventricular grave que justificassem a ECMO venoarterial. Outro fator relevante foi o uso de suporte de resgate no grupo controle, o que dilui diferenças entre as estratégias comparadas.
Esses elementos destacam um ponto central: o suporte circulatório mecânico não deve ser aplicado de forma indiscriminada, e sua eficácia depende de uma avaliação precisa da fisiopatologia predominante. Em pacientes com choque de perfil vasoplégico, por exemplo, a ECMO venoarterial pode gerar sobrecarga indevida sem corrigir o mecanismo dominante da instabilidade. Já naqueles com depressão miocárdica severa, a descompresão ventricular pode ser essencial para reverter o colapso hemodinâmico.
Leia mais: Choque cardiogênico: classificação, características e mortalidade
Mensagem prática
A transição da abordagem padronizada para o manejo orientado por subfenótipos inaugura uma nova era no cuidado ao choque cardiogênico. Para que esse avanço se concretize, será necessária a integração de tecnologias avançadas, biomarcadores, inteligência artificial, análise hemodinâmica refinada e colaboração internacional em larga escala. Se bem-sucedida, essa mudança poderá finalmente reduzir a mortalidade historicamente elevada do choque cardiogênico e inaugurar um modelo mais racional, individualizado e eficaz de cardiologia crítica.
Autoria

Yuri Albuquerque
Doutorando em Ciências Médicas pela Universidade de São Paulo (USP) • Residência em Medicina Intensiva pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) • Residência em Clínica Médica ano complementar (R3) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) • Residência em Clínica Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) • Médico intensivista rotina do hospital Samaritano Paulista • Título de Especialista em ECMO pela Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) • Título de Especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB)
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