Nas últimas décadas testemunhamos um aumento exponencial da resistência antimicrobiana (RAM), sem a contrapartida almejada no desenvolvimento de novos antibióticos (antimicrobianos), fato que configura um dos principais desafios da saúde pública mundial.
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As unidades de terapia intensiva (UTIs) estão no epicentro da eclosão de microrganismos resistentes a múltiplas drogas (MDR), e essa realidade é desenhada por um conjunto de fatores:
- Mudança do perfil epidemiológico das UTIs, com número crescente de pacientes idosos, com múltiplas comorbidades, oncológicos e imunossuprimidos;
- Características inerentes ao paciente crítico, com risco aumentado de infecções (até 10 vezes a taxa observada em enfermarias) atrelado a internações prolongadas ditadas por múltiplas intervenções invasivas;
- Práticas inadequadas de prescrição de antibióticos, com exposição prolongada a antimicrobianos de amplo espectro.
A importância da gestão de antimicrobianos (GAM), com enfoque nas UTIs, sinalizada pela OMS em 2015, foi reiterada pelo agravamento da problemática imposto pelo uso indiscriminado de antibióticos e amplificação da resistência antimicrobiana (RAM) durante a pandemia da covid-19.
O Sistema Brasileiro de Vigilância de Resistência Bacteriana divulgou, em 2018, dados de 11.347 amostras biológicas. Nos testes de sensibilidade antimicrobiana, aproximadamente 25% das bactérias eram resistentes, com atenção especial dirigida ao grupo ESKAPE (Enterobacter, S. aureus, K. pneumoniae, A. baumannii, P. aeruginosa e E. faecium) e com destaque para o A. baumannii e K. pneumoniae produtora ESBL, com resistência de 65,3% e 59%, respectivamente.
Quais são os principais fatores de risco para a resistência antimicrobiana?
Os principais fatores de risco para a RAM incluem a idade avançada, doença renal crônica, imunossupressão e doenças oncológicas; hospitalizações prévias, internações em unidades de cuidados prolongados e admissão em UTI; número de intervenções invasivas, transplantes de órgãos sólidos e medula óssea; presença de cateteres venosos centrais, cateteres urinários, nutrição parenteral total, terapia renal substitutiva, ventilação mecânica e traqueostomia; exposição a antimicrobianos, corticosteroides e colonização por germes MDR.
Em relação à infecção por Candida e a progressiva aflição imposta pela disseminação da C. auris, além dos elementos anteriormente mencionados, destacamos com fatores de risco a pancreatite aguda necrotizante, cirurgias abdominais complicadas com fístulas anastomóticas e necessidade de reintervenções cirúrgicas e colonização multifocal por Candida.
Como enfrentar a crise de resistência antimicrobiana?
A GAM nas UTIs deve contar com a supervisão de uma equipe multidisciplinar dedicada, envolvendo médicos infectologistas e farmacêuticos, com a divulgação periódica de dados epidemiológicos locais, bem como emissão de alertas de desprescrição.
As medidas utilizadas para mitigar a resitência antimicrobiana (incluem a adesão aos protocolos de lavagem das mãos, precauções de contato em leitos individuais para os casos de colonização por germes MDR, instituição de protocolos de prevenção de pneumonia relacionada à ventilação mecânica e de infecções relacionadas a cateteres urinários e venosos centrais. Entretanto, a principal medida para refrear o processo é a prescrição racional de antimicrobianos.
Antes de se instituir a antibioticoterapia, alguns passos se fazem necessários:
- Quem é o paciente (idade, comorbidades, status imunológico, colonizações documentadas e invasões vigentes)?
- Qual o foco infeccioso mais provável (a partir da interpretação de dados de entrevista, exame físico e exames complementares, incluindo a coleta de amostras para a análise microbiológica)?
- Há necessidade de abordagem evacuatória do foco infeccioso?
- Quais são os germes mais prováveis?
- Qual o padrão de resistência local esperado?
- Qual o regime antimicrobiano mais indicado?
- Quais são as toxicidades esperadas?
- Há interações medicamentosas relevantes?
- O quadro clínico impõe modificações importantes na farmacocinética e farmacodinâmica da droga escolhida?
- Há necessidade de ajustes da droga pela função hepática ou renal?
Uma vez instituída a antibioticoterapia, deve-se revisá-la diariamente, com base na evolução clínica e dados microbiológicos obtidos, com alvo no desescalonamento precoce, viável em aproximadamente metade dos casos; bem como seguimento de marcadores inflamatórios, como a procalcitonina, com objetivo de encurtar o tempo total de exposição à antibioticoterapia.
Estudos demonstram o potencial da procalcitonina em reduzir o tempo de antibioticoterapia em até quatro dias, sem comprometer a taxa de cura da infecção nem impactar negativamente sobre a mortalidade ou tempo de permanência em CTI.
A duração da terapia antimicrobiana para além de 7 a 14 dias raramente se justifica na ausência de endocardite infecciosa, aneurismas micóticos, osteomielite e focos mantidos com inviabilidade de drenagem completa. Estudos controlados randomizados têm apontado, de forma sistemática, que tratamentos curtos são seguros em pneumonias, infecções intracavitárias, bacteremias e infecções urinárias.
Os tratamentos prolongados não trazem melhora dos desfechos clínicos, incrementam os custos hospitalares e o amplificam o risco de eventos adversos, como a infecção pelo Clostridioides difficile.
O paciente está, de fato, infectado?
A presença de febre, leucocitose ou aumento de proteína C-reativa não são sinônimos de infecção bacteriana, e a conscientização da equipe de saúde sobre esses fatos talvez seja uma das mais árduas tarefas da educação médica direcionada ao uso racional de antimicrobianos.
Estima-se que até metade dos episódios febris em UTI se deva a etiologias não-infecciosas, como as reações de hipersensibilidade a fármacos, tromboembolismo venoso, pancreatite, eventos neurológicos agudos, doenças reumatológicas, malignidades e reações transfusionais.
No grupo de indivíduos com febre além de 41°C, entram no diagnóstico diferencial a síndrome serotoninérgica, síndrome neuroléptica maligna, hipertermia maligna, tireotoxicose, crise adrenal e feocromocitoma. As infecções virais, com destaque para a Influenza, covid-19 e síndromes mononucleosídicas, são exemplos de causas infecciosas de febre e que não são tratadas primariamente com antibioticoterapia.
A suspeita de infecção no doente crítico demanda, portanto, uma avaliação seriada e meticulosa. Deve-se coletar prontamente amostras biológicas do sítio suspeito para a análise direta microscópica com objetivo de direcionar a antibioticoterapia empírica, bem como para a realização de culturas e, conforme a disponibilidade, testes moleculares rápidos.
A reação de cadeia de polimerase (PCR), tecnologia de microarranjos de DNA, hibridização fluorescente in situ (FISH) e espectrometria de massa por ionização e dessorção a laser assistida por matriz (MALDI-TOF MS) são testes moleculares rápidos, com disponibilidade ainda limitada, mas com grande potencial de refinar a antibioticoterapia, permitindo resultados em minutos a poucas horas, viabilizando tratamento direcionado e desescalonamento precoce.
Vale a ressalva de que a simples identificação de bactérias MDR e Candida em amostras biológicas muitas vezes representa apenas colonização, cabendo ao médico assistente a interpretação dos dados microbiológicos à luz dos demais elementos clínicos.
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Princípios básicos da farmacocinética e farmacodinâmica
A seleção da antibioticoterapia deve levar em conta as suas propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Nesse quesito, os agentes podem ser subdivididos, conforme a sua atividade, em dependentes de tempo acima da concentração inibitória mínima (MIC), como os beta-lactâmicos, que exigem doses fracionadas em períodos de infusão mais prolongados, visto que curtos períodos de concentração abaixo da MIC permitem o imediato crescimento bacteriano; ou dependentes de concentração, como os aminoglicosídeos, geralmente administrados em bolus em dose única diária, com alvo de alcançar oito a dez vezes a MIC, seguidos por efeito pós-antibiótico. Outra diferenciação fundamental está relacionada à afinidade pela água, conforme expressa na tabela abaixo:
Antibióticos | Hidrofílicos | Lipofílicos |
Concentração em tecidos hipovascularizados e lesados | Menor | Maior |
Volume de distribuição | Menor | Maior |
Concentração no meio intracelular | Menor | Maior |
Metabolismo prioritário | Renal | Hepático |
Impacto da anasarca, hipoalbuminemia e uso de inotrópicos | Significativo | Mínimo |
Impacto da obesidade | Mínimo | Potencial |
Exemplos | Beta-lactâmicos Glicopeptídeos
Aminoglicosídeos Polimixinas Oxazolinedionas (Linezolida) Daptomicina | Fluorquinolonas
Macrolídeos Glicilciclinas (Tigeciclina) Lincosaminas (Clindamicina) Tetraciclinas Rifampicina
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Os pacientes com anasarca, hipoalbuminemia e derrames cavitários, bem como os submetidos à hidratação vigorosa, com drenos pós-operatórios ou na vigência de ECMO, em geral, demandam doses aumentadas de antibióticos, especialmente os hidrofílicos, por aumento do volume de distribuição da droga e redução da ligação do fármaco à albumina, fatores que propiciam o maior clareamento da droga.
Em contrapartida, a presença de disfunções orgânicas, em especial a renal e hepática, limitam a depuração das drogas. Dessa forma, enquanto preservamos a dose de ataque, com a finalidade de rápido estabelecimento de níveis séricos eficazes para o controle infeccioso, as doses subsequentes devem ser ajustadas para alcançar o nível sérico terapêutico da droga.
O sucesso terapêutico está vinculado à resolução de focos mantidos!
Os pacientes que se apresentam com síndromes infecciosas e que persistem com disfunções orgânicas a despeito de adequada expansão volêmica e antibioticoterapia merecem avaliação para foco infeccioso mantido. Nesse aspecto, a realização ou repetição de exames de imagem assume protagonismo.
O controle do foco infeccioso é essencial para otimizar e acelerar a recuperação clínica e pode envolve a drenagem de coleções profundas (cirúrgica ou por radiologia intervencionista), desbridamento de tecidos desvitalizados, descompressão de compartimentos, remoção de cateteres e dispositivos infectados.
Jamais devemos considerar que os focos infecciosos mantidos estão sendo adequadamente cobertos por terapia antimicrobiana isolada.
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Mensagens práticas
- A resistência antimicrobiana (RAM) é um dos principais desafios de saúde pública mundial, tendo nas unidades de terapia intensiva (UTIs) o seu epicentro.
- No Brasil, aproximadamente um quarto das bactérias identificadas em ambientes hospitalares apresenta resistência antimicrobiana, com consolidação do grupo ESKAPE (Enterobacter, S. aureus, K. pneumoniae, A. baumannii, P. aeruginosa e E. faecium).
- A principal medida para mitigar a escalada da RAM é a prescrição racional de antimicrobianos. Outros elementos importantes incluem a lavagem de mãos e a adoção de precaução de contato para casos de colonização por germes resistentes a múltiplas drogas (MDR).
- Febre, leucocitose e aumento de proteína C-reativa, bem como a identificação de microrganismos em culturas, não são, em absoluto, sinônimos de infecção, e não podem ser considerados indicações automáticas de prescrição de antibióticos (antimicrobianos).
- A escolha da terapia antimicrobiana deve se pautar em elementos relacionados ao paciente, foco infeccioso provável e perfil de resistência local, alinhadas com a previsão de toxicidade, interações medicamentosas e características farmacodinâmicas e farmacocinéticas da droga.
- Focos infecciosos mantidos devem ser abordados com medidas evacuadoras e não podem ser considerados plenamente cobertos por antibioticoterapia.
- A antibioticoterapia deve ser reavaliada diariamente, com base na evolução clínica e dados microbiológicos obtidos, com a meta de mantê-la pelo período mínimo necessário, por vezes guiado por marcadores inflamatórios, como a procalcitonina, minimizando a exposição à pressão seletiva.
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