Os cuidados paliativos representam uma das transformações mais significativas da medicina contemporânea. Longe de se restringirem ao fim da vida, eles abrangem um campo de atuação voltado ao alívio do sofrimento e à promoção da qualidade de vida de pessoas com doenças crônicas progressivas, sem propostas curativas ou em fase terminal, bem como de suas famílias.
Duas ferramentas validadas para o contexto brasileiro são úteis para aplicação e avaliação de elegibilidade dos pacientes com necessidades paliativas: o NECPAL-BR e o SPICT-BR. Essas ferramentas são mais do que instrumentos de triagem; representam um convite à mudança de cultura: de um cuidado centrado na doença para um cuidado centrado na pessoa.
Sobre a importância do reconhecimento precoce
O reconhecimento tardio da elegibilidade para cuidados paliativos ainda é um dos maiores entraves à sua efetividade. Diversos estudos mostram que, quando o cuidado paliativo é introduzido precocemente, há melhora significativa na qualidade de vida, na satisfação dos pacientes e familiares, e até mesmo na sobrevida em alguns grupos.
Na prática hospitalar e ambulatorial, identificar quem “precisa” de CP não é simples. Muitos pacientes vivem longos períodos com doenças crônicas em estágio avançado, alternando crises e remissões. É nesse ponto que entram ferramentas estruturadas como o NECPAL-BR e o SPICT-BR, que auxiliam o profissional na tomada de decisão, de forma objetiva e integrada.
NECPAL-BR:
O NECPAL-BR (Necessidades Paliativas – Brasil) é a adaptação nacional do instrumento desenvolvido pelo Institut Català d’Oncologia, na Espanha. Ele parte de uma pergunta-chave conhecida como “Pergunta Surpresa”: “Você se surpreenderia se este paciente morresse no próximo ano?”
A partir dessa pergunta, o instrumento analisa critérios clínicos, funcionais e psicossociais que apontam para necessidades paliativas. O NECPAL-BR contempla aspectos como:
- Declínio funcional progressivo;
- Presença de sintomas persistentes (dor, dispneia, fadiga);
- Internações repetidas ou uso frequente de serviços de urgência;
- Fragilidade global e perda de autonomia;
- Condições clínicas específicas (como IC refratária, DPOC grave, demência avançada, câncer metastático).
O formulário completo do NECPAL – BR pode ser encontrado neste link: https://repositorio.unifesp.br/server/api/core/bitstreams/14378282-b3ad-4fcb-b474-b7158a1ca681/content
SPICT-BR:
O SPICT-BR (Supportive and Palliative Care Indicators Tool – Brasil) é outra ferramenta de grande utilidade prática. Diferentemente do NECPAL, que parte de uma pergunta subjetiva, o SPICT propõe uma lista de indicadores clínicos gerais e específicos por doença, que ajudam o profissional a reconhecer pacientes em fase avançada de suas condições.
Entre os critérios gerais estão:
- Declínio funcional contínuo;
- Perda de peso ou sarcopenia;
- Necessidade crescente de suporte;
- Internações não planejadas;
- Sintomas de difícil controle.
Além disso, o instrumento detalha indicadores por sistemas (cardíaco, respiratório, renal, hepático, neurológico, oncológico), o que torna sua aplicação intuitiva e aplicável em múltiplos contextos — da enfermaria à atenção básica.
O SPICT-BR vem sendo amplamente utilizado por equipes multiprofissionais no Brasil e apresenta boa reprodutibilidade e facilidade de ensino. Pode ser encontrado neste link: https://www.spict.org.uk/
Na prática, muitos serviços utilizam ambas as ferramentas de forma complementar. O NECPAL-BR ajuda a identificar o contexto e o sofrimento global do paciente, enquanto o SPICT-BR auxilia na documentação clínica e na comunicação entre equipes.
Aplicação e impacto na formação médica
O uso dessas ferramentas tem se tornado cada vez mais comum na prática clínica, principalmente em ambientes de aprendizado como na residência médica. O exercício de aplicar essas escalas desperta reflexões importantes:
- O que é realmente prioridade para este paciente?
- O tratamento está alinhado aos valores e expectativas dele e da família?
- Há espaço para cuidado proativo e alívio de sofrimento desde já?
Essa mudança de olhar é talvez o maior ganho do uso sistemático dessas ferramentas — uma medicina mais humana, mais integrada e mais sábia.
Dia Mundial dos Cuidados Paliativos: um convite à reflexão
Neste Dia Mundial dos Cuidados Paliativos (11/10), o convite é para que cada profissional da saúde repense sua prática. Reconhecer a necessidade de cuidado paliativo é oferecer o que há de mais humano na medicina — presença, escuta e dignidade.
As ferramentas NECPAL-BR e SPICT-BR são mais do que formulários: são pontes entre o saber técnico e o cuidado compassivo. Ao aplicá-las, reafirmamos o compromisso com a vida — em todas as suas fases.
Autoria

Lavínia Barcellos
Graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora • Residente em Clínica Médica no Hospital Central da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
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