Paciente de 34 anos, sem comorbidades, deu entrada no pronto-socorro com queda do estado geral, febre (38,4°C), taquicardia (FC 110 bpm) e hipotensão arterial (84/65 mmHg) não responsiva à expansão volêmica inicial (30 ml/kg de solução cristaloide). Referia tosse e febre não tratadas nos últimos sete dias.
Antecedentes: Covid-19 há três meses, doença leve, confirmada por RT-PCR SARS-CoV-2 positivo. Foi internado com achado de consolidação em base pulmonar direita. No momento da sua avaliação apresenta-se com confusão mental, PA 64/42 mmHg e hiperlactatemia (6,3 mmol/l) na Gasometria arterial.
Perguntas
- Defina: diagnósticos sindrômicos e etiológico.
- Após início da droga vasoativa e antibiótico escolhidos para o paciente, o mesmo evoluiu com compensação hemodinâmica. Durante a discussão do caso em round clínico foi aventada a possibilidade de reinfecção pelo SARS-CoV-2. Para diagnóstico da reinfecção pelo SARS-CoV-2 qual seria o exame ou combinação de exames necessários?
- Em relação à Covid-19, à luz do conhecimento atual, estima-se que a infecção grave pelo SARS-CoV-2 dê imunidade humoral ao infectado. Qual a duração aproximada da imunidade humoral conferida pela infecção pelo SARS-CoV-2?
Revisão direcionada da literatura
Trata-se de paciente jovem, previamente sem comorbidades, exceto por infecção recente pelo SARS-CoV-2 causando doença leve (infecção documentada pelo vírus, com quadro de síndrome gripal, sem alteração radiológica ou necessidade de oxigenioterapia suplementar). Os achados clínicos da admissão sugerem quadro infeccioso pulmonar complicado (tosse e febre há sete dias).
Devido à pandemia de Covid-19, o paciente deveria ser mantido em precauções de contato e respiratória para aerossóis, até que a infecção viral fosse descartada como causa concomitante do quadro clínico em estudo. O conhecimento atual nos permite inferir que o paciente infectado pelo SARS-CoV-2 desenvolve imunidade humoral com duração de seis a oito meses, porém em caso leves isso nem sempre ocorre, o que justificaria não descartarmos a suspeita de infecção pelo SARS-CoV-2. Nesse caso, ainda nos deparamos com outro problema: ao utilizarmos o exame RT-PCR para avaliar a presença de infecção pelo novo coronavírus podemos incorrer em resultado falso-positivo (paciente ainda tem eliminação do vírus, porém sem determinar doença) ou estarmos diante de um caso de reinfecção (neste caso, devemos recorrer a sequenciamento genômico para definir se trata-se de infecção por nova variante). No Brasil, os LACEN (Laboratórios centrais de saúde pública) dos estados e do Distrito Federal estão fazendo este tipo de exame para paciente com suspeita de reinfecção.
A consolidação em base pulmonar direita associada aos achados clínicos de febre e tosse define o diagnóstico etiológico de Pneumonia comunitária. Entretanto, o paciente em questão se apresenta com sinais que indicam complicação desse diagnóstico infeccioso: queda do estado geral, taquicardia e hipotensão. Determinando o primeiro diagnóstico sindrômico: Choque séptico de foco pulmonar.
O diagnóstico de sepse, apesar de inúmeras mudanças ao longo dos últimos 30 anos em relação aos seus critérios diagnósticos, nunca escapou à sua definição atual: uma disfunção orgânica potencialmente fatal causada por uma resposta desregulada do hospedeiro à infecção. Em relação aos critérios diagnósticos podemos dividi-los em dois grupos em relação aos critérios de 1991, 2003 e 2016:
Condição | Manifestações clínicas comuns | Critérios em 1991/2003 (“SEPSIS-1”/”SEPSIS-2”) | Critérios em 2016 (“SEPSIS-3”) |
Sepse | Sinais de infecção com disfunção orgânica e alteração do estado mental, taquipneia, hipotensão, disfunção hepática, renal ou hematológica | Infecção suspeita ou documentada com dois ou mais critérios para a Síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS)* | Infecção suspeita ou documentada com aumento agudo de dois ou mais pontos na avaliação de falência orgânica relacionada à sepse (SOFA)** |
Tabela 1. Diferença entre as definições de sepse ao longo dos anos
*Os critérios para SIRS incluem um ponto para cada um dos seguintes: Temperatura corporal > 38°C ou < 36°C; Frequência respiratória > 20 irpm; Frequência cardíaca > 90 bpm; Leucócitos > 12.000 ou < 4.000/µl ou > 10% de bastões. Variação do escore: 0-4 pontos.
**O escore SOFA (do inglês, Sequential Sepsis-related Organ Failure Assessment) é uma medida de 24 pontos de disfunção orgânica que utiliza seis sistemas (renal, cardiovascular, pulmonar, hepático, neurológico e hematológico), na qual 0-4 pontos são atribuídos a cada sistema orgânico (conforme a tabela 2).
Critérios | Pontuação | |||||
Sistema | Variável | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 |
Pulmonar | PaO2/FiO2 | ≥ 400 | < 400 | < 300 | < 200 com suporte ventilatório | < 100 com suporte ventilatório |
Hematológico | Plaquetas (10³) | ≥ 150 | < 150 | < 100 | < 50 | < 20 |
Hepático | Bilirrubina total | < 1,2 | 1,2-1,9 | 2-5,9 | 6-11,9 | ≥ 12 |
Cardiovascular | Pressão arterial média (PAM) | ≥ 70 | < 70 | Dopamina < 5 ou Dobutamina em qualquer dose | Dopamina (5,1-15) ou Adrenalina ≤ 0,1 ou Noradrenalina ≤ 0,1 | Dopamina > 15 ou Adrenalina > 0,1 ou Noradrenalina > 0,1 |
Neurológico | Escala de coma de Glasgow | 15 | 14-13 | 12-10 | 9-6 | < 6 |
Renal | Creatinina ou débito urinário (DU, em ml/dia) | < 1,2 | 1,2-1,9 | 2-3,4 | 3,5-4,9 ou DU < 500 | > 5 ou DU < 200 |
Tabela 2. Critérios e pontuação para a Avaliação de falência orgânica relacionada à sepse (SOFA)
No departamento de emergência, teríamos um problema em relação à tomada de conduta usando o SOFA: trata-se de uma escala que depende de resultados de exames laboratoriais. Deste modo, foi criada uma versão curta do SOFA para rastreio de sepse que pode ser aplicada rapidamente à beira-leito, o quick SOFA (qSOFA), que consiste em avaliação do nível de consciência, frequência respiratória e pressão arterial sistólica. Caso dois ou mais desses critérios estejam alterados a suspeita de sepse (que será definida pelo SOFA) aumenta consideravelmente.
São parâmetros que pontuam no qSOFA: Frequência respiratória ≥ 22 irpm; Pressão arterial sistólica ≤ 100 mmHg e; Alteração do nível de consciência com escala de coma de Glasgow < 15.
Entretanto, o que mais chama a atenção no caso clínico em questão é a refratariedade à reposição volêmica inicial, com indício laboratorial de hipoperfusão volêmica, nos fazendo aventar a possibilidade de um quadro de choque séptico, conforme o quadro a seguir:
Condição | Manifestações clínicas comuns | Critérios em 1991/2003 (“SEPSIS-1”/”SEPSIS-2”) | Critérios em 2016 (“SEPSIS-3”) |
Choque séptico | Sinais de infecção, incluindo alteração do estado mental, oligúria, extremidades frias, hiperlactatemi | Infecção suspeita ou documentada associada à hipotensão arterial persistente (pressão arterial sistólica < 90 mmHg; pressão arterial média < 60 mmHg; ou alteração na sistólica > 40 mmHg em relação ao basal | Infecção suspeita ou documentada associada à necessidade de terapia vasopressora para manter a pressão arterial média ≥ 65 mmHg e lactato sérico > 2,0 mmol/l apesar de ressuscitação volêmica adequada |
Tabela 1. Diferença entre as definições de Choque séptico ao longo dos anos
A importância do diagnóstico do choque séptico consiste em nos fazer entender que a gravidade (e mortalidade) do paciente aumentou exponencialmente devido às alterações circulatórias, celulares e metabólicas características deste contexto.
Veja outros casos clínicos:
- Caso clínico: Um curioso caso de perda ponderal
- Caso clínico: paciente, 52 anos, apresenta complicação após extubação
- Caso clínico: paciente feminina com quadro de perda ponderal. Qual o diagnóstico?
Referências bibliográficas:
- Seymour CW, Angus DC. Sepse e choque séptico. In Jameson JL et al. Medicina interna de Harrison. 20 ed – Porto Alegre: AMCH, 2020.
- Dan JM, Mateus J, Kato Y et al. Immunological memory to SARS-CoV-2 assessed for up to 8 months after infection. Science. 2021;371(6529) Epub 2021 Jan 6.
- To KK, Hung IF, Ip JDet al. COVID-19 re-infection by a phylogenetically distinct SARS-coronavirus-2 strain confirmed by whole genome sequencing. Clin Infect Dis. 2020 Aug 25:ciaa1275. doi: 10.1093/cid/ciaa1275.
- Moock M, Basile Filho A, Alheira RG. Casos clínicos em terapia intensiva. 2 ed – Barueri, SP: Manole, 2014.
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