O paciente grave na UTI costuma ter infecções graves, doenças inflamatórias, trauma ou outras doenças que são catabólicas. Estes mesmos doentes permanecem prolongadamente na UTI até se recuperar, e existe um racional de tentar frear a desnutrição que fatalmente ocorre para suprir o organismo de glicose, lipídeos e aminoácidos, para resistir à agressão inicial. Consequentemente, os pacientes perdem peso, principalmente músculos, pela inflamação e pela imobilidade no leito.
Durante décadas nosso intuito foi de alimentar os pacientes o mais precocemente possível, desde que haja estabilidade hemodinâmica e o quadro de base esteja controlado, principalmente com correção de acidose metabólica. Teoricamente, o fornecimento de nutrientes pode ser focado em energia através de carboidratos e síntese proteica com aminoácidos. As diretrizes mais conhecidas sempre recomendaram uma taxa de proteínas maior que a normal nos pacientes graves: 1,5 g/kg/dia (enquanto é em torno de 1 g/kg/dia normalmente). Chega até recomendação de 1,8 a 2 g/kg/dia em pacientes queimados!
O único problema é que os estudos controlados só foram realizados mais recentemente, e como vários outros assuntos na Medicina em geral, o racional é fisiológico, mas a realidade do tratamento pode ser antagônica à fisiologia…
Saiba mais: Desnutrição em pacientes internados aumenta risco de mortalidade
Objetivos e Metodologia:
A metodologia do estudo foi uma revisão sistemática com os termos de oferta de proteínas, pacientes graves (em uso de ventilação mecânica ou com chance de morte acima de 5% na entrada da UTI), separando oferta aumentada da normal de proteínas (em média 1,5 versus 0,9 g/kg/dia), ao mesmo tempo de oferta calórica semelhante entre os grupos (em torno de 17 kcal/kg/dia).
O objetivo principal foi verificar a mortalidade: os diversos estudos tiveram mortalidade em 28-30 dias, hospitalar ou na UTI; a prioridade era decrescente nesta ordem. Desfechos secundários como infecção hospitalar, tempo de VM e qualidade de vida também foram levantados.
A análise foi com base nas probabilidades de benefício ou malefício, sempre hipotéticas, já que não há diferença significativa de mortalidade. Portanto, com suposições de 0, 1%, 2,5%, 5% e 10% de diferença em desfechos, foram calculadas porcentagem de benefício ou malefício para cada desfecho. O estudo usou dessa artimanha estatística para sugerir possíveis efeitos, que são heterogêneos entre os estudos (populações diferentes, tipos de UTIs diferentes, etc).
Resultados:
Depois de triar mais de 400 estudos, selecionou-se 22, com 4164 pacientes. Veja na Tabela abaixo os principais resultados:
Desfecho |
N estudos |
Chance de benefício* |
Chance de malefício* |
Comentário |
Mortalidade |
20 |
43,6% |
56,4% |
Há maior chance de malefício; mesmo no cenário de potencial benefício, haveria apenas 10% de benefício relativo |
Infecção hospitalar |
7 |
36,3% | 63,7% |
A maior chance é de malefício, mesmo com qualquer projeção de risco relativo |
Tempo de VM |
12 |
70,1% |
29,9% |
Embora haja maior chance de benefício, ele é marginal entre 0,3% e 1%, e este efeito clínico é irrelevante |
Qualidade de vida |
3 |
11,5% |
88,5% |
A probabilidade de malefício neste desfecho é grande e pode ser clinicamente relevante |
– * Chance = risco relativo menor ou maior que 1,00; VM – ventilação mecânica
O estudo de Bels et al, “The effect of high versus standard protein provision on functional recovery in critical illness (PRECISe), a double-blinded, multicentre, parallel-group, randomised, controlled trial”, publicado no Lancet em 2024, parece ter sido o ponto de inflexão neste assunto, já que o tamanho amostral teve mais de 900 pacientes e mostrou redução de qualidade de vida e maior taxa de efeitos adversos gastrointestinais. Este resultado teve bastante peso na revisão sistemática realizada.
Mensagens para o dia-a-dia:
- Embora haja catabolismo significativo na fase mais aguda da doença crítica, a tentativa de aporte proteico elevado não apresentou benefício;
- O efeito de dietas hiperproteicas ou com suplementação de proteínas a parte não alterou significativamente a mortalidade nem taxa de infecções e tempo de ventilação mecânica, embora possa causar malefício na qualidade de vida após meses;
- Recomenda-se, portanto, dietas normocalóricas e normoproteicas, com cuidado para não exagerar na fase mais precoce da doença crítica: “menos é mais.”
Autoria

André Japiassú
Doutor em Ciências pela Fiocruz. Mestre em Clínica Médica pela UFRJ. Especialista em Medicina Intensiva pela AMIB. Residência Médica em Medicina Intensiva pela UFRJ. Médico graduado pela UFRJ.
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