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Terapia Intensiva27 julho 2023

Anticoagulação na cirrose: ainda um paradoxo?

Uma meta-análise abordou a eficácia e segurança da anticoagulação no tratamento da trombose de veia porta (TVP) em pacientes com cirrose.

Por Leandro Lima

O senso comum é o de que a doença hepática crônica avançada (DHCA) é uma condição intrinsecamente relacionada a um alto risco de sangramento. Dessa forma, por muito tempo considerou-se que a profilaxia e tratamento de eventos trombóticos nesse cenário representasse um grande dilema clínico.  

Na última década, entretanto, as evidências têm apontado que, além de segura, a anticoagulação em cirróticos tem se atrelado à redução da mortalidade.

Confira: Diagnóstico e manejo de cirrose hepática

cirrose

Qual seria o racional dessa aparente contradição?

A hipertensão portal clinicamente significativa gera, no leito microvascular hepático, uma redução do fluxo sanguíneo e, dessa forma, estase, que é um alicerce da tríade de Virchow. Por sua vez, a trombose micro e macrovascular agravam a disfunção endotelial dos sinusoides hepáticos, estimulando a ativação das células estreladas hepáticas e a progressão da fibrose. Dessa forma, a anticoagulação parece desempenhar um papel antifibrótico, modificando a evolução natural da doença hepática.   

Aqui trataremos de um meta-análise publicada no Journal of Hepatology em fevereiro/2023 por Guerrero e colaboradores, integrantes da cooperação Baveno e do consórcio da EASL, que aborda a eficácia e segurança da anticoagulação terapêutica no tratamento da trombose de veia porta (TVP) em pacientes cirróticos.   

A TVP é um evento frequente na evolução natural da cirrose, acometendo 14% dos pacientes. Em estudos observacionais a profilaxia e o tratamento da TVP em cirróticos têm se associado a melhora dos desfechos hepáticos e da sobrevida, viabilizando a recanalização de uma forma segura, além de otimizar a patência das anastomoses confeccionadas no transplante hepático.  

Metodologia 

Trata-se de uma revisão sistemática e meta-análise com dados de pacientes individuais coletados até junho/2022.  

Os critérios de inclusão foram estudos de coorte ou randomizados-controlados contemplando pacientes cirróticos com TVP expostos ou não a anticoagulação (heparina de baixo peso molecular ou antagonistas da vitamina K).  

Por sua vez, os critérios de exclusão foram TVP pós-operatória, TVP em não-cirróticos ou transplantados hepáticos, bem como TVP tumoral, além do emprego de anticoagulantes orais de ação direta (DOACs), instituição de shunt porto-sistêmico transjugular intra-hepático (TIPS) ou pacientes submetidos à trombólise. 

A TVP foi definida com ausência de fluxo em parte ou todo o lúmen em qualquer sítio do sistema esplâncnico (veia mesentérica e/ou veia porta e seus ramos principais e intra-hepáticos) causada por material sólido no interior da veia e documentada por radiologia (Doppler hepático, TC ou RM de abdome).  

O desfecho primário foi o de mortalidade por todas as causas, tratando-se o transplante hepático como evento competidor; enquanto os desfechos secundários incluíram recanalização da veia porta e eventos hemorrágicos.  

Resultados 

Foram incluídos cinco estudos de coorte publicados entre 2016 e 2018, perfazendo 500 pacientes, com média de idade de 58 anos, predominância do sexo masculino (70%) e da etiologia viral (48%). A média de MELD foi de 13 e houve boa representação dos grupos Child-Pugh B ou C (63%). Aproximadamente 30% dos pacientes estavam em vigência de profilaxia secundária de hemorragia digestiva alta relacionada à hipertensão portal. A média de plaquetas foi de 87.000/mL e RNI de 1,4. A duração média da anticoagulação foi de 9 meses, com tempo de seguimento médio de 26 semanas. 

Entre os 500 pacientes alocados, 205 (41%) encontravam-se no braço da intervenção (anticoagulação) e 295 (59%) no braço controle. A TVP acometia o tronco principal em 80% dos casos, sendo completa em aproximadamente 45%.  

O número de óbitos foi de 51 (24,9%) no grupo intervenção e 115 (39,1%) no grupo controle. O número necessário para tratar (NNT) para evitar 1 morte tornou-se mais robusto e com a ampliação do tempo de anticoagulação: 18,83 em 1 ano, 12,56 em 2 anos e 6,8 em 5 anos, inferindo-se um possível gradiente biológico. O impacto da anticoagulação sobre a mortalidade geral e específica foi significativo e persistente após análises de fatores confundidores e eventos competidores (HR: 0,59 – IC 95%: 0,49 – 0,7), sendo independente da gravidade da TVP e da taxa de recanalização. 

A recanalização parcial ou completa foi documentada em 118 (57,6%) pacientes do grupo intervenção e 97 (32,9%) do grupo controle (OR ajustada de 3,45 – IC 95%: 2,22 – 5,36).  

Por fim, a taxa global de sangramentos foi semelhante entre os grupos (19% vs 15,6%), embora o sangramento gastrointestinal não relacionado à hipertensão portal tenha sido mais frequente no grupo intervenção.

Leia também: Lesão renal aguda na cirrose hepática: abordagem prática

Mensagens finais 

  • A anticoagulação terapêutica no manejo da trombose da veia porta (TVP) em pacientes cirróticos deve ser encorajada, pois se associa à redução de mortalidade;
  • As evidências atuais são consistentes em demonstrar a segurança da anticoagulação na presença de doença hepática crônica avançada (DHCA), desde que empregadas as medidas de profilaxia de sangramento relacionado à hipertensão portal;
  • O emprego de anticoagulantes de ação direta (DOACs), apesar do uso crescente em estudos e na prática cotidiana em hepatopatas, infelizmente não foram alvo da meta-análise em questão, o que apontamos como um ponto desfavorável do estudo.

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Referências bibliográficas

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